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O SALTO DO DINOSSAURO- Novas tecnologias e boa governação

Comunicação à Conferência Nacional sobre Boa Governação

Organização da Inspecção Geral de Administração do Estado

Luanda

15 de Janeiro de 2025

A grande questão que confronta a governação de Angola, como a de muitos países que sentem ter capacidade para muito melhor, dispõem de amplos recursos naturais e de uma população jovem, ativa e impaciente, é a questão do salto. Como saltar rapidamente tornando-se um país desenvolvido, próspero e justo para todos?

Nos estudos antigos de economia, havia um autor fundamental, Alfred Marshall, cujo livro Principles of Economy era a base do conhecimento da economia neoclássica. Na abertura do livro, Marshall tinha inscrito o velho dito Natura non facit saltus (a natureza não salta). Com isto, Marshall seguindo Leibniz e Darwin, expressava a ideia de que as coisas e as propriedades naturais mudam gradualmente, e não repentinamente. Quereria isto dizer que não seriam possíveis longos saltos, apenas uma evolução gradual.

Contudo, Stephen Jay Gould, um paleontólogo e historiador da ciência norte-americano veio demonstrar que a evolução da natureza não é exatamente assim, apresentando a chamada teoria do equilíbrio pontuado. A teoria propõe que a maior parte da evolução é caracterizada por longos períodos de estabilidade evolutiva, pontuados por períodos rápidos de especiação, de saltos abruptos. A teoria contrastava com o gradualismo, a ideia popular de que a mudança evolutiva é marcada por um padrão de mudança suave e contínua no registo fóssil. Em suma, Gould comprovou que os dinossauros também saltam.

Naquilo que se refere ao desenvolvimento de um país, uma boa hipótese é que o impulso para este salto será dado pela boa governação em conjunto com a exploração inteligente das novas tecnologias.

A boa governação é uma expressão em que o conselho uti, non abuti (usar, não abusar) deve predominar, para não se tornar num conceito vazio e inexpressivo. Por exemplo, olhando para o Índice de Boa Governação de Fundação Mo Ibrahim verificamos que a Boa Governação para eles inclui a segurança e estado de direito, participação, direitos e inclusão, oportunidades económicas e desenvolvimento humano. Por sua vez, estas categorias subdividem-se em subcategorias. É um exercício interessante, mas no final do dia impossível, dando razão aos versos de Camões “o mundo todo abarco e nada aperto.”

A generosidade dos conceitos acarreta na sua raiz a sua ineficácia. Não interessa tudo incluir na Boa Governação, para no final não termos nada a não ser boas intenções. Assim, é melhor cingirmos a Boa Governação a dois aspetos que desde sempre se exigiram ao governante, fosse ele imperador, rei, presidente, chanceler ou outro qualquer. Eficácia na concretização das necessidades do país em cada momento do processo histórico e consentimento popular. Eficácia e consentimento são as bases duma boa governação. O governante tem de ter a capacidade de produzir o efeito desejado ou um resultado esperado. Em termos mais simples, tem de conseguir atingir os objetivos que lhe são exigidos pela situação histórica. Esses objetivos são definidos de forma ampla e espontânea pela comunidade política, incluindo os manifestos dos partidos vencedores, os discursos ou proclamações do chefe de estado, a opinião consensual emergente da opinião pública, o sentir da população medido através de sondagens. E o que é importante num espaço e tempo pode não ser noutro.

Contudo, essa eficácia e os objetivos a atingir estão submetidos à necessidade da governação ter consentimento popular. Consentimento popular refere-se à aceitação ou apoio geral da população em relação a uma decisão, política ou governante. Consentimento popular não implica necessariamente o modelo democrático como seguido na atualidade, pode ser esse ou outro modelo qualquer através do qual exista a necessária sensibilidade e canal de comunicação adequado entre povo e governante.

É muito importante definir a boa governação, para evitar o vácuo.

