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Isabel dos Santos, crimes económicos e uma alta autoridade contra a corrupção

É público que as autoridades angolanas emitiram um mandado de captura internacional relativo a Isabel dos Santos.

Não se discute o mérito do mandado, pois sem conhecer as acusações concretas será tudo especulação, mas atenta-se na oportunidade. E o que chama a atenção, em termos de oportunidade,  é o espaço de tempo que decorreu entre a saída de Isabel dos Santos de Angola (Agosto de 2018) ou a publicação dos denominados Luanda Leaks (Janeiro de 2020) que a comprometeriam de forma inabalável e a emissão do mandado (Novembro de 2022). Isto é, entre dois e quatro anos para emitir um mandado.

Obviamente, que é tempo demais sem ouvir direta e pessoalmente Isabel dos Santos em processos criminais com a pública e notória envergadura destes.

Este hiato temporal faz questionar sobre o que falhou no sistema judiciário angolano. A resposta parece encontrar-se no modelo seguido em Angola na chamada “luta contra a corrupção”, ou, generalizando, no grande crime económico.

As autoridades angolanas optaram por remeter os casos de grande crime económico para os meios comuns, Procuradoria-Geral da República, Tribunais ordinários, etc.  O problema é que questões de “captura do Estado”, ou “privatização da soberania” como as que aconteceram em Angola dificilmente seriam resolvidas pelos meios comuns que têm os seus tempos e as suas práticas burocratizadas, muitas vezes comprometidas com os próprios atores dos supostos crimes.

A luta contra o crime económico a este nível de “captura do Estado” tem exigido nos, vários países em que acontece, a criação de instrumentos especiais para ultrapassar os obstáculos estruturais acima referidos.

Pode-se começar pelos Estados Unidos, onde situações de grande gravidade com impacto político, como as investigações a Richard Nixon, Bill Clinton ou Donald Trump têm assentado na nomeação de um Procurador Independente ( independent counsel). Estes procuradores independentes têm poderes próprios e podem ultrapassar as estruturas federais normais.

Na África do Sul, onde surgiu com extrema relevância a expressão “captura do Estado”, a opção foi a criação de uma poderosa Comission of Inquiry into Allegations of State Capture, mais conhecida como Comissão Zondo, nome do juiz que presidiu à Comissão. Esta Comissão levou a cabo um exaustivo e independente trabalho de investigação que originou vários relatórios que agora servem de base para acusações criminais. Também existiu na Ucrânia, antes da guerra, a criação de um sistema apoiado por várias entidades internacionais.

O ponto essencial deste muito breve excurso internacional é que situações de corrupção muito grave que colocam em causa a viabilidade ou sobrevivência do Estado impõem soluções de combate que saem da esfera do sistema judiciário normal, que porventura estará também assolado pelos mesmos problemas de corrupção e “captura de Estado”. Portanto, são normais as dificuldades que o combate ao crime económico encontra em Angola, sendo importante mudar a estrutura e a metodologia.

A mudança da estrutura e metodologia do combate à corrupção em Angola assenta na instituição duma Alta Autoridade contra a Corrupção com poderes judiciais próprios e independentes para investigar, acusar e levar a julgamento os grandes casos de corrupção num sistema judiciário e judicial único. A Alta Autoridade contra a corrupção poderia investigar, interrogar, apreender, fazer buscas e decretar medidas cautelares nos termos da Lei e depois teria uma Câmara para julgamentos ou remeteria diretamente a uma nova Câmara de crimes económicos junto do Tribunal Supremo. Operando no quadro constitucional e legal, esta Autoridade seria um organismo específico para reprimir a corrupção. Esta Alta Autoridade teria competência exclusiva para todos os casos principais de corrupção e faria os cruzamentos internacionais necessários.

As nações necessitam de estruturas específicas, focadas e flexíveis para combater a criminalidade económica mais evoluída como é a grande corrupção. Em Angola, urge uma estrutura desse tipo. É importante dar este passo na área da criminalidade económica.

As novas ameaças e o reforço das Forças Armadas Angolanas

Novas ameaças a Angola

A história de Angola tem sido uma constante de desafios e superações, tendo estado a sua sobrevivência como entidade única ameaçada desde a independência em 1975. Nunca é demais lembrar que a própria independência foi declarada em diferentes horas e vários locais por entidades diversas, com maior ou menor legitimidade. Agostinho Neto proclamou a independência da República Popular de Angola às 23h de 11 de novembro de 1975, em Luanda. Holden Roberto, líder da FNLA, anunciava a Independência da República Popular e Democrática de Angola à meia-noite do dia 11 de novembro, no Ambriz e Jonas Savimbi fazia o mesmo pela UNITA na então Nova Lisboa no mesmo dia, declarando o nascimento da República Social Democrática de Angola.

Imediatamente, seguiu-se uma guerra civil que mais ou menos esporadicamente, abrangendo maiores ou menores áreas, durou até 2002. As tentativas de invasão externa também foram frequentes, a África do Sul ainda antes da independência entrou pela Namíbia e o Zaire de Mobutu fez o mesmo a norte. Depois foi a vez de Cuba, a convite do governo de Luanda também entrar no país para contrapor as outras invasões.[1]As intervenções indiretas das então superpotências, também abundaram, sendo desnecessário recordar as ameaças de desintegração que o país viveu até ao final da guerra civil em 2002.

Depois dessa data as ameaças que se colocaram a Angola diminuíram, embora muitas permanecessem latentes e outras surgissem como as ligadas à captura do Estado e corrupção.[2]

Na atualidade, há um incremento das ameaças externas pós 2002, não assumindo os contornos dramáticos dos anos a seguir à independência, mas colocando exigentes desafios às forças de defesa da soberania, integridade territorial e ordem pública nacional.

Separatismo

A nível interno, vislumbra-se o reacender das tentativas separatistas, quer nas Lundas, quer em Cabinda, que poderão ser rastilho para outras iniciativas. Relativamente a Cabinda surgiram recentemente relatos nas redes sociais, replicados nalguns órgãos de comunicação social de confrontos entre o braço-armado da Frente de Libertação do Estado de Cabinda (FLEC) e as Forças Armadas Angolanas (FAA).[3] Esses ataques, reais ou virtuais, sucedem-se a várias queixas da República Democrática do Congo (RDC) acerca de incursões angolanas no seu território em aparente hot pursuit de membros da FLEC. Em agosto passado, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da RDC, Célestin Mbala Musense, criticava supostas incursões da Marinha angolana em águas territoriais do país em operações contra rebeldes de Cabinda e afirmava que os soldados das FAA estariam a multiplicar as incursões na perseguição aos rebeldes da FLEC. [4]

A par deste eventual recrudescimento militar, que não é certo e sobre o qual não existe informação fidedigna, surge uma corrente de opinião devidamente publicitada que invoca a necessidade de uma solução, embora não se perceba qual seja, ou se apresenta cansada de um confronto.

A verdade é que a Constituição de Angola (CRA) no seu artigo 5.º, n.º 6 é determinante ao prescrever que: “O território angolano é indivisível, inviolável e inalienável, sendo energicamente combatida qualquer acção de desmembramento ou de separação de suas parcelas, não podendo ser alienada parte alguma do território nacional ou dos direitos de soberania que sobre ele o Estado exerce.” Note-se que esta formulação implica que qualquer território permaneça sempre como parte integrante do Estado, mas não proíbe diferentes estatutos e aproximações, como o estabelecimento de autonomias sempre integradas no todo nacional e de autarquias locais, mais ou menos descentralizadas.

Há, portanto, um dever constitucional de combater qualquer tentativa de secessão territorial, admitindo a CRA o uso da força para que tal aconteça (“energicamente combatida”). Neste âmbito as FAA desempenharão um papel crucial em evitar qualquer desmembramento. Além do direito constitucional, também é fácil de perceber que qualquer separação ou “desligamento” de Cabinda face a Angola teria um efeito desagregador do país, que como se sabe, historicamente, é uma construção recente e em progresso.

Isso leva à segunda ameaça do mesmo tipo separatista existente nas Lundas. Em janeiro de 2021, houve um confronto sangrento, cujos contornos foram devidamente descritos no texto de Rafael Marques, “”Miséria & Magia.”[5]Além de aspetos socioeconómicos, o evento tem sido visto como ligado às tentativas independentistas de um autodesignado Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT).

É evidente que, em primeiro lugar é dever do Estado e do governo tratar os agravos das populações locais atendendo às suas reivindicações de cariz desenvolvimentista, económico e social. Trata-se primordialmente duma questão política e de progresso. Contudo, não vale a pena ignorar que no final haverá sempre que garantir a integridade e soberania nacionais e as FAA poderão ter um papel determinante para assegurar a coesão do território.

É por isso que se considera que uma ameaça real à soberania de Angola são as pulsões ou intenções separatistas de parte do seu território, cabendo às FAA como esteio do Estado garantir a integridade e unidade do Estado.

Captura do Estado e corrupção

A segunda ameaça existente a nível interno liga-se com a referida captura do Estado e combate à corrupção. A opção do poder político foi entregar o combate à corrupção aos meios judiciais comuns, portanto, tal não é uma função das FAA, mas das forças policiais, de investigação criminal e magistraturas. As FAA apenas entram naquilo que se refere à “captura do Estado”. Se porventura forças ou entidades que beneficiarem da corrupção tentem afetar o normal funcionamento do Estado de Direito e da Justiça, fragilizando o poder político, pode-se entender que as FAA terão o dever de defender a constitucionalidade e a legalidade, não intervindo nos processos judiciais concretos, mas garantindo as condições de tranquilidade e paz para que os órgãos judiciários normais façam o seu trabalho. Esta é uma linha difícil de traçar para a atuação dos militares, pelo que a postura aqui deve ser entendida como de vigilância e simbólica de suporte à atividade das forças policiais e não de intervenção direta.

Se o separatismo e a “captura de Estado” são as ameaças à soberania e paz em Angola, do ponto de vista externo existem mais e variadas ameaças que têm que ser elencadas e aumentaram nos últimos anos, obrigando a uma especial atenção das FAA. Destacam-se como ameaças externas:

  1. a instabilidade em países vizinhos, designadamente a RDC;
  2. o alastramento do terrorismo designado como islâmico;
  3. crime e pirataria marítima;
  4. o aumento da concorrência entre as potências mundiais com interesses em bens africanos.

Algumas palavras rápidas sobre cada um destes segmentos:

  1. a instabilidade em países vizinhos, designadamente a RDC

Embora pela primeira vez tenha ocorrido em 2018/2019 uma transição pacífica de poder no Congo (RDC), a verdade é que a situação nesse enorme país está longe de estar controlada. A porosidade com a fronteira de Angola é um facto, habitualmente, referido, mas o problema essencial é que Tshisekedi, o Presidente da República e o aparato estatal parecem não controlar vastas zonas do país que, segundo alguns, estão submetidas a milícias fomentadas pelo Ruanda para buscar riquezas para processamento nesse país. Recente artigo do docente angolano e membro do partido do governo angolano, Benjamim Dunda, refere que “O que alguns não sabem é que Ruanda é a porta de entrada e saída da pilhagem dos excessivos recursos minerais da RDC. Boa parte da interminável instabilidade da vizinha nação de Mobutu, tem as impressões digitais de Kagame. O Exército Patriótico Ruandês (EPR) e militares do Uganda ocupam militarmente parte do território da RDC. O Coltan (columbita e tantalita) é actualmente o minério mais cobiçado mundialmente pelas indústrias de tecnologia. 80% das reservas mundiais encontram-se na República Democrática do Congo.”[6] Sem o tom exaltado de Dunda, Laura McCreedy, do Centro de Operações de Paz do International Peace Institute afina pelo mesmo diapasão, referindo já este mês existiram relatos da retomada da violência por procuração (proxy violence) – atribuída ao Uganda, Ruanda e Burundi – bem como as recentes operações ofensivas contra as Forças Democráticas Aliadas (ADF) pelas forças de Uganda e a suposta presença da polícia ruandesa e tropas burundesas no leste da RDC, o que é particularmente alarmante[7].

O que aparenta é que existe um conflito latente na RDC que está longe de ser resolvido, a que acresce uma espécie de invasão assimétrica, utilizando as técnicas popularizadas por Vladimir Putin na Crimeia e Ucrânia, por forças do Ruanda e talvez do Uganda dentro da RDC. Isto pode provocar a breve trecho uma guerra mais intensa e não tão dissimulada no país com efeitos óbvios em Angola. Não esquecer que Angola esteve presente nas denominadas Primeira Guerra Civil do Congo (1996-1997) e Segunda Guerra Civil do Congo (1998-2003), além de ter intervindo direta ou indiretamente nos momentos relevantes subsequentes da história da RDC. Consequentemente, não será indiferente ao evoluir da situação na RDC e a esta espécie de invasão discreta ou disfarçada que ocorre, tendo as FAA, pelo menos um papel dissuasor.

2. o alastramento do terrorismo designado como islâmico

A realidade religiosa angolana não faria antever um perigo iminente proveniente do terrorismo islâmico. No entanto, existem dois fatores que devem ser tidos em conta para aumentar o grau de perigo do terrorismo islâmico em Angola.

O primeiro fator é que aquilo que muitas vezes se chama “terrorismo islâmico” não tem uma real conotação religiosa, mas representa uma espécie de franquia ou marca adotada por movimentos ou guerrilhas insurrecionais em zonas degradadas económico-socialmente. Quer isto dizer que é possível que em áreas descontentes em Angola surjam movimentos terroristas “islâmicos”, que de maometano nada tenham a não ser a designação, adotada para infundir o medo e terror nas populações e autoridades. Aliás, parece claro que os vários movimentos terroristas islâmicos que surgem em África não resultam de um comando ou planificação central, antes sendo células mais ou menos autónomas que se imitam e mutuamente inspiram, buscando elementos comuns na propaganda e metodologias. Como dizem os especialistas da Chatham House, Alex Vines e Jon Wallace, “[Em África, a] linha entre o jihadismo, o crime organizado e a política local é muitas vezes turva e ainda mais complicada por fatores globais, como mudanças climáticas, crescimento populacional e migração.[8]”Quer isto dizer que o “caldo” referido pode surgir em Angola, e de repente, a bandeira islâmica ser atrativa para grupos insurrecionais descontentes com o governo.

A este primeiro fator, junta-se o alastramento que vai percorrendo o continente africano relativamente ao terrorismo islâmico e que vai cercando paulatinamente Angola. Na vizinha RDC, embora ainda longe das fronteiras angolanas, já se fala de terrorismo islâmico a propósito da ADF (Allied Democratic Forces), fazendo-se ligações desta organização ao Estado Islâmico. Na Tanzânia referem-se pequenos ataques como os de outubro de 2020, na aldeia de Kitaya na região de Mtwara; ataque que foi reivindicado por extremistas islâmicos que operam a partir do norte de Moçambique. Obviamente, que o caso de Cabo Delgado em Moçambique é paradigmático da combinação que se pode antever para Angola, um descontentamento socioeconómico aliado ao surgimento do terrorismo islâmico. Mais a norte, seja na República Centro Africana, seja no Chade, seja na Nigéria, há uma permanente ameaça de grupos terroristas que se identificam como islâmicos.