Quanto às novas tecnologias, elas podem ter um papel preponderante. Mas antes há sempre que chamar a atenção para os perigos que Jamie Susskind no seu livro The Digital Republic invoca: os sistemas digitais baseiam-se em regras escritas por pessoas que ao criar determinados algoritmos não sindicáveis ficam com um enorme poder não controlado. O que parece neutro e técnico, no final é político e moral. Enfatizado este ponto verifiquemos alguns exemplos de uma ligação virtuosa entre boa governação e novas tecnologias.

Nos Índices realizados pela ONU, a Estónia costuma surgir como o país mais avançado do mundo em e-government. Tem havido várias notícias de deslocações do ministro de Estado e da Casa Civil, Dr. Adão de Almeida, à Estónia. Assim, o país e as suas práticas são já sobejamente conhecidos em Angola, pelo que não vou ser redundante, apenas focando os pontos que parecem mais salientes.

A utilização ampla de novas tecnologias resultou antes de tudo de investimentos em infraestruturas e tecnologias de ponta, como a inteligência artificial, a computação em nuvem e a banda larga.  Simultaneamente, a Estónia é o lar de 10 unicórnios e a produzir 10 vezes mais start-ups per capita do que a média europeia. As empresas de TIC da Estónia ajudaram a construir a sociedade digital mais avançada do mundo.

Portanto, temos um conjunto virtuoso que permite a utilização de novas tecnologias para a boa governação: investimento em inteligência artificial, computação nuvem e banda larga complementada pela liberdade e promoção de criação de empresas tecnológicas de ponta.

Há assim uma parceria Estado-sector privado para a digitalização e implementação das novas tecnologias. O Estado não tem capacidade para fazer tudo, nem os privados.

Em concreto, 99% de todos os serviços públicos estão acessíveis online.  Um total de 88% dos agregados familiares dispõem de capacidade Internet, estando também disponíveis ligações Wi-Fi em mais de 1100 locais públicos, incluindo todas as escolas. Na Estónia, 88% da população com idades compreendidas entre os 16 e os 74 anos utiliza a Internet e estes cidadãos utilizam regularmente serviços eletrónicos. Mais de 95% das declarações de imposto sobre o rendimento foram apresentadas através do e-Tax Board em 2022, enquanto quase todas (mais de 99%) das transações bancárias são efetuadas através da Internet.

Todos os residentes possuem um cartão de identidade eletrónico da Estónia que funciona como um elemento de identidade digital, e é um documento de identidade físico e, na União Europeia, também um documento de viagem.

Um empresário pode até criar uma empresa na Estónia diretamente a partir do seu dispositivo pessoal. O registo do portal e-Business para a constituição e registo de uma empresa pode demorar apenas 18 minutos.

A política é também uma atividade digital. Desde 2005, todos na Estónia podem votar eletronicamente através da Internet, utilizando um cartão de identificação ou um documento de identificação móvel, a partir de casa ou mesmo durante viagens ao estrangeiro.

Além dos investimentos mencionados e da criação de um ecossistema empresarial centrados nas novas tecnologias há dois temas base fundamentais sem os quais não é possível a utilização das novas tecnologias para a boa governação. O primeiro, que não se focará aqui é a reforma da administração pública, desburocratizando-a e tornando-a numa estrutura ao serviço do cidadão. Administrações públicas eficientes satisfazem as necessidades dos cidadãos e das empresas. É essencial que as autoridades públicas sejam capazes de se adaptar às novas circunstâncias.

Nesse sentido, em Angola tenho de fazer referência aos sites que utilizo com mais frequência e que de um modo geral correspondem às expectativas. Um é o site do Ministério das Finanças. Sobretudo naquilo que se refere ao OGE está muito completo, acessível, com fácil acesso e compreensão. Os relatórios, os quadros, os números estão organizados e é fácil entender.

Outros dois que têm tido melhorias substanciais são os sites do Tribunal Supremo e do Tribunal Constitucional. Contudo, para facilitar o investigador, os acórdãos publicados deviam ter um curto sumário, de preferência realizado pelo juiz relator, acompanhado de palavras-chave. É que como estão agora, torna-se quase impossível fazer uma análise jurisprudencial. Por curiosidade, verifico que o último acórdão publicado no Constitucional (na altura em que escrevo) já tem o objeto mencionado. Talvez seja o anúncio de uma boa evolução.