A porosidade das fronteiras, aliada às dificuldades socioeconómicas tornam-se magnetos poderosos para a expansão do terrorismo que se pode tornar uma ameaça interna em Angola, e já é certamente uma ameaça fronteiriça e em propagação pelo continente africano.

3. crime e pirataria marítima

De Cabo Verde à costa angolana, os ataques a navios aumentaram nos últimos anos. Nesta vasta região marítima, os piratas – inicialmente concentrados em torno do Delta do Níger – estenderam as suas atividades a todas as costas nigerianas, bem como ao Benin e ao Togo. Desde 2011, não menos de 22 atos de pirataria foram registados no Benin, afetando o tráfego no porto de Cotonou, que caiu 60%. O grande impacto económico do crime marítimo – que inclui pesca ilegal, tráfico de drogas e armas – nas costas da África Ocidental aumenta todos os anos. O Golfo da Guiné é agora considerado a zona vermelha marítima do continente.[9]

A posição de Angola tem sido clara, assumindo-se como motor estratégico do combate à pirataria, apontando para a criação de uma estratégia de financiamento governamental no Golfo da Guiné e na região dos Grandes Lagos, reconhecendo que a criminalidade tem vindo a crescer nesta área, pondo em perigo a própria região do ponto de vista nacional, internacional e regional. É nesta perspetiva que Angola atribui grande importância aos espaços marítimos que têm que ser controlados. De facto, dos 90 por cento dos crimes cometidos no oceano Atlântico, 70 por cento ocorrem no Golfo da Guiné o que é preocupante.

4. o aumento da concorrência entre as potências mundiais com interesses em bens africanos

Esta situação é mais geral e talvez menos iminente em causar disrupção que as anteriores, contudo, existe e a médio-prazo pode ser a principal ameaça para Angola. Alguns autores falam de uma nova “corrida para África”, como aquelas que ocorreram no final do século XIX a propósito da Conferência de Berlim e após as independências no âmbito da Guerra Fria. Angola foi obviamente parte central de ambas as “corridas”. A primeira serviu para lhe delimitar as fronteiras e completar a intervenção colonial portuguesa, enquanto na segunda foi um dos principais palcos de batalha do confronto EUA-União Soviética. A prestigiada revista inglesa The Economist resumia em 2019 a nova, e terceira, corrida para África, escrevendo que há uma terceira onda em andamento. O continente é importante e está a tornar-se cada vez mais importante, principalmente por causa de sua crescente participação na população global (até 2025 a ONU prevê que haverá mais africanos do que chineses). Governos e empresas de todo o mundo estão a correr para fortalecer os laços diplomáticos, estratégicos e comerciais.[10] Na verdade, quem primeiro discerniu as oportunidades do continente foram os chineses que desde o início do século XXI apostam fortemente em África, sendo Angola o seu principal parceiro, pelo menos em termos de dívida. O restante mundo só agora re-acordou para África. Mas de facto, verificamos a Turquia em busca de novos mercados e aliados desde que abandonou o alinhamento com a União Europeia, os países do Golfo Pérsico na mesma linha procurando projetos de diversificação para as suas economias, e a União Europeia, liderada por Alemanha e França, com a Itália e Espanha também com intensidade retomando velhos e arranjando novos contactos, quer por motivos económicos, quer para tentar estancar a imigração clandestina que afeta os seus países e pode fazer perder eleições aos seus governos. Igualmente a Rússia, no misto de retomada imperial e procura de negócios volta a África. Apenas os Estados Unidos da América prosseguem desde Donald Trump uma política adormecida em relação ao continente, não entendendo ainda muito bem o que estão a fazer de substancial, além de alguns ruídos contra a China e/ou a propósito do terrorismo islâmico. No entanto, esta letargia pode terminar.

Neste momento, é a China que vai muito à frente na nova corrida para África. A partir do momento em que europeus e norte-americanos entendam definitivamente- estamos ainda numa fase ambivalente-que a presença chinesa em África é uma ameaça aos seus interesses geopolíticos e económicos, acentuar-se-á a competição. Recorde-se que a China atualmente absorve de África cerca de 60% das exportações de cobalto; 40% de ferro; e 25-30% de suas exportações de cromo, cobre e manganês.

Consequentemente, o papel de Angola como detentor de matérias-primas fundamentais e força estabilizadora da RDC, outro repositório imenso de recursos, será determinante.

O momento atual das FAAs

Face ao exposto, facilmente se compreende que este tempo é de grande exigência para as FAAs que podem ser novamente chamadas a desempenhar funções de sobrevivência nacional.

Neste momento, de acordo com as fontes mais credíveis, as FAAs são compostas por aproximadamente 107.000 soldados ativos (100.000 Exército; 1.000 Marinha; 6.000 Força Aérea); estima-se ainda 10.000 na Polícia de Reação Rápida (2021).[11]

A despesa militar é de cerca de 1,7% do PIB, portanto, abaixo dos 2% que os Estados Unidos pretendem como parâmetro para os países da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte de que obviamente Angola não faz parte, mas cujo parâmetro pode servir de valor ideal de dispêndio militar). Não é uma despesa exagerada, ao contrário, do que se poderia pensar.

A maioria das armas e equipamentos militares angolanos são de origem russa, soviética ou do Pacto de Varsóvia; desde 2010, a Rússia continua a ser o principal fornecedor de equipamento militar para Angola.[12]

Em relação à sua capacidade militar em 2022, Angola está classificada em 66º lugar entre 140 países considerados pela Global Fire Power. [13] As suas forças contam com 320 tanques, 1210 veículos blindados, e várias peças de artilharia. Note-se, contudo, que os tanques são essencialmente antigos, adquiridos na década de 1990 com origem na União Soviética. Da pesquisa que realizámos, apenas conseguimos encontrar um veículo tipo tanque-destroyer razoavelmente moderno (de 2016), o PTL-02 Assaulter comprado à China. Quanto às forças navais, embora possuindo uma costa alargada e responsabilidades no Golfo da Guiné, o país apenas dispõe de 37 barcos de patrulha e nenhum navio de porte médio ou maior como corvetas, fragatas ou cruzador.

Quanto à Força Aérea são contabilizados 299 aviões, dos quais 71 caças, 117 helicópteros e 15 helicópteros de ataque.

Uma recente análise do África Monitor, que, há que anotar, tem refletido uma postura crítica do governo de João Lourenço, apresenta uma suposta factualidade, que mesmo que esteja exagerada ou represente um prisma demasiado pessimista, traça um quadro pouco animador acerca da prontidão e material da Força Aérea e Marinha Angolanas. Segundo, esta publicação, a frota da marinha de guerra tem os seus níveis de operacionalidade cronicamente “prejudicados por incumprimento de exigências de manutenção e/ou impreparação das suas tripulações.”[14] Também na Força Aérea a paralisia será a palavra-chave. De acordo com o mesmo periódico, estarão paralisadas “as unidades da frota de helicópteros de transporte que ainda operavam (Mil Mi-8, de fabrico russo), quer aparelhos da década de 1980-1990, quer unidades recondicionadas posteriormente”, existe uma “incapacidade para assegurar a manutenção de helicópteros de combate (Mil Mi-24)” e  também em “situação de quase paralisia estão(…), há mais tempo, as frotas de caças MiG-21 e MiG-23, de fabrico soviético, e Sukhoi (Su-22, Su-25, Su-30, Su-27).[15]

Especialistas com quem contactámos diretamente e que preferem manter anonimato asseguram que nos últimos anos não existiu qualquer compra significativa de material militar. Assim, aparentemente, pode existir uma necessidade de reforço com estes ramos das forças armadas.

Em resumo, vislumbram-se necessidades nas Forças Armadas de três tipos: material obsoleto e não modernizado, falta de manutenção do equipamento e impreparação de alguns quadros para atividades específicas. Tal torna, obviamente, importante a intervenção nas FAAs no sentido de aumentar o seu orçamento e elevar a sua capacidade operacional face aos desafios descritos.

Vetores de modernização das FAAs

De tudo o exposto resulta dois pressupostos de base que nos levam a uma conclusão simples. Os pressupostos são que as ameaças à soberania e integridade de Angola aumentaram nos últimos anos depois de um período de alguma acalmia após 2002. Hoje o país defronta-se com uma nova “corrida para África” das grandes potências e das emergentes, a ameaça do terrorismo designado como islâmico espalha-se pelo continente e a pirataria e criminalidade no golfo da Guiné ao longo da costa são uma realidade. A isto acresce o renovar das tendências separatistas internas e a forte reação da oligarquia anteriormente dominante ao combate contra a corrupção. A estes factos correspondem, neste momento, umas FAAs com algumas lacunas ao nível de material, prontidão e treino, o que pode, eventualmente, inviabilizar uma reação adequada em caso de incremento de alguma das ameaças expostas.

Resulta da equação destes pressupostos que uma política de modernização das FAA em termos de equipamento, treino e prontidão/ manutenção é fundamental. Ao contrário, do que muitos alegariam é necessário um reforço do orçamento militar e uma reforma modernizadora das Forças Armadas.

O Orçamento Geral do Estado para 2022 ainda não reflete totalmente essas necessidades. Se reparamos, de 2021 para 2022 há um incremento nominal dos gastos de defesa de 19,7%. Basta pensar que a inflação oficial se situa na ordem dos 27% em 2021[16]para se perceber que em termos reais o dispêndio com a defesa diminui, levando provavelmente a cortes na esfera militar. Por sua vez, os gastos com a defesa equivalem a 1,4%PIB.[17]

Entendemos que a modernização das FAA tem um vetor qualitativo que deve ser definido pelos especialistas na área e envolver a prontidão das Forças Armadas, a sua capacidade de implantação e níveis de sustentabilidade, bem como a qualidade da força que pode exercer. Contudo, o vetor que nos debruçamos neste relatório é o quantitativo e apresentamos a sugestão muito simples já adotada pelos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), que é a de situar a despesas com a defesa na ordem dos 2% do PIB.[18] Este não é um número mágico e pode ser objeto de muitas críticas, mas representa um parâmetro objetivo e quantificável, e na verdade confere ao poder político um instrumento mensurável para atingir[19], o que pode ser um avanço nas políticas de boa governação e transparência que se pretendem implementar em Angola.


[1] Cfr. Pedro Pezarat Correia (1991), Descolonização de Angola: jóia da coroa do império português, Lisboa: Inquérito; Silva Cardoso (2000) Angola, anatomia de uma tragédia, Lisboa: Oficina do Livro; «Involvement in the Angolan Civil War, Zaire: A Country Study». United States Library of Congress;

 Donald S. Rothchild (1997). Managing Ethnic Conflict in Africa: Pressures and Incentives for Cooperation. Brookings Institution Press. pp. 115–116; Ndirangu Mwaura, (2005). Kenya Today: Breaking the Yoke of Colonialism in Africa. pp. 222–223; Chester A Crocke, Fen Hampson, Pamela Aall, Pamela (2005). Grasping The Nettle: Analyzing Cases Of Intractable Conflict.

[2] Para uma boa definição destes temas na África do Sul, mas com aplicação conceitual a Angola ver Judicial

Commission of Inquiry into State Capture Report: Part 1  [Zondo Report] (2022).

[3] Simão Lelo, (2022), Ataques em Cabinda: Aumentam apelos para uma solução, Deutsche Welle, https://www.dw.com/pt-002/ataques-em-cabinda-aumentam-apelos-para-uma-solu%C3%A7%C3%A3o/a-60489955

[4] Cópia de documentos na posse do CEDESA e referidos na imprensa, por exemplo, em https://e-global.pt/noticias/lusofonia/angola/chefe-do-estado-maior-congoles-protesta-contra-violacoes-do-territorio-por-angola/

[5] Morais, Rafael, (2021), Miséria & Magia, MakaAngola & UFOLO.

[6] Benjamin Dunda (2022), O que não dizem do Ruanda e de Kagame, https://camundanews.com/noticia/9593/dupla-nacionalidade-da-presidente-do-tribunal-constitucional-nao-viola-constituicao.html

[7] Laura McCreedy (2022), What Can MONUSCO Do to Better Address the Political Economy of Conflict in DRC? https://reliefweb.int/report/democratic-republic-congo/what-can-monusco-do-better-address-political-economy-conflict-drc

[8] Alex Vines e Jon Wallace, (2021), Terrorism in Africa, Chatham House, https://www.chathamhouse.org/2021/09/terrorism-africa

[9] Baudelaire Mieu (2021), Cameroon, Nigeria, Angola: Increased pirate activity along western coasts, The Africa Report, https://www.theafricareport.com/70478/cameroon-nigeria-angola-increased-pirate-activity-along-western-coasts/

[10] The Economist (2019), The new scramble for Africa, https://www.economist.com/leaders/2019/03/07/the-new-scramble-for-africa

[11] Angola. The World Factbook (2022) CIA, https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/angola/#military-and-security

[12] Idem nota supra

[13] Cfr. https://www.globalfirepower.com/country-military-strength-detail.php?country_id=angola 

[14] África Monitor, Nº 1334 |20.JAN.2022 |Ano XIX.

[15] Idem nota supra.

[16] https://www.bna.ao/#/, taxa de inflação apresentada a 28-01-2022  é de 27,03%.

[17] Ministério das Finanças, (2021), RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO

Orçamento Geral do Estado 2022, p.68.

[18] North Atlantic Treaty Organization, (2014) “Wales Summit Declaration,” press release,

September 5, www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_112964.htm

[19] Sobre as críticas e vantagens ver Jan Techau (2015), THE POLITICS OF 2 PERCENT. NATO and the Security Vacuum in Europe. Carnegie Foundation.

Os bloqueios e a reforma da justiça angolana

1-Introdução. O foco na justiça

A visão inicial do papel da justiça em Angola ficou estabelecida na lei constitucional inicial a seguir à independência em 1975, a Lei Constitucional de 11 de novembro de 1975. Esta lei fundamental considerou os tribunais como órgãos de Estado, cabendo-lhes em exclusivo o exercício da função jurisdicional com vista à realização duma justiça democrática (artigo 44.º), sendo assegurado que no exercício das suas funções os juízes são independentes (Artigo 45.º).

Curiosamente, o princípio básico referente ao poder judicial não é muito diferente do atualmente consagrado na Constituição da República de Angola de 2010 (CRA), apesar das mudanças de sistema político entretanto ocorridas. Os tribunais continuam a ser órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artigo 105.º e 174.º) e “no exercício da função jurisdicional, os tribunais são independentes e imparciais, estando apenas sujeitos à Constituição e à lei.” (artigo 175.º). Há uma continuidade estrutural na conceptualização essencial do poder judicial desde a independência, embora as suas formas e práticas tenham variado ao longo do tempo[1].