O outro tema fundamental, que constitui uma síntese hegeliana da boa governação e novas tecnologias é a educação. Sem educação não é possível o uso das novas tecnologias como se fez na Estónia, e por outro lado, a educação pode ser uma das maiores beneficiárias das novas tecnologias e de uma aplicação concreta da boa governação.

A educação é a chave e o resultado do exímio uso das novas tecnologias por um país bem governado.

Todos reconhecem que há um déficit escolar ao nível do ensino básico em Angola. Fala-se de 5 milhões de crianças fora do sistema de ensino. Não é demais acentuar a gravidade do tema, como também, é evidente que não há meios para reproduzir o sistema em vigor assente em mais escolas físicas e mais professores. Os números são imensos e impossíveis. Por isso, é fundamental mudar o paradigma, abdicando da abstração e generalização que as leis impõem tornando-se impraticáveis, e procurado soluções diferenciadas, diversas e inovadoras. Não se pode pensar a escola ainda segundo o modelo prussiano-industrial com uma lei que tudo regula de igual forma e que apenas permite e repetição de um modelo de escola por vezes infinitas. É a receita para o falhanço.

Num mundo ideal, os professores do ensino primário em Angola seriam todos bem formados, altamente motivados e a sonhar com lições vibrantes. Na realidade, esta possibilidade não é viável. Por isso, há que ter soluções radicais para abranger o maior número de estudantes de forma consistente.

Em primeiro lugar, temos de distinguir os locais com acesso a rede e a sistemas de comunicações de internet e outros que não têm. É em relação a estes últimos que se deve focar o investimento físico, construindo edifícios e formando professores. Em relação aos locais com acesso a rede, além das estruturas físicas já existentes, o modelo de aprendizagem deve ser radicalmente diferente. O professor será sobretudo um facilitador que transmitirá aulas bem-elaboradas escritas por uma equipa central e que lhes são enviadas em tablets eletrónicos. As instruções definem exatamente o que escrever no quadro e até mesmo quando caminhar fazendo a apresentação. Planos igualmente detalhados determinam as verificações diárias que os diretores devem realizar para garantir que a sua equipa está em dia. O que este facilitador tem de saber é usar os meios eletrónicos, ler e transmitir. No fundo, funcionará como um terminal de uma linha eletrónica divulgando o seu conteúdo a uma miríade de alunos.

Um estudo realizado no Quénia realizado por Michael Kremer, economista vencedor do Prémio Nobel (2019), e colegas de quatro universidades americanas – acompanhou mais de 10.000 crianças que se candidataram a vagas gratuitas nas escolas que adotavam estes métodos. Ao fim de dois anos, verificou-se que as crianças aprenderam muito mais do que os foram para as escolas tradicionais.

A grande vantagem do método é o seu custo baixo, o que permite um maior número de crianças a aprender. Como se disse, os professores são facilitadores, pelo que podem ter apenas o ensino secundário, o que fomentaria largamente o emprego jovem, tão necessário.

É evidente que o sistema padronizado digital pode ter muitas críticas, desde logo a promoção de uma aprendizagem mecânica, a desvalorização social do papel do professor, a falta de elasticidade no conhecimento. É verdade. Mas tem uma vantagem fundamental, permite uma muito maior cobertura de estudantes a menor custo e vai introduzi-los aos meios digitais de imediato.

É muito mais importante dar a todas as crianças instrumentos básicos de conhecimento, mesmo que não sejam os ideais, mesmo que existam sistemas diferentes, mesmo que uns tenham professores e escolas e outros tablets e facilitadores, do que deixar milhões sem nada.

Esta é a verdadeira escolha.

Termina-se como se começou. Angola pode dar o salto do dinossauro. Só tem de usar de forma inteligente e local as novas tecnologias para garantir a boa governação.