Em termos de relevância, talvez o denominado “combate à corrupção” anunciado em 2017 pelo Presidente João Lourenço tenha trazido um foco para a justiça que nunca tinha existido anteriormente, e por isso, hoje seja fundamental discutir a reforma da justiça.

Pelo que se vê pela referência sumária que se fez aos textos constitucionais, não houve ao longo do tempo especial preocupação doutrinal ou mesmo prática com os juízes e a aplicação da justiça. Aliás, em 1977, ficou famoso ao dito atribuído ao então Presidente da República Agostinho Neto, a propósito dos eventos do 27 maio, em que foi fuzilada uma multidão de pessoas: “Não vamos perder tempo com julgamentos[2]”. A justiça ocupou sempre um papel secundário nas preocupações principais dos governos angolanos e provavelmente da opinião pública.

Só após o início de processos sobre os “famosos” (Filomeno dos Santos, Augusto Tomás, Manuel Rabelais, e no cível Isabel dos Santos) e algumas acusações e julgamentos é que a justiça se tornou o palco da luta política e centrou atenções. É um facto muito interessante que João Lourenço tenha escolhido entregar o combate contra a corrupção à justiça ordinária e com isto desafiando-a a ser eficaz. Mais tarde, a luta política ainda entrou mais nos tribunais, com o famoso acórdão do Tribunal Constitucional sobre a UNITA que declarou nula a eleição de Adalberto da Costa Júnior[3].

Estes dois factos convergentes, a entrega do combate à corrupção aos tribunais ordinários e a destituição de Adalberto da Costa Júnior pelo tribunal constitucional originaram dois fenómenos inovadores no mundo judicial angolano.

Em primeiro lugar, ligou-se uma espécie de luz muito forte que passou a iluminar as atividades do poder judicial. O que antes se passava na obscuridade e ininteligibilidade do linguajar jurídico passou a estar visível para o grande público, e muitos defeitos do sistema surgiram a olho nu: a lentidão, a falta de especialização técnica ou a ausência de meios materiais.

Em segundo lugar, os tribunais tornaram-se o objeto do forte ataque de todos os que não concordavam com as decisões ou não teriam medo de ser abrangidos por elas. Assim, uma boa parte da elite angolana, que tem receio de ir parar a um tribunal, começou a criticar ferozmente os tribunais, as suas decisões, o seu funcionamento, a sua independência. O objetivo destas atitudes é muito simples: deslegitimar as decisões judiciais., desvalorizando o seu peso. A isto juntam-se as declarações bombásticas de muitos dos advogados de defesa, que não hesitam na crítica cerrada às decisões que não beneficiam os seus constituintes. Ao mesmo tempo, este desagrado e “campanha” anti- tribunais foi acelerada pelo descontentamento com a decisão do tribunal constitucional referente à UNITA.

Consequentemente, os tribunais tornaram-se um campo de luta política e legal. É falso e errado afirmar aquele velho jargão que “a justiça e a política não se misturam”. Na realidade, em Angola estão bem misturadas, como em Portugal ou nos Estados Unidos[4].

Todos estes factos levam ao questionamento do papel da justiça em Angola, sublinhando-se, sobretudo, a sua lentidão e eventual politização. Na verdade, esta discussão acaba por ser benéfica porque do questionamento, surge a discussão e a necessidade de reforma.

O que há que garantir é que esta justiça em que a política entrou, se mantém imparcial e independente, tomando as suas decisões sem influências, de forma transparente e tecnicamente fundamentada no direito. É com esse desiderato que a justiça angolana poderia ser reformada.

2-Os bloqueios: o paradigma legal, os meios materiais e orçamento, a corrupção, a questão política.

Com o intuito de se propor uma reforma adequada da justiça angolana, haverá que prioritariamente identificar os bloqueios e impedimentos ao bom funcionamento desta, pois será nestes “nós górdios” e não em declarações gerais e abstratas que se deverá centrar o processo reformista.

             Identificámos cinco bloqueios que impedem o bom funcionamento da justiça em Angola:

             1-O paradigma legal inadequado;

             2-A falta de meios materiais e gestão eficiente do orçamento;

             3- A corrupção;

             4- A questão política.

              Vamos analisar, ainda que sumariamente, cada um destes bloqueios.

2.1-O paradigma legal inadequado

O primeiro bloqueio do sistema judicial angolano é aquele que não se vê, pois envolve todo o sistema e por isso deixa de haver a perceção da sua existência. Trata-se do paradigma legal em que o direito angolano se move. É fácil entender que apesar de alguma proximidade com as fórmulas marxistas entre 1975 e 1992, o direito angolano se manteve essencialmente idêntico ao direito português, quer nos grandes corpos legislativos, quer na doutrina, quer na formação.

Em termos de legislação é um facto que durante décadas após a independência, as leis portuguesas continuaram a ser as leis angolanas. O Código Civil e o Código de Processo Civil ainda são os recebidos do Portugal na década de 1960, enquanto o Código Penal da Monarquia e o Código do Processo Penal do início do Estado Novo apenas foram substituídos em 2021, e por textos muito semelhantes, quando não cópias, dos textos entretanto aprovados em Portugal após o 25 de abril de 1974.

Se ao nível legislativo impera a influência portuguesa, ao nível doutrinal também. Os professores portugueses são os mais citados na jurisprudência angolana. Basta exemplificar com o acórdão do Tribunal Constitucional referente à UNITA (Acórdão n.º 700/2021), cuja doutrina citada é principalmente portuguesa. São referidos Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, Carvalho Fernandes, Abílio Neto, Alberto dos Reis, Ana Prata, todos portugueses, para consubstanciar a deliberação dos juízes. Apenas um angolano, Raul Araújo, é mencionado. Naturalmente, que este pequeno detalhe doutrinal revela o quanto o direito angolano ainda é subsidiário de Portugal.

O mesmo acontece em termos de formação. Uma boa parte dos Manuais utilizados no ensino ainda é de autores portugueses ou escrito em colaboração entre angolanos e portugueses o que já é uma evolução. No direito constitucional pontifica o manual do professor Bacelar Gouveia, português, ou dos professores Jónatas Machado, Nogueira da Costa e Esteves Hilário, aqui uma colaboração mista Portugal-Angola, como acontece com o manual fundamental de direito administrativo de Carlos Feijó e Diogo Freitas do Amaral. Ao mesmo tempo, ainda é tido como a graduação mais prestigiante obter um mestrado ou doutoramento em direito nas universidades de Lisboa ou Coimbra.

Não haveria aqui problema especial se o direito português correspondesse às exigências da modernidade e a sua prática se traduzisse em simultâneo em algo de justo e eficaz. O problema é que o direito português, e por absorção o direito angolano, vivem num paradigma burocrático e pouco prático. As normas e formas de agir do direito português estão desatualizadas, a interpretação da lei tornou-se exageradamente subjetiva, nunca se sabendo exatamente ao que se vem, as normas processuais implicam longos julgamentos, e a tendência, na área criminal tem sido de diminuição dos direitos dos arguidos, chegando-se a uma situação em que nem os processos terminam em tempo útil para a justiça, nem já os arguidos têm defesas e garantias adequadas. No direito criminal português caiu-se no pior dos mundos, processos lentos, inquisitórios e arguidos sem direitos, dependendo do bom-senso dos magistrados e pouco mais. É um direito injusto. Por sua vez, o direito processual foi transformado, sobretudo pelo famoso professor coimbrão Alberto dos Reis numa ciência demasiado elaborada a que poucos iniciados têm acesso, atravancando os processos, e em que os objetivos de velocidade e justiça deixaram de existir.

O sistema jurídico português, em cujo paradigma Angola se move, é lento, confuso e pouco adequado aos tempos atuais, geralmente não sendo justo, nem célere, deixando em demasia tudo nas mãos dos juízes. Ora, esse é o problema essencial com que se debate o sistema judicial angolano e o primeiro bloqueio a superar.

2.2-A falta de meios materiais e gestão eficiente do orçamento

Tem sido persistente a contenção de que a justiça angolana está depauperada e não tem meios. No, agora longínquo ano de 2017, a 26 de maio, entrara no Tribunal Provincial da Comarca de Luanda um requerimento da Associação dos Juízes de Angola, com vista ao procedimento de uma “notificação judicial avulsa” à República de Angola nas pessoas dos seus ministros da Justiça e das Finanças. Essa notificação lembrava que variados subsídios legalmente previstos e outros instrumentos necessários para realizar o trabalho dos magistrados não eram postos à disposição pelo poder político. Segundo a descrição dos juízes, não viria longe o dia em que estariam a viver em casas sem luz e sem água, e em que não poderiam dirigir-se para o tribunal, por não terem carro nem qualquer outro meio de deslocação[5]. Afirmavam os magistrados judiciais que, desde 2013, se veem na obrigação de custear as despesas com o material de trabalho. Concretamente: papel, tinteiros, fotocópias das folhas processadas (com timbre dos vários modelos usados nos tribunais), deslocações dos oficiais de justiça para efeitos de citações e notificações, compra de telefones celulares e um plano mensal de recarga para auxiliar nas citações/notificações dos advogados e utentes, combustível para os geradores (nas salas em que estes existem). Ainda na época, referiam que a sala do Julgado de Menores, sita no Zango 3, em Viana, estava sem energia elétrica regular no período diurno, em horário de expediente. Tal impossibilitava que os magistrados pudessem desempenhar cabalmente as suas funções, obrigando-os a redigir à mão as audiências, designadamente interrogatórios, julgamentos, instrução processual, inquéritos sociais… O gerador encontrava-se avariado. Acresce que, devido à distância, os funcionários que lá trabalhavam faziam-se transportar numa das viaturas da instituição, cujo combustível e manutenção era suportado a suas expensas.

A situação não melhorou significativamente desde aí, apesar do novo foco na justiça. Em julho de 2021 houve protestos públicos de juízes e magistrados do ministério público; queixavam-se da “falta de condições técnicas e até de baixos salários (…) O presidente do Sindicato Nacional dos Magistrados do Ministério Público (SNMMP), José Buengas, afirmou mesmo que a maior parte dos tribunais e das procuradorias” de Angola funcionam com dinheiro dos próprios magistrados que “tiram do seu bolso para comprar papel e tinteiro. O dia em que deixar de fazer isso e ficar à espera de que uma resma de papel para o mês todo chegue para imprimir todos os documentos, os constituintes, os advogados e a população vão ficar à espera, com todas as consequências que disso pode advir`”[6]

O Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2022 prevê uma dotação de 1,21 % das receitas para os órgãos judiciais, equivalendo a 113.777.899.457,00 Kwanzas. Tal representa uma subida em mais de 100% em relação ao ano de 2020 em que apenas 0,37% das receitas eram imputadas aos órgãos judiciais, representando 49.414.027.773,00 Kwanzas. Considerando que a inflação acumulada neste período terá andado entre os 45% a 48%, a verdade é que temos um aumento real dos gastos com a justiça superior a 50%.

Comparando, por sua vez o ano em curso (2021) e o previsto para 2022 temos um gasto monetário previsto de 133,8 mil milhões de kwanzas, contra 55,9 mil milhões de kwanzas em 2021. Tal corresponde a um aumento nominal de 103,5%. E corresponde respetivamente a 1,2%, 0,6% e 0,2% da despesa fiscal, despesa fiscal e percentagem do PIB[7].

Portanto, temos aqui um certo paradoxo que se transforma num obstáculo ao eficiente funcionamento da justiça. Por um lado, há uma persistente e constante queixa dos magistrados, que pode ser comprovada em muitos tribunais visualmente, acerca da falta de meios materiais, por outro, há um efetivo esforço do Estado em aumentar os meios disponíveis para o setor da justiça, tendo procedido a uma orçamentação que prevê a duplicação dos gastos com a justiça em dois anos (2020-2022), que aliás acelera na transição de 2021 para 2022.  

2.3- A corrupção

A corrupção na magistratura angolana é um fenómeno pouco estudado, mas muito falado. Um curto inquérito fechado levado a cabo por este centro em relação à corrupção na magistratura angolana entre operadores judiciais permitiu chegar à conclusão que a maioria acredita que os juízes se deixam influenciar por razões monetárias ou políticas (este último veremos abaixo), e nesse sentido muitas das decisões são tomadas com base nessas influências, não tendo em conta o direito aplicável. Existiram mesmo referências por parte de magistrados de tentativas variadas de ofertas de presentes ou quantias monetárias.

Este inquérito não tem uma amostra suficientemente alargada para permitir retirar conclusões científicas, apenas nos dá uma impressão das opiniões existentes entre advogados, magistrados e funcionários judiciais.

A outro nível, o portal do jornalista investigativo Rafael Marques, MakaAngola, tem contado várias histórias de decisões judiciais inexplicáveis, que possivelmente, só poderiam ter sido tomadas devido a estímulos externos[8].

O certo é que esta é uma situação de que muito se fala, mas sobre a qual existe pouca informação, mas tem criado uma imagem de insegurança jurídica junto dos operadores judiciários e investidores e por isso é fundamental ser ultrapassada.

2.4- A questão política

Na ordem do dia está a questão da politização dos tribunais angolanos. Não existe dia que não surja uma opinião publicada, geralmente, ligada à oposição, indicando a falta de credibilidade, sobretudo, dos tribunais superiores, e nestes do tribunal constitucional, devido à sua politização[9].

          A argumentação centra-se em dois eixos fundamentais.

O primeiro eixo liga-se à filiação partidária dos juízes. O caso da presente Presidente do Tribunal Constitucional, Laurinda Cardoso, tem sido invocado à sociedade, pois até ao momento da sua nomeação estava filiada no MPLA e além de ser membro do governo de João Lourenço, estava também nos órgãos superiores do partido. O facto de ter suspenso a filiação não a tem absolvido das críticas de comprometimento político, especialmente tendo em conta que um dos seus primeiros atos foi subscrever o já mencionado acórdão n.º 700 que destituiu Adalberto da Costa Júnior da liderança da UNITA.

O segundo eixo é de cariz mais institucional, e assenta na argumentação que direta ou indiretamente a larga maioria dos juízes acaba por depender da nomeação do Presidente da República ou do partido maioritário na Assembleia Nacional, o MPLA. De facto, ao nível do Tribunal Constitucional, a CRA determina que quatro juízes em onze são designados pelo Presidente da República e outros quatro por uma maioria de 2/3 na Assembleia Nacional, que o MPLA tem detido desde sempre. Nessa medida, pelo menos 8 dos 11 juízes estariam alinhados com o poder político. Já quanto ao Tribunal Supremo, o Presidente e Vice-Presidente são nomeados pelo Presidente da República de entre 3 candidatos selecionados por 2/3 dos Juízes Conselheiros em efetividade de funções.

Atendendo a estes vários fatores tem crescido nalguma opinião pública o sentimento da dependência do poder judicial face ao poder político, servindo para variados ataques deslegitimadores das decisões judiciais.

3-Os eixos da reforma judicial: mudança paradigma legal, reforço dos meios materiais e nova gestão pública, combate à corrupção, transparência na politização: o modelo alemão.

Mudança de paradigma legal: a “desberlinização” do Direito

A primeira prioridade de uma reforma do sistema judicial é a mudança do paradigma legal, ou dito de outro modo, a modificação da mentalidade jurídica e dos padrões utilizados. Defendemos que a excessiva cópia dos modelos, normas, doutrinas e professores portugueses é perniciosa para Angola, pois não dota a cultura jurídica do país de instrumentos e formas de pensar adequados aos desafios concretos em que está envolvido.

Assim, há que buscar novas inspirações noutras paragens. Uma investigação alargada deveria ser realizada em relação a casos de estabilidade e/ou sucesso na própria África, como é o caso da Namíbia e sobretudo do Botsuana. Parece ter lógica jurídica verificar o tipo de princípios e normas, bem como de organização judicial adotado no Botsuana e adaptar aquilo que se entenda para Angola. Outra ordem jurídica que poderia ser explorada de forma mais profunda, designadamente no que diz respeito à organização judiciária e processual, bem como ao direito criminal é o Brasil, especialmente, na perspetiva do combate à corrupção e dos vários instrumentos normativos que tem “importado” do direito norte-americano.

Naquilo que diz respeito ao combate à corrupção, o sistema jurídico angolano tem de se “americanizar”, investindo no direito premial, na delação premiada, nos acordos de sentença, e nas polícias específicas.

A fim de acelerar a mudança de paradigma ao nível dos juízes, estes deveriam passar a contar com assessores especializados que estudem e preparem as decisões de acordo com o novo paradigma legal.

Uma sugestão seria instituir uma comissão de reforma do direito não apenas contendo as luminárias angolanas assessoradas por portugueses, como acontece agora, mas admitindo contributos multinacionais. Assim, a comissão de reforma do direito deveria conter especialistas angolanos e portugueses, mas também do Botsuana, Namíbia, Brasil e se possível dos Estados Unidos da América e Grã-Bretanha. O mais importante de tudo é haver uma renovação da pluralidade de contributos e de fontes meta-legais para o direito angolano.

Reforço dos meios materiais e novo modelo de gestão

Em relação ao reforço dos meios materiais e de um novo modelo de gestão haverá três itens a considerar[10].

O primeiro é natural e trata-se do reforço do Orçamento Geral do Estado para a justiça. De sublinhar que o governo parece ter sido sensível a este aspeto, porquanto, como acima se referiu, em 2022 temos um gasto monetário previsto de 133,8 mil milhões de kwanzas, contra 55,9 mil milhões de kwanzas em 2021. Há, portanto, mais do que uma duplicação nas verbas destinadas à justiça, o que é de aplaudir.

Uma segunda medida já foi tomada, e também é de aplaudir, exceto num detalhe. Em causa está o Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de março, que aprova o regime de comparticipação atribuída aos órgãos de administração da justiça pelos ativos, financeiros e não financeiros, por si recuperados. A ideia subjacente é positiva. Trata-se de entregar aos órgãos de justiça alguns dos bens obtidos no combate à corrupção, criando um estímulo para atuação efetiva e eficiente na recuperação de ativos, além de dotar a justiça de meios que não teria doutra forma. Esta disposição está certa. Os órgãos de justiça devem beneficiar dos bens que apreendem, apenas deviam ter ficado de fora os magistrados judiciais que são quem decide as apreensões e perdas a favor do Estado, pois pode-se argumentar que a sua imparcialidade ficaria obstruída ao decidir que alguém perde determinado bem, sabendo que eventualmente determinado magistrado iria beneficiar direta ou indiretamente dele. Salvaguardado expressamente esse aspeto, esta ideia é de fomentar, e vem no seguimento do que temos defendido em anteriores relatórios no sentido de ser necessário colocar os fundos obtidos no combate contra a corrupção ao serviço direto do interesse público.

Em último lugar, além do reforço de verbas, seja através do Orçamento Geral do Estado, seja através dos bens recuperados nos processos da corrupção, deve ser encarado um novo modelo de gestão dos dinheiros da justiça que garanta a racionalidade e eficiência da alocação de recursos.

Não se defende a entrega da gestão aos juízes. Mas a criação de um instituto autónomo e com gestão transparente da administração da justiça, que geriria as receitas orçamentais, as receitas do combate contra a corrupção e poderia ter receitas próprias ligadas às atividades da justiça. Este instituto teria gestores profissionais e seria auditado por uma empresa internacional de auditoria. O seu funcionamento seria descentralizado com um gestor adstrito a cada tribunal de comarca e tribunal superior.

Haveria assim, a par do reforço de verbas, uma autonomização da gestão dos dinheiros da justiça que seriam administrados por um instituto com gestores profissionais constituído para o efeito e que funcionaria de forma descentralizada em cada tribunal.

Combate à corrupção no sistema judicial: uma polícia própria dependente da Assembleia Nacional

Este é um tema difícil. Como se viu acima é um tema de que muitos falam, mas não existem provas concretas. Além disso, é complicado ter um sistema de combate à corrupção dentro da magistratura que não afete de algum modo a independência dos juízes ou seja vista como uma intromissão no poder judicial. No entanto, acreditar na autorregulação em termos de combate à corrupção na magistratura judicial também não parece remediar o problema, pois haverá tendência a soluções corporativas de encapotamento.

Propendemos para uma solução radical, mas provisória. Essa solução seria a criação de uma Polícia Anticorrupção na Magistratura (PACOM) dependente da Assembleia Nacional; o poder legislativo é diretamente dependente da vontade soberana popular e por isso com legitimidade para sindicar os juízes. A PACOM seria criada por sete anos, com poderes de investigação dos magistrados judiciais limitados a situações de corrupção (teria um mandato muito restrito para evitar acusações de interferência) e seria controlada pela Assembleia Nacional e também pela sociedade civil. O controlo pela sociedade civil dar-se-ia através de um sistema estilo Grande Júri norte-americano. Qualquer investigação que a PACOM decidisse levar a cabo contra algum magistrado judicial só avançaria depois de validada por um grupo de 12 membros da sociedade civil que funcionariam como filtro e fiscalizador das intenções da Polícia anticorrupção em relação aos magistrados.

Portanto, a investigação da corrupção de determinado juiz, não seria apenas uma decisão policial, mas também da sociedade. Este sistema vigoraria provisoriamente por sete anos, após o que seriam implementados sistemas de autocontrolo dentro da própria magistratura, esperando que no final desse tempo uma nova pedagogia e prática tivessem sido adotadas.

Transparência na politização: o modelo alemão

A politização da justiça angolana, sobretudo dos tribunais superiores, é a acusação que mais frequentemente se faz ouvir atualmente. Contudo, esta questão não é típica de Angola, havendo vários países, especialmente, quando as decisões dos tribunais têm consequências políticas ou se assiste a uma certa judicialização da política em que a politização dos tribunais é tema recorrente. É o caso dos Estados Unidos, em que o Presidente Trump conduziu uma intensa campanha para criar uma maioria de direita no Supremo Tribunal e em que este tribunal está debaixo de intenso escrutínio para ver se entra numa deriva política ou não com a tal maioria de direita, notando-se um forte empenho do seu presidente, John Roberts, em procurar soluções equilibradas nas decisões e evitar essas acusações de politização[11]. A politização foi também um dos epítetos mais usados pelo antigo presidente Lula no Brasil para confrontar as decisões judiciais que lhe foram desfavoráveis a propósito da operação Lava-Jato.

Não sendo um monopólio angolano, a realidade é que a questão da influência política nas decisões judiciais tem sido trazida à colação amiúde. A solução geralmente apontada para solucionar essa suposta influência política tem sido a modificação dos modos de designação dos juízes dos tribunais superiores pelo poder político, seja o executivo, seja o legislativo. Afirma-se que o facto de ser o Presidente da República ou a maioria qualificada de dois terços dos deputados da Assembleia Nacional redunda sempre no mesmo: o MPLA a designar os dirigentes dos tribunais superiores, e no caso do tribunal constitucional, a sua larga maioria.

Como alternativa propõe-se que exista um sistema de autosseleção de escolha dos juízes, ou um modelo estilo concurso público/ comissão independente e ainda que que sejam criados mecanismos institucionais de garantia da independência dos juízes, que os autonomizem e isolem da influência política. No fundo, estas soluções acabam por ser corporativas: os juízes a escolher juízes e os juízes a controlar os juízes. E nessa medida, têm um problema de legitimidade. Não há nenhuma boa razão que justifique que sejam os juízes a escolher os seus pares ou que constituam um círculo fechado em que ninguém tenha uma palavra a dizer.

 A magistratura, como qualquer órgão soberano tem de ter uma justificação política que legitime a sua escolha. No sistema idealizado por Platão do rei-sábio[12], poder-se-ia pensar numa espécie de exames de alta qualificação em que aqueles que se mostrassem os mais sábios se tornariam juízes. Teríamos a legitimidade platónica do rei-filósofo, que de certa forma, foi também adotado pelas fórmulas confucionistas do mandarinato na China, a partir da dinastia Sui, e apenas baseado no mérito após os Song[13]. No entanto, não se vive nem no modelo idealizado por Platão, nem na China imperial, mas em estados de direito democrático. E a realidade é que a prevalência do princípio democrático impõe que os juízes assentem, em última instância, a sua legitimidade no processo democrático. E nessa medida o poder político deve sempre intervir na escolha dos juízes. Afastar o poder político da escolha judicial é retirar-lhe democraticidade, logo legitimidade. O poder político tem de estar presente no processo de escolha dos magistrados, pois é daí que deriva a sua legitimidade popular e democrática.

Por outra via, não parece que a fórmula de escolha dos juízes ou os órgãos de controlo e gestão sejam verdadeiramente determinantes da sua independência. Acaba por ser melhor existir transparência, saber-se o que pensa e defende cada juiz e aferir o seu trabalho pela análise da fundamentação das decisões que toma, do que criar inúmeros mecanismos que só servem para confundir. É melhor existir um Presidente da República ou um Parlamento a nomear um juiz, o que confere mediatamente legitimidade democrática ao juiz e saber-se a que partido o juiz pertence, do que se criarem ficções de independência que apenas tornam as nomeações e decisões opacas.

O que interessa essencialmente à sociedade é aferir da independência do juiz nas suas decisões judiciais. Por isso, essas devem ser publicadas, conhecidas e sujeitas a discussão; à parte disso, o juiz é uma mulher ou homem como outro qualquer e isso deve ser assumido e dito.

Neste sentido, o sistema em vigor na República Federal da Alemanha acaba por ser o mais honesto. Neste país, que detém uma das magistraturas mais reputadas do mundo,” é permitido aos magistrados serem filiados em partidos políticos, bem como pronunciarem-se publicamente sobre questões políticas. Os juízes com aspirações a serem nomeados para os tribunais superiores podem até considerar de alguma vantagem a filiação partidária, principalmente se for em um dos dois maiores partidos (SPD e CDU). Neste enquadramento legal também não existe qualquer impedimento para um juiz exercer um cargo num partido político[14]”. Por exemplo, a seção 36 da Deutsches Richtergesetz (Lei dos Juízes Alemães) admite que um juiz seja candidato ao parlamento, concedendo-lhe as férias necessárias para preparar sua eleição nos últimos dois meses antes da eleição, sem remuneração.

O sistema alemão, podendo parecer bizarro, tem duas vantagens. A primeira já se referiu é a da transparência. A segunda, é de cariz mais técnica e obriga a que o direito seja dito de forma universalmente aceite e compreensível, sujeito à maior discussão e publicidade crítica. O que se pretende é que os juízes sejam técnicos independentes nas suas decisões, por isso, haverá modelos de decisão e lógica jurídica que todos seguirão, adotando os mais altos critérios da ciência do direito. O que aqui interessa é que o juiz decida de acordo com a lei e de forma metodologicamente correta, daí a importância das regras de metodologia e interpretação na doutrina alemã. Quer-se aplicar uma conduta de raciocínio sindicável e que garanta a autonomia. O treino e a preparação técnica dos juízes são a garantia da sua independência.[15]

Parece-nos que este método seria mais honesto para Angola, exigência jurídica e desconsideração dos aspetos políticos que dificilmente não existirão.

Conclusões

Face ao exposto uma reforma real da justiça angolana envolverá a mudança do paradigma de cultura legal, a “desberlinização do direito”, procurando-se outras novas influências além das portuguesas, como de países vizinhos africanos com sucesso tal como o Botsuana, além do Brasil e dos Estados Unidos.

A isto acrescerá o reforço orçamental e a criação de um instituto autónomo e descentralizado para a administração financeira da justiça.

É também advogada uma polícia própria assente na Assembleia Nacional e com a participação da sociedade para combater a corrupção

E finalmente a assunção do modelo alemão de transparência e exigência técnica para garantir a não politização das decisões judiciais, admitindo que os juízes podem estar filiados em partidos políticos.


[1] Sobre a evolução dos textos constitucionais angolanos ver Adérito Correia e Bornito de Sousa, (1996), Angola. História Constitucional. Almedina.

[2] São inúmeras as referências a esta afirmação de Agostinho Neto, ver por exemplo Edgar Valles, (2020), 27 de Maio: reconciliação e perdão em Angola? PÚBLICO, https://www.publico.pt/2020/05/27/opiniao/noticia/27-maio-reconciliacao-perdao-angola-1918297

[3] Acórdão n.º 700/2021 do Tribunal Constitucional, https://jurisprudencia.tribunalconstitucional.ao/wp-content/uploads/2021/10/ACORDAO-No-700.pdf

[4] J.A.G. Griffith,(2010), The politics of the judiciary, Fontana Press; Rui Verde, (2015) Juízes: O Novo Poder

Ensaio sobre a acção e reforma do poder judicial em Portugal. RCP Edições

[5] MakaAngola (2017), A reivindicação dos juízes. https://www.makaangola.org/2017/06/a-reivindicacao-dos-juizes/

[6] Deutsche Welle, Borralho Ndomba (2021), Falta de condições para juízes põe em causa combate à corrupção em Angola, https://p.dw.com/p/3yYSJ

[7] Ministério das Finanças de Angola, https://www.minfin.gov.ao/PortalMinfin/?fbclid=IwAR1C597oUjdNas8WFrR9R4u0B_1gb_NH-82fQEVyUGl52HUBcazWITEYo4I#!/materias-de-realce/orcamento-geral-do-estado/oge2022

[8] Cfr. por exemplo, Rui Verde, (2019) Ignorância ou corrupção na justiça, MakaAngola, https://www.makaangola.org/2019/01/ignorancia-ou-corrupcao-na-justica/ ou Moiani Matondo, (2020),A droga de justiça, MakaAngola, https://www.makaangola.org/2020/07/a-droga-da-justica/

[9] A título exemplificativo, Sousa Jamba, (2021) Tribunal Constitucional. MakaAngola (2020), https://www.makaangola.org/2020/07/a-droga-da-justica/ ou Kajim Ban-Gala (2021) Laurinda Cardoso: antinomia, filiação partidária e incompatibilidade, https://www.correioangolense.co.ao/2021/12/27/laurinda-cardoso-antinomia-filiacao-partidaria-e-incompatibilidade/

[10] Ver sobre o tema Nuno Coelho (2015), Gestão dos Tribunais e Gestão Processual, CEJ, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/Gestao_Tribunais_Gestao_Processual.pdf e E B McConnell (1991), Court Management: The Judge’s Role and Responsibility, Justice System Journal Volume: 15 Issue: 2.