Estratégia Angola 2050-uma análise (I)

Angola 2050

Angola 2050[1] é o nome do plano estratégico apresentado recentemente pelo governo de Angola contendo a visão para o país no longo-prazo.

De um modo geral, surpreendentemente, a receção ao documento foi morna, não suscitou especial entusiasmo ou foi rapidamente descartado por ser pouco rigoroso, não ter uma metodologia adequada, ou não passar de um trabalho de consultores académicos.[2]

Na nossa opinião, trata-se de um documento demasiado importante para o futuro de Angola, para ser aceleradamente colocado de parte, sobretudo, atendendo ao facto que foi colocado em consulta pública, o que se aplaude.

Nessa medida, fomos ler e analisar o documento. Trata-se dum trabalho com 432 páginas e 11 capítulos, elaborado de modo profissional e sistemático. Entendemos que mesmo criticando, a primeira atitude correta é estudar e refletir sobre o documento, além de o dar conhecer. Só conhecendo o documento se pode criticar ou apresentar alternativas.

A função da sociedade civil, dos académicos e opinião pública em geral tem de deixar de ser a mera desconstrução e passar a ser de exigência e crítica atenta. Só sabendo do que se fala poderemos convocar os dirigentes a cumprir ou a apresentar outras soluções.

É nosso objetivo apresentar dois trabalhos sobre o documento, o primeiro dos quais é este que versa sobre a metodologia, os diagnósticos e os cenários de referência (p.7 a p.19). O segundo será sobre o conteúdo programático do plano.

Metodologia e princípios

A estratégia apresentada pelo governo afirma ser um “plano bifocal, com uma visão clara do que se pretende para o País no futuro, mas articulando de forma clara e decisiva as iniciativas de curto prazo que assegurem a direcção certa” (p.7).

Parece ser a melhor metodologia, uma vez que não adianta criarem-se expetativas para daqui a 30 anos, sem concretizar os passos para lá chegar, e nessa medida, a inserção de medidas de curto-prazo é positiva, tendo a vantagem de, desde logo, se poder sindicar a evolução do caminho traçado pelo plano. Facilmente, olhando ao curto-prazo e ao preconizado para aí, se concluirá se existe a necessidade de correção ou não.

Na verdade, não vale a pena realizar planos de longo prazo sem fazer uma avaliação e correção constante, tem de existir um planeamento deslizante.

Esta foi uma das principais falhas metodológicas do anterior plano, o Angola 2025[3]. Não se verificou a sua concretização, e agora (como se verá abaixo) vem-se dizer que, no essencial, falhou.

Também para evitar as falhas do anterior plano, o governo afirma propor um plano realista, baseado em factos. Informa-nos ainda que o plano é aspiracional, tendo resultado de consultas alargadas, que incluíram a sociedade civil, a academia, e o sector privado. Como princípio, é evidente que esta abrangência é desejável e favorável à construção dum plano adequado.

Contudo, tendo em conta a reação de  Heitor Carvalho, economista e coordenador do Centro de Estudos e investigação da Universidade Lusíada de Angola ou a ausência de conhecimento de debate sobre o tema no Conselho Económico e Social criado pelo Presidente da República, e também o desconhecimento público de  colaboração de economistas de relevo como Yuri Quixina ou Carlos Rosado de Carvalho ou mesmo o facto de nós, que desde 2020 publicamos um volume sobre Economia e Política de Angola que esgota sempre, não termos sido chamados a emitir uma opinião, todos estes factos levantam interrogações sobre os setores não estatais que foram ouvidos. A auscultação deveria ter sido mais abrangente.

Como veremos, uma das principais críticas que este plano faz ao anterior é a excessiva estatização. Ora a desestatização deve começar na génese destes trabalhos procurando o maior número de contributos, até para criar consensos do maior número de atores da sociedade civil e da academia.