[11] Ver as análises contidas em SCOTUSBlog. https://www.scotusblog.com/2021/12/the-lives-they-lived-and-the-court-they-shaped-remembering-those-we-lost-in-2021/ 

[12] Eric Brown, (2017) “Plato’s Ethics and Politics in The Republic”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Edward N. Zalta (ed.), https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/plato-ethics-politics/

[13] Mark Cartwright (2019), The Civil Service Examinations of Imperial China, https://www.worldhistory.org/article/1335/the-civil-service-examinations-of-imperial-china/

[14] Vânia Gonçalves Álvares (2015), O governo da justiça: O Conselho Superior da Magistratura. Universidade Nova. P.33.

[15] Sobre o treino e preparação de juízes na Alemanha ver: Johannes Riedel, (2013). Training and Recruitment of Judges in Germany. International Journal for Court Administration, 5(2), pp.42–54. DOI: http://doi.org/10.18352/ijca.12

Estado de Direito e Corrupção em Angola: por um minissistema de justiça contra a corrupção

1-Introdução. Luta contra a corrupção em Angola. Objetivos e factos

A corrupção tornou-se um fenómeno tão alastrado em Angola que colocou em causa a sobrevivência do próprio Estado e a viabilização económica do país. A denominada luta contra a corrupção não é uma questão de polícia e de combate a uma atividade criminosa. É algo de muito maior e com muito mais importância. Na verdade, aquilo a que se chama corrupção em Angola é um fenómeno mais abrangente de apropriação em larga escala dos recursos nacionais e de “privatização da soberania[1]”. Consiste em comportamentos variados que preenchem vários tipos criminais como a burla, abuso de confiança, peculato, fraude fiscal, branqueamento de capitais, entre outros, e não apenas o crime de corrupção. O que este fenómeno acarreta é a captura do Estado e da Economia pelas forças corruptas e a utilização dos seus mecanismos de poder em proveito próprio. É uma degradação sistémica do corpo político e económico do país. Em última análise, a corrupção em Angola impede o funcionamento das instituições políticas e da economia num ambiente de mercado livre.[2]

Acreditamos que foi a perceção da gravidade da corrupção para o desenvolvimento político e económico do país que levou João Lourenço a determinar como um dos objetivos fundamentais do seu mandato presidencial a luta contra a mesma. Não vale a pena citar os inúmeros discursos e ações encetados sobre o tema, para confirmar que efetivamente a luta contra a corrupção se tornou um ponto inultrapassável do mandato presidencial.

Se este objetivo é claro e justificável, as questões colocam-se ao nível da execução. Uns criticam o que chamam a seletividade dos casos levados a tribunal, outros a morosidade e ainda outros o atropelo de formas legais.

Não vislumbramos que exista seletividade na luta contra a corrupção. Basta ater-nos apenas aos julgamentos ocorridos e veremos que são diferentes as pessoas que foram sentenciadas. Temos no caso “Burla tailandesa”, um antigo Diretor do gabinete de investimento estrangeiro, Norberto Garcia e um antigo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o general Nunda. Ambos foram absolvidos e ocupam hoje cargos de relevo, Garcia no gabinete presidencial e Nunda como Embaixador em Londres. Depois temos Augusto Tomás, antigo ministro dos Transportes, que foi condenado a prisão efetiva com trânsito em julgado, José Filomeno dos Santos, filho do antigo Presidente da República, condenado a cinco anos de prisão e que aguarda o resultado do recurso em liberdade, tal como Valter Filipe antigo Governador do Banco Nacional de Angola. Finalmente, tivemos recentemente a condenação de Manuel Rabelais a 14 anos de prisão. Rabelais era o homem-forte da comunicação social no tempo de José Eduardo dos Santos. Também aguarda o resultado do recurso em liberdade. Vê-se que não são todos, nem sequer a maioria, da família de José Eduardo dos Santos, apenas um é filho; têm situações carcerárias diferentes e resultados diversos. Não se confirma qualquer seletividade.

Diferente é a morosidade processual e alguma atrapalhação com as formas legais. Ainda recentemente, o Procurador-Geral da República em relação ao suposto processo referente a Isabel dos Santos, que vai ser, possivelmente, o processo mais importante e marcante de Angola, referia que estava atrasado porque era muito complexo.[3]E muitos outros processos se arrastam e levantam dúvidas legais. Não entrando aqui em detalhes, o que há a anotar, é que, neste momento, (16 de abril de 2021), apenas existe um processo de político muito relevante transitado em julgado e com cumprimento de pena. Os outros dois processos de pessoas muito relevantes estão em recurso, e nada mais chegou a julgamento.

Este panorama para uma situação de extrema urgência como a descrita acima é muito curto. Não havendo dúvida que a luta contra a corrupção era uma urgência e prioridade do Estado e que foi assumida como tal pelo Presidente da República, o que se verifica é que os resultados judiciais são ainda reduzidos. A nossa opinião é que esta míngua de resultados é consequência duma opção de boa-fé do poder político que não funciona. Essa opção foi a de combater a corrupção com os meios normais e habituais pré-existentes no sistema judicial angolano. O uso do sistema judicial como está para combater a corrupção não satisfaz. Veremos a razão por que tal opção não resulta e as alternativas.

2- A opção de combate à corrupção dentro do sistema judicial pré-existente

O poder político quando elegeu como objetivo principal o combate à corrupção, resolveu fazer essa luta através dos órgãos judiciais pré-existentes e com as pessoas titulares habituais. Não houve qualquer renovação orgânica ou de pessoal, apenas meros ajustes, o Vice-PGR subiu a PGR, os Presidentes do Tribunal Supremo e Tribunal Constitucional trocaram de cargo e umas leis um pouco apressadas sobre recuperação de ativos foram aprovadas. Portanto, poucas mexidas para lançar o combate à corrupção. Esta opção deve ter correspondido a uma opinião formalista dada pelos mais eminentes juristas angolanos segundo a qual, o combate à corrupção deveria ser feito dentro do Estado de Direito e com os meios legais existentes. Só assim seriam garantidos os necessários direitos de defesa e credibilidade dos processos. E face ao estrangeiro poder-se-ia sempre afirmar que não haveria qualquer abuso por parte das autoridades, pois era o sistema judicial instalado que estava a funcionar dentro das normas habituais do Estado de Direito.

Esta normalidade legal parece correta, mas na realidade, é o que impede um real, célere e efetivo combate contra a corrupção. O que estamos a assistir é a máquina e pessoas que foram capturadas no passado pelos interesses corruptos a fazer essa luta contra a corrupção. Por isso, processos perdem-se fisicamente nos tribunais, outros embrulham-se, outros surgem com decisões inaceitáveis e outros prolongam-se inexplicavelmente. Na verdade, entregar à estrutura judicial existente o combate contra a corrupção revela-se um erro. Se essa estrutura também era corrupta, não pode, por razões de lógica elementar, estar a julgar a corrupção, as relações clientelares do passado, os favores devidos, a venalidade habitual, são demasiado fortes, para de repente um manto de integridade tudo afastar. O que temos estado a verificar é que o sistema judiciário e judicial se mostra incapaz de combater a corrupção. Os processos judiciais com princípio, meio e fim rareiam. É como se existisse uma disfuncionalidade entre as intenções do Poder Executivo e as concretizações do Poder Judicial.

A realidade é que se está a pedir a uma estrutura que colaborou e beneficiou da corrupção que agora a combata; no fundo, que se vire contra si própria. Salvaguardando, que nessa estrutura existem agentes de mudança, juízes, procuradores, polícias, funcionários, que devem ser elogiados pelo seu trabalho aturado, o certo é que são uma exceção-mesmo que larga- e não impedem que a estrutura judicial como um todo seja conservadora e avessa ao risco de combater os seus aliados de ontem.

Nessa medida, a luta contra a corrupção pode acabar por ser inglória e não resultar, atendendo aos vários empecilhos estruturais existentes.

3- Exemplos históricos de superações das magistraturas atávicas

Não é a primeira vez que as magistraturas, pelo seu conservadorismo e aversão ao risco, colocam em causa as intenções de novos regimes. Há exemplos históricos impressivos, que também contribuem para soluções para esse problema.

         Sumariamente, referiremos duas situações.

A primeira a referir ocorreu após a Revolução Francesa e a instauração do regime legal que se seguiu, designadamente ao nível do direito administrativo. Este direito foi considerado chave para o desenvolvimento do novo regime pois regularia a atividade do novo Estado e as suas relações com os cidadãos. Sendo o Estado revolucionário e querendo instituir um regime baseado em novos valores-Liberdade, Igualdade e Fraternidade- temia que os juízes, pertencentes às classes privilegiadas e um dos pilares do Ancien Régime impedissem esses desideratos e se tornassem obstáculos inultrapassáveis às novas medidas. Para obviar a esse perigo logo em 1790, uma lei de agosto definiria um código de relações entre o judicial e a administração, proibindo os tribunais de participarem no exercício dos poderes legislativo e executivo, em especial impedindo o juiz ordinário de intervir na atividade da administração. Um ano depois um novo Código Penal determina sanções contra os juízes que se pronunciarem sobre o funcionamento de um órgão administrativo. A lógica que presidiu ao direito administrativo a seguir à Revolução Francesa foi uma lógica de estanquicidade face ao poder judicial, para a Revolução avançar, os juízes tinham de ser afastados. Essa lógica foi evoluindo e permitiu criar um novo sistema judicial autónomo do sistema judicial ordinário. Assim, surgiram a par das leis administrativas, os tribunais administrativos e os juízes administrativos, um corpo estranho aos anteriores juízes[4].

Outra situação em que houve necessidade de contornar o conservantismo de juízes ligados a um antigo regime, ocorreu na Áustria, após o final da Primeira Guerra Mundial (1918). Aí uma República substituiu o antigo Império Habsburgo, e uma nova classe de juízes era necessária para fazer vigorar os novos valores republicanos. É nesse contexto que surge o Tribunal Constitucional e a nova concetualização de Hans Kelsen sobre o tema. É instituído um novo tribunal com juízes diversos.

Isto quer dizer que em diversas circunstâncias históricas, quando o poder político sentiu que os juízes e tribunais não correspondiam aos novos tempos e valores, tornou-se necessário criar novos sistemas judiciais paralelos, complementares ou suplementares. É uma sugestão deste género que se faz em relação ao tempo presente em Angola[5].

4-Estado de Direito para a corrupção

Muitos defendem que em Angola já existem os mecanismos adequados para combater a corrupção e que é imperativo respeitar o Estado de Direito, considerando que tal é representado pelos sistemas e leis tal como estão neste momento. Não podemos subscrever esta tese por duas razões. A primeira assenta num ponto de vista teórico, enquanto a segunda tem um caráter eminentemente prático.

Em termos teóricos, o Estado de Direito não é mais, nem menos do que o respeito pela lei aprovada segundo critérios pré-estabelecidos, portanto, o oposto de arbítrio. O Estado de Direito implica que exista uma lei e que todos a respeitam. Vários pensadores legais acrescentam a este pressuposto formal, que o Estado de Direito também contém um elemento substantivo ligado à igualdade- todos são iguais perante a lei, e à liberdade – há uma presunção a favor da liberdade na implementação das normas jurídicas. Outros ainda vão mais longe equiparando Estado de Direito a uma série de direitos fundamentais e princípios democráticos[6]. Não seguimos esta última versão, ficando pela segunda. Contudo, tal não é importante, importante é salientar que o Estado de Direito admite que existam regras específicas para determinadas situações. Um exemplo típico são as regras constitucionais para o Estado de Emergência (cfr. artigos 58.º e 204.º da Constituição angolana), outro exemplo é o sistema de direito administrativo autónomo como existe em França ou em Portugal. Em Portugal, temos uma situação muito clara de um sistema completamente apartado do sistema judicial ordinário, com leis próprias, tribunais específicos, juízes com carreiras independentes naquilo que se refere ao direito administrativo, o direito do poder do Estado e da sua relação com os cidadãos. Portanto, do ponto de vista teórico e do Estado de Direito não é difícil conceber minissistemas jurídicos dedicados a determinadas matérias.

Se do ponto de vista teórico pode haver um Estado de Direito diferenciado para as questões de grande criminalidade económico-financeira e captura do Estado (vulgo corrupção) com regras diversas do Estado de Direito normal, do ponto de vista prático é evidente que só assim se conseguirá combater a corrupção instalada no poder soberano do Estado. Só estabelecendo um minissistema judicial estanque a influências e com regras próprias tal será viável.

A verdade é que cada sistema jurídico nacional admite vários subsistemas de acordo com as matérias ou propriedades traçadas. Tal não viola qualquer conceção de Estado de Direito, pelo contrário cria regras e obrigações para todos, transparentes e claras, em determinadas áreas. Em resumo, existirá um Estado de Direito para a normalidade e um Estado de Direito para a corrupção.

5. A proposta: criação do minissistema judicial anticorrupção

A proposta que aqui se adianta é simples: criar de raiz um minissistema judicial anticorrupção, ou mais precisamente um sistema jurídico relativo aos grandes crimes de natureza económico-financeira e de captura do Estado.

         Esse sistema jurídico funcionaria com independência dos outros órgãos judiciários e judiciais e seria composto por quatro partes:

  1. Um órgão especial com poderes judiciários para a investigação e acusação. Este órgão seria um misto de polícia judiciária e ministério público tendo poderes de investigar, apreender, realizar buscas e detenções, pedir cooperação judicial internacional e no final fazer uma acusação ou arquivar um processo de grande corrupção. Só trabalharia nestes casos e seria composto por um corpo de agentes com treino focado e dedicado.
  2. Um sistema de tribunais dedicados a estes crimes. Para julgamento e recurso dos casos de grande criminalidade económico-financeira e captura do Estado existiria um sistema de tribunais apenas dedicado a esta matéria. Este sistema de tribunais implicaria uma revisão da Constituição naquilo que se refere ao artigo 176.º n.º 3 e 5. Dever-se-ia passar a admitir uma jurisdição destinada aos grandes crimes de natureza económico-financeira e também abolir a proibição de tribunais com competência exclusiva para julgar determinados tipos de infração.
  3. Um corpo de juízes autónomo e dedicados a esses tribunais seria outras das partes deste minissistema contra a corrupção. Especializar-se-iam determinados juízes nestas matérias que preencheriam os lugares nos tribunais.
  4. Finalmente, este sistema deveria ter uma lei processual simplificada elaborada à semelhança da norte-americana ou da francesa atual que permitisse julgamentos rápidos e justos.

Alternativamente, e para o caso de não se pretender realizar uma revisão constitucional sobre o tema, sempre se poderia em vez de se criar um sistema de tribunais exclusivos com juízes próprios, estabelecer secções especializadas para o combate à corrupção nos tribunais judiciais já existentes. Os tribunais das capitais provinciais ou somente o de Luanda, bem como as Relações e o Tribunal Supremo disporiam de secções especializadas para a corrupção. Neste caso, respeitava-se o artigo 176.º ao não se erguerem novos tribunais com competências exclusivas para julgar determinados tipos de infração, mas ao mesmo tempo teríamos seções de tribunais ordinários ou salas dedicadas ao tema. Tal já é constitucionalmente possível e o restante minissistema proposto mantinha-se como descrito.


[1] A expressão é caracterizada por Achille Mbembe, On the postcolony, 2001.

[2] Sobre o impacto da corrupção em Angola ver Rafael Marques, O espaço de liberdade entre a corrupção e a justiça, 2019,in MakaAngola (https://www.makaangola.org/2019/12/o-espaco-de-liberdade-entre-a-corrupcao-e-a-justica/), Ricardo Soares de Oliveira, Magnificent and Beggar Land: Angola Since the Civil War, 2015 e Rui Verde, Angola at the Crossroads. Between Kleptocracy and Development, 2021.

[3]https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/pgr-admite-complexidade-no-caso-isabel-dos-santos-2-2/ 

[4] Jean-Louis Mestre, « Administration, justice et droit administratif », Annales historiques de la Révolution française 328 | avril-juin 2002. http://journals.openedition.org/ahrf/608

[5] Sara Ligi, “Hans Kelsen and the Austrian Constitutional Court (1918-1929)”, June 2012, Co-herenci,a 9(16):273-295. https://www.researchgate.net/publication/262430581_Hans_Kelsen_and_the_Austrian_Constitutional_Court_1918-1929

[6] Ver uma análise detalhada sobre os conceitos de Estado de Direito e as suas diferenças históricas e espaciais em Rui Verde, Brexit. O triunfo do caos? 2019

Clarões de otimismo na Economia Angolana no início de 2021

0-Introdução. Um diferente foco para a análise económica angolana

As consultoras que se dedicam ao estudo da economia angolana seguem uma metodologia conjuntural em que a narrativa predominante assenta nos números negativos sobre os agregados macroeconómicos e suas eventuais perspetivas.

No entanto, uma análise mais detalhada da evolução da economia de Angola sugere que por detrás dos números da inflação, do desemprego, do crescimento do PIB e da dívida pública, que são pouco animadores,[1]estão a ocorrer um conjunto de reformas políticas públicas aliadas ao reforço de determinadas tendências económicas que indicarão a construção de uma nova realidade económica mais positiva para Angola.

Este estudo versa sobre os elementos positivos que apontam para a correção do rumo da economia angolana num sentido mais consistente com a necessária prosperidade.

A-Tendências positivas na economia angolana

1-O Fundo Monetário Internacional (FMI) e a reforma das políticas públicas

Um primeiro elemento que permite lançar uma luz diferente sobre as perspetivas da economia angolana reside na recente avaliação realizada pelo FMI. Na verdade, a 11 de janeiro passado, o Conselho Executivo do FMI concluiu a quarta revisão do Acordo de Mecanismo do Fundo Alargado para Angola e aprovou o desembolso de mais USD 487,5 milhões.[2]

O importante nesta decisão é a avaliação positiva que o FMI faz da reforma das políticas públicas angolanas. Afirma o FMI que: “As autoridades [angolanas] alcançaram um ajuste orçamental prudente em 2020, que incluiu ganhos de receitas não petrolíferas e contenção de despesas não essenciais, preservando simultaneamente as despesas essenciais com redes de saúde e segurança social. A aprovação do orçamento de 2021 em dezembro consolida esses ganhos. As autoridades também permitiram que a taxa de câmbio funcionasse como um amortecedor de choques e começaram a implementar uma mudança gradual em direção a uma restrição monetária para enfrentar as crescentes pressões sobre os preços”[3].

De acordo com o que explicita o FMI, a política económica seguida pelo governo angolano desenvolve-se nos seguintes vetores:

-A estabilização das finanças públicas que é a pedra angular da estratégia das autoridades. E nesse particular, o governo alcançou um forte ajuste orçamental em 2020. Ademais, o seu orçamento para 2021 consolida os ganhos de receitas não petrolíferas e a contenção das despesas do orçamento para 2020, enquanto protege as despesas sociais e de saúde prioritárias.

Esses avanços ajudam a reduzir a dependência do orçamento das receitas do petróleo.

-Reformulação e gestão da dívida pública. O governo tem implementado acordos de reformulação do perfil da dívida, além de ter beneficiado da extensão da Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida até o final de junho de 2021, o que proporcionará um alívio significativo do serviço da dívida e ajudará a reduzir os riscos relacionados à sustentabilidade da dívida. Sobre a reformulação e gestão da dívida pública desenvolveremos abaixo.

-Política monetária restritiva e flexibilização cambial. Depois de ter atenuado a restrição monetária para mitigar o choque da COVID-19, o Banco Nacional de Angola (BNA) começou, novamente, a fazer face ao aumento das pressões inflacionistas através do aperto da política monetária. É necessário um maior aperto gradual da política monetária para reduzir a inflação. A flexibilidade da taxa de câmbio serviu como um amortecedor valioso durante a crise. Estão em curso esforços para desenvolver um mercado de câmbio liberalizado.

-Reforma do setor financeiro. O progresso contínuo nas reformas do setor financeiro foi fundamental, especialmente a conclusão da reestruturação dos dois bancos públicos em dificuldades. A adoção oportuna da revisão da Lei do BNA e da revisão da Lei das Instituições Financeiras é a chave para continuar este progresso.

Finalmente, o FMI destaca o aspeto fundamental que está subjacente a todas a reforma política que é a manutenção do combate à corrupção.

O que se vê claramente desta avaliação do FMI é que o governo está a seguir uma política reformista assente nos pressupostos enunciados por esta organização internacional, estando a implementar reformas difíceis.

É sabido que muitas destas políticas FMI têm um efeito inicial recessivo, especialmente a consolidação orçamental quando implica aumento de impostos e corte de salários e subsídios, e também a política monetária restritiva para combater a inflação. Portanto, não admira que o primeiro resultado da adoção das políticas do FMI seja a recessão e não o crescimento.

O que se espera é que esta “arrumação da casa” crie as condições para um crescimento sustentado e virtuoso da economia angolana.

Figura n.º 1-Políticas económicas do governo angolano aplaudidas pelo FMI

2-Gestão e reformulação criteriosa da dívida pública

O executivo seguiu uma estratégia adequada ao negociar inicialmente com a China a questão da dívida pública. Como descrevemos em anteriores relatórios, a dívida chinesa é chave para Angola, pois representa cerca de 50% dos compromissos externos.[4]Consequentemente, foi importante, antes de tudo garantir os termos adequados com a China, que embora não sejam do conhecimento público, aparentemente implicam um acordo de suspensão de pagamentos por três anos. Também a adesão já referida ao programa do FMI sobre suspensão de dívida permitiu margem de manobra para o governo. De referir, que os Eurobonds sobre os quais se tem escrito muito e apontado vários perigos, têm um peso menor no total da dívida angolana, rondando os USD 8 mil milhões, não havendo assim, ao contrário, do que se poderia pensar uma pressão exagerada sobre as finanças angolanas neste âmbito.

Assim sendo, por agora, a questão da pressão da dívida pública parece atenuada e dentro das capacidades de gestão do governo.

3-Recuperação meridiana do preço do petróleo

Como também tínhamos antecipado, depois de uma baixa abrupta do preço do petróleo no início da pandemia (Março de 2020) seguir-se-ia uma subida[5], que está paulatinamente a acontecer.

A realidade, é que seguindo uma tendência já bem evidente no final do ano, o barril de brent atingiu finalmente uma cotação acima dos 55 dólares, valor esse que já não era atingido desde finais de Fevereiro de 2020, o mês anterior ao início da pandemia. Sendo ainda o indicador mais relevante para a economia angolana, e considerando que o orçamento para 2021 foi calculado com base em USD 33 por barril, temos uma margem financeira de mais de USD 20. Trata-se de uma “almofada” adicional na gestão das finanças públicas angolanas.

É evidente que não se sabe por quanto tempo esta subida do preço do petróleo se manterá. O empenho da nova administração Biden no Acordo de Paris, a evolução da economia chinesa, as decisões de corte ou aumento de produção por parte da Arábia Saudita e a manutenção das restrições derivadas da pandemia Covid-19 são fatores que podem implicar uma nova descida do preço do petróleo.

Portanto, os movimentos do preço do petróleo são sempre uma incógnita e estes momentos de subida devem ser aproveitados pelo governo para reforçar as suas reservas para futuros investimentos reprodutivos e sociais.

Fig. n.º 2- Evolução do preço do Brent desde Fevereiro 2020

4-Diminuição das importações cesta básica e produção agrícola com relevância continental

A política de diversificação aliada à promoção da indústria nacional através da substituição das exportações tem sido outra “bandeira” deste governo. Esta política permite duma assentada reduzir a dependência externa e criar uma indústria nacional próspera.

Sendo ainda extemporâneo tirar qualquer conclusão definitiva sobre os resultados desta política, surgem alguns números que podem ser animadores, pelo menos em relação à dependência das importações e do gasto de divisas com o comércio externo.

Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Indústria e Comércio, Angola conseguiu registar uma redução de quase 100 milhões de dólares na importação de produtos da cesta básica e outros bem essenciais no último mês de 2020, face ao mesmo período homólogo – dezembro de 2019. Em Dezembro de 2019, o Governo desembolsou 250 milhões de dólares para importações, enquanto que no mesmo período de 2020, apenas gastou 152 milhões de dólares[6].

Em concreto, há a assinalar a redução na importação do açúcar, que passou de 2,1 milhões de toneladas, em 2019, ao custo de 17,6 milhões de dólares, para 1.472 toneladas, ao custo de 831.121 dólares. Quanto à importação de arroz corrente, em 2019 Angola importou 136.985 toneladas no valor de 37,2 milhões de dólares e em 2020, apenas 59.505 toneladas, a um valor de 10,5 milhões de dólares. Naquilo que se refere ao frango (a carne mais consumida em Angola), é de referir também uma redução considerável, comparativamente a 2019. Nesse ano, importou-se 46.385 toneladas, por 51,5 milhões de dólares, enquanto que no ano passado, adquiriu-se apenas 32.447 toneladas, por um valor pouco superior a 25 milhões de dólares.

Figura n.º 3- Comparação das importações homólogas de produtos da cesta básica (Dez.2019/2020 em USD milhões)

Estes são apenas alguns dos produtos destacados na redução considerável das importações, contudo esta tendência revelou-se geral nos restantes produtos que compõem a cesta básica.

Para que estes números sejam considerados um sucesso é preciso cotejá-los com o consumo interno dos mesmos bens, e perceber se a diminuição de importações se deveu a uma substituição por produtos internos ou apenas reflete uma descida da procura fruto da crise económica.

Neste último caso, ainda que representem uma poupança de divisas, não significam um sucesso de política, mas um decréscimo da qualidade de vida da população. Contudo, mesmo nesta situação, os investidores nacionais devem ficar alerta para avançarem com investimentos nestas áreas de forma a corresponderam a futuro aumento da procura.

Estatísticas publicadas pelo Ministério da Indústria e Comércio angolano e divulgadas pela agência noticiosa portuguesa Lusa dão conta da sustentabilidade reforçada de alguma produção agrícola angolana.

Angola afirma-se como produtor agrícola de nível continental. Angola é o maior produtor africano de banana e sétimo no mundo com uma oferta de 4,4 milhões de toneladas, de acordo com a mais recente tabela do Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). De salientar, que a banana continua a ser a fruta mais produzida e consumida no mundo. Angola, particularmente, há mais de seis anos que se declarou autossuficiente na produção de banana, com realce para as províncias do Bengo e Benguela. Nestas províncias, empresas privadas já exportam o fruto para países como Portugal, Zâmbia, Congo Democrático e planeiam fazer chegar a fruta aos Estados Unidos, o maior consumidor mundial[7].

Em relação à mandioca, Angola tem uma produção anual estimada em mais de 11 milhões de toneladas de mandioca, sendo hoje o terceiro maior produtor de África, depois da Nigéria e o Gana, e quer apostar na sua transformação em amido.[8]

5-Novos investimentos e exportações. Dois exemplos: Rio Tinto e Ouro

A ministra das Finanças afirmou recentemente à Reuters: “Estamos a construir um futuro (através do nosso programa de reformas) que prioriza o investimento directo (não apenas com a China, mas com outros parceiros). Queremos adicionar valor para a nossa Economia, criar empregos. Queremos que o dinheiro fique. Pedir emprestado é uma opção, mas estamos a tentar mudar a forma que nos relacionamos com os nossos parceiros”.[9]

Verifica-se assim que o governo aposta no investimento direto para reanimar a economia e também no aumento das exportações.

Há dois exemplos recentes que são importantes sublinhar neste âmbito. O primeiro é a entrada da poderosa multinacional Rio Tinto no mercado angolano. Aparentemente, tal perspetiva irá concretizar-se este ano.[10]

Também com importância está a primeira exportação de ouro extraído na Huíla em 2020, no montante de mil e seiscentas e noventa e seis onças enviados para Portugal e para os Emirados Árabes Unidos, o que corresponde, ao preço atual, a mais de três milhões de dólares. Obviamente, que o relevante não é a quantidade de ouro exportada, mas o início de uma tendência. Tal como a entrada da Rio Tinto é importante se marcar uma tendência que traga outros grandes investidores como a Anglo-American ou a DeBeers.

Nenhum destes investimentos é muito firme ainda. A sua referência é importante pelo facto de puderem representar eixos futuros de desenvolvimento da economia angolana, agora em semente.