Finalmente, o documento garante que procurou a sustentabilidade, seguindo uma abordagem holística, que “integra as soluções para os diversos sectores, e reconhece a interdependência do desenvolvimento económico, da inclusão social e da sustentabilidade ambiental” (p. 8), apostando na exequibilidade de forma que as iniciativas propostas sejam alcançadas.

O falhanço do Angola 2025

Um dos aspetos mais interessantes da parte inicial do documento é a assunção corajosa do falhanço do anterior plano Angola 2025, tanto mais corajosa quanto alguns dos responsáveis de então serão os mesmos atualmente.

Refere o governo que em relação à Estratégia de Longo Prazo 2025 (“Angola 2025”)” uma parte importante das metas económicas e sociais ficaram aquém do esperado, sendo que a estratégia anterior promoveu inadvertidamente políticas que tiveram impactos negativos no nosso desenvolvimento.” (p.9).

Portanto, o atual governo além de admitir as falhas do anterior plano, reconhece adicionalmente, que algumas das políticas implementadas foram prejudiciais ao país.

Esta assunção de responsabilidades e culpa é importante, pois deverá permitir que os mesmos erros não se repitam.

Essencialmente, o governo assinala que um dos principais erros do passado foi a promoção do Estado “enquanto o principal agente económico, dominando a maioria dos sectores da economia e deixando um papel menor para o sector privado.” (p.9).

Além do mais, o “Estado desincentivou de forma não intencional por vezes o investimento de longo prazo e de alta qualidade” (p.9).  Quem está familiarizado com as dificuldades de investimento em Angola no passado, desde a necessidade de sócios locais, às dificuldades de expatriação de capitais entende bem estas afirmações. Na verdade, parecia que Angola não queria investimento externo. Aliás o próprio documento reconhece isso, quando se escreve “[o] O Investimento Directo Estrangeiro, que fora do sector petrolífero foi na sua maioria incipiente, foi por vezes visto como uma ameaça aos investidores nacionais, em vez de um impulso para o tecido económico.” (p.9).

Obviamente, o risco de corrupção também afastou muitos investidores. Não havendo dúvidas sobre o novo discurso presidencial sobre o combate à corrupção, a dúvida que persiste é sobre a eficácia dos mecanismos adotados. É um ponto fundamental para o futuro.

Outro aspeto focado, foi que na maioria dos setores da economia, “a concorrência foi prejudicada, com preços mais elevados e bens ou serviços de menor qualidade a serem frequentemente fornecidos aos nossos cidadãos, tornando o País demasiado dependente do sector petrolífero, nas exportações e para o acesso a moeda estrangeira.”

Ora este é outro ponto a que tem de se prestar especial atenção atualmente. Muitos observadores, falam de novos atores económicos a tomar a posição de velhos atores, mas apenas substituindo-os, não estando a ser fomentada uma verdadeira concorrência. O que é fundamental é abolir as barreiras de mercado e promover uma verdadeira concorrência interna (sobre a livre concorrência exterior temos uma posição reservada para outro trabalho).

O resumo do plano anterior é que mais de 60% dos indicadores fixados para 2015 não foram alcançados. Isto diz tudo.

Desenvolvimento humano, capital e produtividade

A parte inicial foca alguns temas que reputamos importantes. O primeiro dos quais é o desenvolvimento humano. Embora salientando algum progresso reconhece que o “Desenvolvimento Humano encontra-se muito dependente da dimensão do Rendimento e penalizado pelo grau de desigualdade económico-social, reflectindo-se num Índice de Capital Humano dos mais baixos do mundo (Angola encontra-se no 4º quartil, com um valor abaixo da África Subsariana e da SADC)” (p.10). Como temos vindo a referir e é importante enfatizar, o diagnóstico realizado pelas autoridades é corajoso e objetivo, não “adoçando” a realidade. Pode ser que o reconhecimento do fracasso seja o primeiro passo para uma política de sucesso.