Figura n.º 4-Sinais de otimismo na economia angolana

B-Ajustamentos necessários de políticas

O exposto demonstra que o governo angolano prossegue uma política de reforma económica amparada essencialmente nas receitas do FMI: i)equilíbrio orçamental e controlo da dívida, encarando-se a solvabilidade financeira como condição sine qua non para o crescimento económico; ii) política monetária restritiva para controlar a inflação; iii) política cambial flexível, permitindo uma desvalorização da moeda que fomente as exportações e dificulte as importações; iv) aposta no investimento e setor privado como motores da economia.

No fundo, a política seguida corresponde àquilo que em tempos se chamou o consenso de Washington.[11]Este é o pacote standard de reformas adotado pelo FMI, Banco Mundial e Departamento do Tesouro norte-americano desde finais dos anos 1980s e que corresponde a um modelo liberal da economia, assente na prudência fiscal e mercado livre.

Naturalmente, que este modelo tem potencialidades para Angola, mas não chega. Não existem ainda em Angola instituições suficientemente fortes para garantir o funcionamento de um mercado livre em que uns não acabem por dominar os outros e criar situações oligopolistas e ineficientes, como não há setor privado suficientemente robusto para se tornar o motor da economia.

Fazer depender a reforma económica de Angola apenas de reformas inspiradas no Consenso de Washington não é suficiente, é preciso uma visão mais alargada.

Essa visão mais alargada tem de implicar uma reforma institucional estrutural. Tal significa que os direitos de propriedade têm de ser clarificados abandonando a confusão que a coletivização da propriedade gerou e ainda gera, os tribunais têm de ser colocados a funcionar, a burocracia deixar de ser um empecilho, e obviamente a grande corrupção ser erradicada. Além da reforma institucional estrutural, tem de se perceber que o Estado tem um papel a desempenhar nesta nova fase. Não há setor privado robusto em Angola, nem tudo poderá ser entregue a investidores estrangeiros com perspetivas de curto-prazo. Tem de se arranjar um misto entre Estado e setor privado. Aliás é assim que os países ocidentais mais avançados funcionam, apesar de retórica. É importante adotar o conceito avançado por Mariana Mazzucato de Estado Empreendedor.[12]

O ponto a considerar na reforma económica em Angola é que o papel do governo, nas economias mais bem-sucedidas, foi muito além de criar as infraestruturas certa e definir as regras. O Estado é um agente fundamental para alcançar o tipo de inovação que permite às empresas e economias crescerem, não apenas criando as “condições” que permitem a inovação. Em vez disso, o estado pode criar proativamente uma estratégia em torno de novas áreas de elevado crescimento antes que o potencial seja compreendido pela comunidade empresarial financiando a fase mais incerta da investigação em que o setor privado seja avesso ao risco, buscando novos desenvolvimentos, e muitas vezes até supervisionando o processo de comercialização.

Além do mais, as políticas recessivas do FMI, mesmo sendo necessárias, devem ser compensadas por outro tipo de políticas que aliviem a carga socialmente depredadora daquelas. Em resumo, deve existir um mix de políticas reformistas mais abrangente e adequado a Angola, para que no final os primeiros clarões de sucesso tenham resultados sustentados.

C-Conclusões

Há que ver para além dos números conjunturais negativos da economia angolana e entender que existe uma política reformista da economia que começa a dar os primeiros frutos e marcar algumas tendências novas. Essa política tem sido aplaudida (e possivelmente aconselhada) pelo FMI, e aqui reside a sua força e fraqueza. Força, porque contém algumas medidas indispensáveis para sanear e economia angolana e lançá-la na senda do crescimento. Força também, porque a sua adoção e concretização traz o elogio e apoio do FMI e organizações irmãs. Contudo, essa política também tem fraquezas, entre as quais se destacam a falta de atenção à reforma institucional, a fraqueza do setor privado em Angola, os efeitos recessivos de políticas contracionistas, entre outros.

Consequentemente, havendo sinais de otimismo nas perspetivas de médio-prazo da economia angolana é necessário aperfeiçoar a política económica que está a ser seguida, incluindo a intensificação das reformas institucionais que garantam que o poder judicial funciona, a burocracia não atrapalha, a corrupção não desvia recursos. Além disso, deve ser revisto o papel do Estado como parceiro empreendedor do setor privado.


[1] Cfr.os números mais recentes: Desemprego 34% (III trimestre 2020), Inflação homóloga 25,19% (Dezembro 2020/Dezembro 2019), Crescimento do PIB -5,8% (III trimestre 2020) em https://www.ine.gov.ao/

[2] Vide https://www.imf.org/en/News/Articles/2021/01/12/pr216-angola-imf-executive-board-completes-4th-review-of-the-eff-arrangement-approves-disbursement

[3] Idem

[4] https://www.cedesa.pt/2020/05/05/porque-a-china-deve-reduzir-a-divida-de-angola/

[5] https://www.cedesa.pt/2020/06/03/angola-petroleo-e-divida-oportunidades-renovadas-2/

[6] https://www.noticiasaominuto.com/mundo/1663059/angola-importou-menos-100-milhoes-de-dolares-de-produtos-da-cesta-basica

[7] https://www.plataformamedia.com/2020/12/15/angola-e-o-maior-produtor-de-banana-em-africa-ha-seis-anos/

[8] https://www.noticiasaominuto.com/economia/1663123/angola-e-terceiro-maior-produtor-africano-de-mandioca

[9] https://www.minfin.gov.ao/PortalMinfin/#!/sala-de-imprensa/noticias/8787/angola-prioriza-investimento-directo-nao-apenas-com-a-china

[10] https://mercado.co.ao/negocios/diamantifera-endiama-quer-concretizar-entrada-da-rio-tinto-em-angola-HC1004823

[11] Cfr. https://piie.com/commentary/speeches-papers/what-washington-means-policy-reform e https://web.archive.org/web/20170715151421/http://www.cid.harvard.edu/cidtrade/issues/washington.html

[12] Ler em https://www.wook.pt/livro/the-entrepreneurial-state-mariana-mazzucato/19312561

A revisão do Orçamento Geral e a reforma da economia angolana

Como está a acontecer em vários países, também em Angola foi necessário proceder à revisão do Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2020[1]. Dois motivos fundamentais impuseram essa revisão: a instabilidade do preço do petróleo e a pandemia Covid-19.

Pela forma como este Orçamento aparece desenhado, parece poder afirmar-se que existe aqui uma oportunidade de começar, finalmente, a corrigir os erros da política fiscal passada e adotar uma visão realista e saudável para a economia. Acima de tudo, é um Orçamento que confere tempo ao Presidente da República para acelerar a reforma da economia.

O ORÇAMENTO REVISTO

Os pressupostos macroeconómicos básicos da revisão orçamental são a inflação média de 25 por cento, o preço do petróleo bruto de 33 dólares por barril, preço médio de gás de 19 dólares por barril e um crescimento negativo do produto de 3,6 por cento.

Figura n.º 1- Pressupostos macroeconómicos do OGE (revisto). Fonte: Ministério das Finanças de Angola

Na verdade, segundo o Relatório de Fundamentação do OGE Revisto elaborado pelo ministério das Finanças, para 2020, projeta-se a maior contração da economia angolana dos últimos 38 anos, com o PIB a contrair -3,6%. O PIB do sector de hidrocarbonetos (petrolífero + gás) irá contrair em 7,0%, enquanto a taxa de crescimento média projetada para os demais sectores situou-se em -2,1%. Facilmente, se percebe que a grande quebra do PIB é provocada pelo petróleo e que são os outros setores que ainda seguram a queda, o que não deixa de ser uma ironia.

Figura n. º2- Decréscimo do PIB geral e por setores (%). Fonte: Ministério das Finanças de Angola

As projeções fiscais do OGE 2020 Revisto apontam para um défice fiscal equivalente a 4,0% do PIB, um agravamento de 5,2 pontos percentuais (pp) face ao valor previsto no OGE 2020 Inicial. O saldo primário deverá estar em torno dos 2,2% do PIB, um valor inferior ao inicialmente projetado em 4,9 pp[2]. O atual valor do Orçamento reflete uma redução de 15,7% relativamente ao OGE 2020 Inicial (Kz 15 970,6 mil milhões)[3].

Naturalmente, um OGE mais pequeno, reflete uma economia mais pequena.

Sobre estes pressupostos vamo-nos dedicar à análise do impacto e significado do preço do petróleo a 33 dólares por barril. Como se sabe este valor é meramente indicativo, pois muitos dos contratos petrolíferos já estão com preços anteriormente estabelecidos e não dependem de oscilações. No entanto, analisando os números mais recentes sobre o preço do petróleo verifica-se que o Brent Crude desde 7 de Julho passado oscilou entre USD 42,84 nesse dia, USD 41, 38 a 10 de Julho, e USD 42,18 a 14 de Julho[4]. Num prazo maior, apenas a 15 de Junho esteve abaixo dos USD 40,00.

Sendo a previsão da evolução do preço do petróleo um exercício sempre muito difícil, a verdade é que parece existir uma tendência para ter o preço acima dos USD 40,00, ao mesmo tempo que no curto prazo não se vê razão para não começar a existir uma aumento da procura do petróleo ligado à recuperação das economias mundiais. A isto liga-se a instabilidade cada vez mais intensa no Golfo Pérsico e os problemas na Venezuela.

Figura n.º 3-Gap entre o preço do petróleo no OGE-R e o índice efetivo recente

Todos estes fatores poderão contribuir para alguma pressão no sentido da subida do preço do petróleo. No entanto, essa subida não deverá ser tão acentuada que volte a inundar Angola de petrodólares.

Neste sentido, há aqui um momento ótimo para a economia se libertar da dependência do petróleo com alguma margem. Se o OGE revisto prevê um preço de USD 33 por barril e este vai estando acima dos USD 40, podendo subir, quer dizer que existe alguma margem de manobra para o governo. Nessa medida este orçamento cria a oportunidade de Angola sair da dependência excessiva do petróleo.

Um segundo aspeto que merece destaque é o facto de o Estado passar a gastar mais no sector social do que com os juros da dívida pública[5]. Não se trata tanto de ter aumentado as despesas sociais, mas de se ter diminuído o pagamento da dívida pública, resultado da negociação com a China, que, aparentemente, concedeu uma moratória de capital e juros por três anos. Sempre defendemos que naquilo que tange à dívida o fundamental era encarar a questão chinesa[6], pois é este país que detém quase metade dos créditos externos públicos sobre Angola.

A China terá sido sensível aos argumentos angolanos, e sobretudo, não poderia deixar que o seu modelo de intervenção win-win em África se tornasse num fiasco mundial, por isso, rapidamente se chegou a um acordo.

REFORMA DA ECONOMIA

Quer o preço orçamentado para o petróleo, quer a posição da China permitem que Angola, apesar da intensa recessão económica em que se encontra, ainda tenha margem de manobra para definitivamente reformar a sua economia.

Essa reforma assenta em vários pilares sobejamente conhecidos. O primeiro, e mais importante, é a extinção definitiva da grande corrupção ou “captura do Estado”. É fundamental sublinhar que a luta contra a corrupção não é uma mera política criminal com impacto reduzido na vida nacional. Devido à magnitude do fenómeno, tornou-se o principal problema económico do país pois desviou recursos e impede que a economia funcione de forma livre, sem entraves e na sua plenitude. Há sempre uma sombra de um interesse corrupto à espreita que pode desvirtuar toda a racionalidade e eficiência económica.

Enquanto a grande corrupção, clientelismo e a falta de transparência que lhe estão associadas persistirem, não há revisão orçamental ou documento, por muito bem elaborado que esteja, que permita o desenvolvimento do país.

Não foi o preço do petróleo que lançou o país na recessão, foi a profunda corrupção e captura do Estado por interesses privados que determinaram uma política económica rapace que criou um falso modelo económico incapaz de reagir às oscilações do preço do petróleo. Na verdade, utilizando a terminologia da Ciência Política, um “bandido estacionário” (ou vários) apoderaram-se dos recursos do Estado para seu proveito próprio, e todo o modelo económico foi construído para sustentar essa apropriação privada dos recursos públicos. Consequentemente, em termos estruturais o preço do petróleo acaba por ser irrelevante para se resolver o problema económico angolano.

Figura n.º 4- Causa da presente crise económica

Nessa medida, a erradicação da grande corrupção é a base de qualquer reforma económica, e também a condição necessária para o segundo pilar dessa reforma que é a liberalização da economia e abertura ao investimento privado. Ninguém vai investir num país tido como corrupto.

Este OGE revisto concede tempo ao Presidente da República João Lourenço para efetivar as reformas fundamentais na economia: erradicação da grande corrupção, liberalização dos mercados internos, promoção do investimento privado. A isto tem de se somar uma aposta na produção interna e possivelmente a criação de um programa de transferências monetárias diretas para as populações mais desfavorecidas para minimizar os riscos intensos de pobreza. Em rigor, este programa de transferências diretas não deveria ser unilateral, mas estar ligado a aspetos de promoção individual e social ligados à educação ou saneamento, no fundo, seguindo os programas do mesmo estilo introduzidas pelo Presidente Lula no Brasil. Não se trata apenas de transferir fundos para as populações carentes, mas de as incentivar a frequentar escolas, construir saneamento, ou exercer um ofício.  Este é um tema que abordaremos em separado.

CONCLUSÕES

Em resumo, temos uma revisão sensata do OGE que abre espaço para o Presidente da República acelerar as reformas necessárias na economia e que são: erradicação da grande corrupção; liberalização do acesso aos mercados, promoção efetiva do investimento privado, intensificação da produção interna, transferências diretas sujeitas a condição educativa ou de saneamento para as populações mais desfavorecidas.

Figura n.º 5- Medidas estruturais genéricas de reforma económica


[1]http://www.ucm.minfin.gov.ao/cs/groups/public/documents/document/aw4x/mja1/~edisp/minfin1205333.pdf

[2]http://www.ucm.minfin.gov.ao/cs/groups/public/documents/document/aw4x/mja2/~edisp/minfin1206937.pdf, p. 11.

[3] Idem, p.11 e 12.

[4] https://oilprice.com/oil-price-charts/46

[5] http://expansao.co.ao/artigo/133628/estado-volta-a-gastar-mais-com-o-sector-social-do-que-com-juros-da-divida-p-blica?seccao=5

[6] https://www.cedesa.pt/2020/05/05/porque-a-china-deve-reduzir-a-divida-de-angola/

Angola: A necessidade de um novo enquadramento legal para o combate à corrupção

Resumo:
O combate à corrupção encetado por João Lourenço, Presidente da República de Angola, está a encontrar variados obstáculos.

Para ter sucesso, é necessário haver uma mudança estrutural que abrange a criação de um novo órgão judiciário focado na corrupção, uma secção especializada de tribunais da corrupção e branqueamento de capitais e nova legislação para admitir a colaboração premiada e os acordos entre as partes.  