Ao mesmo tempo, também se verifica que a produtividade do trabalho decresceu, em boa parte devido à reduzida contribuição da “acumulação de capital”. Por sua vez esta falta de capital esteve “em grande medida relacionada com o facto de o Capital Privado ter sido alocado a fins, em média, pouco produtivos e de o Capital Público ter sido responsável por um nível de investimento em infraestrutura muito considerável, mas que não teve o retorno económico esperado”. (p. 14).

Mais uma vez temos objetividade na análise. A política de “acumulação primitiva de capital” de José Eduardo dos Santos foi um fiasco, porque aqueles que acumularam capital não o aplicaram em Angola. Como se sabe, a fuga de capital para a Europa e offshores variadas foi a regra, sabotando assim aquelas que poderiam ter sido as melhores intenções. É por isso que a luta contra a corrupção tem um forte impacto económico. Há que repatriar o capital e garantir o seu investimento em Angola, quer de capital obtido no passado, quer no presente.

Por sua vez, o investimento público tem de deixar de obedecer a interesses obscuros e ser visto numa ótica custo-benefício.

Desafios

Face ao exposto, o governo identifica três temas fundamentais a ter em conta (p.15):

“Em primeiro lugar, um conjunto de desincentivos implícitos e explícitos ao investimento privado (p.ex. sobredimensionamento da presença do Estado na economia; difícil acesso ao crédito; fraca qualidade das infra-estruturas; falta de qualidade do capital humano) que justificam o reduzido contributo desta rubrica na economia do País (excluindo o sector petrolífero) e explicam o facto do peso do investimento directo estrangeiro em Angola ser dos mais baixos entre os pares.” Não poderíamos estar mais de acordo.

“Em segundo lugar, um modelo de desenvolvimento económico a duas velocidades, em que existe um conjunto urbano de sectores de serviços produtivos e desenvolvidos e / ou de concorrência limitada que empregam cerca de 20% da população, que contrastam com sectores informais e / pouco produtivos que empregam 80% da população”.

Temos muitas dúvidas sobre esta asserção, sobretudo acerca das chamadas políticas de “formalização” da economia. E, também, não nos revemos num modelo de crescimento equilibrado da economia. Parece-nos mais adequado seguir uma via de desenvolvimento desequilibrado, uma vez que o desenvolvimento se manifesta em pontos específicos ou polos de crescimento, para depois se espalhar por toda a economia (cfr. por exemplo Albert Hirschman[4])

“Em terceiro lugar, um sub-investimento no capital humano, com o “factor qualidade” (representativo do potencial de produtividade) a comparar-se de forma particularmente negativa com os países de renda semelhante, colocando Angola como um dos países com pior desempenho do Índice de Capital Humano do Banco Mundial.”

É verdade que o capital humano é fundamental, mas acima de tudo, há que obter capital. É um erro pensar que basta a qualificação para um país crescer. Não está estabelecida uma ligação direta entre educação e economia. “A relação directa e simples que delicia comentadores e políticos – despesa entre educação e crescimento económico   – simplesmente não existe”[5].  A questão coloca-se mais ao nível da formação prática. A população tem de ter níveis de formação prática e profissional adequados não se devendo confundir graus educativos com qualidade do capital humano.

Educação

Afirma o relatório que “a maior brecha social – que poderá constringir significativamente a produtividade futura – reside na Educação, sobretudo na componente da qualidade (onde Angola tem dos piores desempenhos do mundo, abaixo da média da SADC ou da África Subsariana)” (p.12). Nesse sentido aponta o foco para a “melhoria profunda da qualidade do sistema educacional, que se apresenta hoje como um dos constrangimentos mais graves ao crescimento do país (Angola está hoje no 4º quartil nesta dimensão – classificação do Banco Mundial, tendo dos resultados mais baixos do mundo)” (p.16).

Esta é uma verdade, que, contudo, não deve levar a políticas erradas. Políticas erradas podem ser exemplificadas com acreditar que basta licenciar pessoas em massa na universidade para se obter crescimento económico. Não há qualquer relação entre um facto e o outro. O tema é mais profundo e implica uma revisão completa do atual sistema educativo angolano, desde métodos de ensino a graus e preferência pelas áreas sociais e humanas, além da falta de rigor e empenho em muitas universidades. É todo um programa.

Conclusões

Estamos perante um relatório corajoso no diagnóstico e erros passados de política económica cometidos, bem como falta de avanço significativo de Angola em muitas áreas essenciais ao desenvolvimento humano e à acumulação de capital.

Feito o diagnóstico a questão que se coloca é se estão a ser escolhidas as políticas adequadas e sobretudo se há vontade política para as implementar.


[1] MEP, (2023), Angola 2050, https://www.mep.gov.ao/angola-2050

[2] Cfr. VOA, (2023) Estratégia “Angola 2050” ante dúvidas sobre sua elaboração e resultados esperados, https://www.voaportugues.com/a/estrat%C3%A9gia-angola-2050-ante-d%C3%BAvidas-sobre-sua-elabora%C3%A7%C3%A3o-e-resultados-esperados/7103882.html

[3] MP (2007), ANGOLA 2025. Angola um país com futuro. S u s t e n t a b i l i d a d e, e q u i d a d e, m o d e r n i- d a d e.  http://www.ucm.minfin.gov.ao/cs/groups/public/documents/document/zmlu/mdmz/~edisp/minfin033818.pdf

[4] HIRSCHMAN, A. O. The strategy of economic development. New Haven: Yale University Press, 1958 e também PERROUX, F. Note sur la notion de Pôle de Croissance. Économie Appliquée, v. 7, p. 307-320, 1955.

[5] WOLF, A. (2002), Does Education Matter?: Myths About Education and Economic Growth. London, Penguin.

Nota CEDESA nº2

A iniciativa Global Gateway da União Europeia e Angola: aproveitar já a oportunidade

A União Europeia (UE) revelou, recentemente, o seu projeto Global Gateway, encarado como uma alternativa europeia para Belt and Road Initiative (BRI) da China.

O Global Gateway é um plano de 300 mil milhões de euros de despesas em infraestruturas que pretende incrementar as cadeias de abastecimento da UE e o comércio em todo o mundo.

A diferença que a UE pretende sublinhar face ao modelo chinês da BRI, é que do lado europeu não se vai conceder empréstimos, mas promover investimentos públicos e privados, apresentando aquilo que considera um financiamento transparente e mais favorável, especialmente para os países em desenvolvimento.

O Global Gateway quer ser uma versão mais moderna do BRI, com foco em investimentos em projetos voltados para o futuro e ambientalmente responsáveis ​​nos setores digital, saúde, educação, investigação científica, energias renováveis e outros.

É evidente que África, e nesta, entre outros, Angola é o alvo lógico desta iniciativa da UE, pois é também onde se verifica uma boa parte da influência chinesa através do BRI. A Comissão Europeia não cita o mercado africano como objetivo prioritário, mas é lógico que o seja, pois foi a chegada de financiamentos chineses que mais prejudicou as empresas europeias, que muitas vezes perderam quota de mercado. E Angola serviu de modelo para a intervenção de China em África, através do estabelecimento do chamado “modelo Angolano”

As autoridades angolanas terão todo o interesse em se colocar em contacto com os responsáveis por este programa da União Europeia para serem as primeiras a desenvolver uma parceria sólida que promova investimentos em três áreas fundamentais para Angola: as energias renováveis, a educação e a saúde.

Eventualmente, o grande salto qualitativo que se quer dar na educação angolana poderia ser a primeira aposta deste projeto europeu. A UE poderia ser a grande financiadora da qualificação das universidades e da investigação científica em Angola, uma vez que é uma adepta do soft power, e seria uma área em que tem uma vantagem competitiva extremamente favorável fácil à alegada concorrência chinesa.

Por outro lado, uma abordagem imediata de Angola para implementação do programa permitirá aferir da seriedade e empenho da União Europeia neste programa, verificando que não se trata de um mero anúncio para efeitos propagandísticos, como muitos alegam.

Em conclusão, recomenda-se vivamente a ação imediata angolana para beneficiar do Global Gateway na área da educação.