Foi em fevereiro de 2018, que o então Presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Carlos Saturnino, apresentou numa conferência de imprensa pública, factos que reputou de muito graves e diziam respeito à gestão de Isabel dos Santos nessa empresa.

Em maio de 2020, depois de várias notícias sobre esses e outros factos, por exemplo os Luanda Leaks[1], eventualmente imputáveis a Isabel dos Santos, o facto é que, aparentemente, esta ainda não foi notificada para prestar declarações no processo-crime que então lhe foi aberto em Angola.

A realidade é que existe o risco de um acentuado prolongamento neste processo, nem se condenando, nem se absolvendo, deixando um rasto de injustiça sobre toda a matéria. O episódio cómico sobre o passaporte com a assinatura de Bruce Lee que estaria num dos processos de Isabel dos Santos é um primeiro sintoma ténue da hipótese de falhanço deste processo-símbolo do combate à corrupção em Angola.

Também, em maio de 2020, foram tornadas públicas suspeitas muito recentes sobre atos de corrupção na Comissão Interministerial de Combate à Pandemia do Coronavírus, designadamente, o fretamento injustificado de aviões da Ethiopian Airlines e a compra de mercadorias a entidades privadas, todas elas com volumosas dívidas fiscais em Angola. Empresas que foram apressadamente ressuscitadas para competirem com o programa governamental de fornecimento de material de biossegurança[2]. Começa-se a verificar, nas palavras do veterano jornalista angolano Graça Campos, que o “PIIM (Plano Integrado de Intervenção nos Municípios) tornou-se no livre trânsito oficial de acesso ao dinheiro público[3].”

Não nos compete avaliar ou julgar as alegações feitas por Carlos Saturnino, pelo ICIJ ou por Graça Campos, mas concluir do ponto de vista fático que o combate à corrupção em Angola, apesar das intenções muito claras manifestadas pelo Presidente da República, João Lourenço, não está a surtir efeito imediato e permanente. Nem os processos avançam com celeridade, nem as práticas corruptas parecem ter sido erradicadas, perdurando como uma realidade na vida do país.

É neste contexto que se torna fundamental proceder a uma modificação estrutural na orgânica e legislação fundamental relativamente ao combate à corrupção.

Vislumbramos três zonas de intervenção:

-A criação de um órgão judiciário focado no combate à corrupção;

Nova orgânica judicial própria com a competência de instruir e julgar casos de corrupção e branqueamento de capitais (secções especializadas de tribunais, juízes e lei processual).

-A introdução de legislação que preveja a colaboração premiada e a possibilidade de acordos processuais homologados por juízes entre as partes de um caso criminal.

Fig. n.º 1- Medidas propostas para combate à corrupção

Estas três medidas são fundamentais para colocar o combate à corrupção no caminho certo. Vamos analisar brevemente cada uma das propostas.

Órgão judiciário focado no combate à corrupção

Deverá ser criado um órgão com poderes judiciários, i.e. de investigar, revistar, buscar, apreender, escutar, deter, demandar cooperação internacional, etc, especializado no combate à corrupção. Esse órgão centralizaria toda a investigação respeitante aos grandes casos de corrupção e branqueamento de capitais, tendo uma estrutura própria e estatuto igualmente separado dos outros órgãos. Seria um órgão focado, com capacidade para investigar um caso, acusar, arquivar ou chegar a acordo, proceder à arguição no caso em tribunal, recorrer, enfim, acompanhar os casos do princípio ao fim.

Um exemplo que pode ser seguido e devidamente adaptado é o Serious Fraud Office (SFO) do Reino Unido. Aqui temos uma entidade que investiga e procede à acusação e restante processo em situações de fraudes, subornos e corrupção graves ou complexos[4].

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Fig. n.º 2- O Serious Fraud Office britânico pode constituir uma referência para o órgão a criar em Angola com o fim de combater a corrupção

Secções especializadas nos Tribunais comuns com a competência de julgar casos de corrupção e branqueamento de capitais (Instrução e Julgamento) e lei processual própria

Concomitantemente, seria estabelecido um juiz de instrução adstrito a esta criminalidade, bem como uma secção dentro dos Tribunais comuns, por razões de constitucionalidade (cfr. artigo 176.º, n.º 5 da Constituição), dedicada ao julgamento de processos de corrupção e branqueamento de capitais (autorização de actos que exijam juiz). A tramitação nesta secção, quer na fase de instrução, quer na fase de julgamento seria alvo de uma lei processual própria, também agora aprovada, que garantindo a defesa e garantias dos arguidos, permitisse uma aceleração do processo, e evitasse as dilações. Apenas o recurso seria feito para a secção habitual criminal do Tribunal Supremo.

Portanto, investigação e julgamento teriam órgãos especializados em corrupção e branqueamento.

Figura n.º 3- Nova orgânica judiciária própria para o combate à corrupção

Legislação que preveja a colaboração premiada e a possibilidade de acordos processuais homologados por juízes entre as partes de um caso criminal.

Finalmente, é urgente aprovar legislação que facilite e acelere o combate à corrupção permitindo a adoção de medidas de direito premial, bem como a possibilidade de se chegar a acordos nos processos entre as partes, estando tais acordos sujeitos a homologação de um juiz.

Defende-se a existência do plea-bargain (colaboração premiada), isto é, de negociações entre o Ministério Público e os arguidos que levem à devolução de bens, uma pena mais leve ou inexistente e a denúncia de outros comparticipantes.

A “colaboração premiada” é um benefício legal concedido a um arguido que aceite colaborar na investigação criminal ou explicar o papel dos seus comparticipantes num crime. Esta fórmula facilita a investigação penal e, desde que salvaguardadas determinadas garantias, permite rápidas condenações dentro do quadro do Estado de Direito.  

No Brasil, onde o sistema está bastante desenvolvido e tem sido usado com sucesso, foi a Lei n.º 9613/1998 que desenvolveu o sistema, que já tinha sido introduzido anteriormente. Por esta Lei a colaboração judicial dos arguidos foi estendida à lavagem de dinheiro e previu-se para quem adotasse os seus preceitos penas mais leves, como a condenação a regime menos gravoso (aberto ou semiaberto), substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou perdão judicial (art. 1º, § 5º, Lei 9.613/1998). Depois, a legislação foi-se aprimorando e na Lei 12.529/2011 já se determina que o colaborador identifique claramente os demais envolvidos e disponibilize informações e documentos que provem o que diz (art. 86, I e II). Ademais, é necessário que não estejam disponíveis com antecedência provas suficientes para assegurar a condenação, o colaborador confesse sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações (art. 86, § 1º). A Lei 12.850/2013 regulamentou ainda mais especificadamente os termos do acordo de colaboração.  

Quer isto dizer que ao colaborador não basta confessar um crime e indicar outros culpados. Tem de fornecer provas do que está a afirmar e não pode estar a repetir o que já se sabe.  Portanto, a colaboração para ser premiada tem de trazer provas e novidades, e está sujeita a um detalhado cardápio de regulações que impedem os abusos.

A aprovação de uma lei sobre as “negociações” com arguidos, deveria ser um objectivo urgente, para fundamentar as atividades de recuperação de ativos através de acordos.

Figura n.º 4- Vantagens da colaboração premiada em Angola


[1] International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), Luanda Leaks. Disponível em linha: https://www.icij.org/investigations/luanda-leaks/

[2] Graça Campos, A mamata vai solta, 17 de maio 2020. Disponível em  https://www.correioangolense.info/2020/05/17/a-mamata-vai-solta/

[3] Idem

[4] https://www.sfo.gov.uk/

Porque a China deve reduzir a dívida de Angola

A situação da dívida pública angolana

No seu relatório de dezembro de 2019 sobre Angola, o Fundo Monetário Internacional (FMI) asseverava que: “A dívida pública de Angola é sustentável, mas os riscos aumentaram e as vulnerabilidades permanecem.[1]” Embora previsse um pico da dívida pública para o final de 2019 de 111% do PIB, a visão do FMI era otimista, por várias ordens de razão, designadamente,  a mobilização de novas receitas não petrolíferas nos orçamentos 2020-2021, a implementação rápida de reformas estruturais e a prossecução do programa de privatizações[2].

Na origem da previsão do aumento percentual da dívida pública em termos de PIB encontravam-se três fatores: a depreciação do kwanza no quarto trimestre de 2019 (cerca de quatro quintos do aumento), a baixa dos preços e da produção do petróleo, e a recuperação económica lenta. De sublinhar, portanto, um primeiro aspeto que é a constatação que 80% do aumento do percentual da dívida pública face ao PIB deriva da depreciação do kwanza.

Consequentemente, teríamos uma política preconizada pelo FMI (depreciação moeda) a influenciar negativamente outro índice reputado importante pela mesma organização (relação dívida pública/PIB). Significa isto que não era demasiado importante olhar para esta relação para calcular a possível fragilidade da dívida pública angolana, pois ela refletia essencialmente oscilações nominais e não reais. Em dezembro de 2019, a dívida pública angolana era sustentável.

Contudo, passados quatro meses, a situação tornou-se mais difícil, admitindo-se, agora, que os aspetos reais da economia possam dificultar o serviço da dívida. Ainda não se está nessa situação, e a tomada de medidas pode evitar qualquer problema, pois não se trata de ter sido substancialmente contraída mais dívida, mas do choque proveniente da Covid-19 que está a afetar a economia mundial. Este choque tem consequências para Angola, pressionando dois elementos materiais importantes para a sustentabilidade do pagamento da dívida: o preço do petróleo e a recuperação económica. Como é sabido, o petróleo tem visto o seu preço a descer abruptamente, e as perspetivas de recuperação da economia angolana são débeis.

Consequentemente, em abril de 2020, o mesmo FMI previu uma recessão de 1,4% para a economia angolana e um valor da dívida igual a 132 % do PIB. A previsão do FMI é precisamente só isso, não correspondendo ainda, em termos de dívida pública, a qualquer realidade nova. Na verdade, o ano de 2019 terá fechado com uma dívida pública de 109,8% do PIB e não 111%, ligeiramente melhor do que o previsto[3].

Refira-se ainda que a parte correspondente à dívida pública externa será de 85,4% do PIB, que é a que nos interessa analisar.

Os diversos elementos até aqui considerados, levam-nos a duas conclusões: a primeira: a dívida pública angolana estava a evoluir de forma sustentável, sendo que a degradação nominal da dívida pública do país em percentual do PIB refletia, sobretudo, a depreciação nominal da moeda e não algum descontrolo absurdo que tivesse ocorrido nas finanças públicas nos tempos mais recentes. Se repararmos entre 2017 e 2019, numa época de recessão, o stock da dívida externa aumentou somente 14%, sendo que foi anteriormente, entre 2012 e 2016 que subiu 100%. Isto quer dizer, em termos políticos, que o governo de José Eduardo dos Santos duplicou a dívida pública externa em quatro anos, enquanto João Lourenço tem tentado travar esse aumento exponencial[4]. Uma análise mais fina da figura abaixo apresentada assinala o grande impulso da dívida externa angolana entre 2012 e 2016. Existiu uma tentativa de estabilização em 2017 e apenas aumento modesto em 2018 e 2019.

Figura n.º 1-Stock da dívida pública externa angolana (2012-2019) [valores em milhões de dólares; fonte BNA]

Contudo, e essa é a segunda conclusão, se havia confiança na capacidade de Angola pagar a dívida, e no controlo da mesma por parte do atual governo, a verdade é que a crise mundial da Covid-19 veio lançar uma nuvem de incerteza sobre as dívidas públicas em termos globais, afetando obviamente a perceção em relação a Angola. Naturalmente que essa perceção pós-Covid-19 exige que os governos se antecipem e tomem medidas para evitar problemas futuros.

 É neste contexto que merece atenção a eventual adaptação da dívida externa angolana à realidade presente trazida pela Covid-19, e a necessidade de aligeirar o seu peso para garantir a sustentabilidade da recuperação económica.

A importância da dívida à China

A presente situação mundial trazida pela Covid-19 e a necessidade que Angola tem de garantir que a sua dívida pública é sustentável e de não perturbar o arranque económico que urge mobilizar, implicam que este seja o momento para, sem temor, se avançar com uma renegociação construtiva da dívida externa.

Atendendo às características essenciais da dívida pública angolana, há que seguir o método cartesiano na abordagem dessa negociação. Significa isto, que não se deve olhar para a dívida como um todo, mas dividi-la em secções, abordando cada uma independentemente. É errado do ponto de vista metodológico encarar a dívida pública externa angolana como um todo devido ao peso imenso que a China tem na mesma.

O total de dívida pública externa angolana (stock) tinha o valor de 49.461 milhões de dólares no final de 2019, segundo os dados do Banco Nacional de Angola.[5] Acontece que 22.424 milhões de dólares são devidos à China[6]. Quer isto dizer que a China representara quase metade das responsabilidades externas angolanas, mais precisamente, 45,3%.

Figura n.º 2-Peso da dívida externa angolana à China (em percentagem; fonte: BNA)

Parece claro que a dívida angolana à China representa uma magnitude enorme e tem, obviamente, o peso mais importante nas finanças públicas de Luanda.

Atendendo às características históricas da relação de Angola com a China, bem como ao posicionamento global desta, em especial naquilo que se refere ao relacionamento com África, este é o tempo de propor uma profunda negociação da dívida angolana à China promovendo a sua redução e escalonamento temporal.

Em termos simples, a negociação da dívida pública angolana à China deve baixar o montante da dívida e aumentar o tempo de pagamento.

Facilmente se vê que a dívida à China se pode tornar o principal empecilho para o desenvolvimento de Angola, como no passado, a partir de 2002, terá sido um dos propulsores do arranque.

Ora, a China deve ser um fator de desenvolvimento e não de recessão económica em Angola. Desde logo, deve-se notar que desde 2017, ano da tomada de posse de João Lourenço, data em que a dívida assumiu um pico, que Angola tem vindo a baixar o valor do stock (cfr. Fig. N.º 3 abaixo) demonstrando assim a sua capacidade e boa-fé face à China.

Há três razões muito fortes para levar a China a uma renegociação da dívida com vista à sua redução e prolongamento no tempo.

1-Posicionamento global da China, em especial em África.

A China é, atualmente, uma das grandes potências mundiais, pretendendo ombrear com os Estados Unidos em termos de projeção de influência no mundo.

Nesse sentido, com um novo poder vêm novas responsabilidades, como vieram em relação aos Estados Unidos no final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em que tomou nos seus ombros a reconstrução económica europeia através do Plano Marshall e promoveu ativamente a criação daquilo que veio a ser a CEE (Comunidade Económica Europeia), hoje União Europeia. Foi o empenho norte-americano que possibilitou esta realidade que trouxe prosperidade e paz à Europa.

Ora, a China tem estado a assumir uma posição semelhante em relação a África, utilizando uma retórica de amizade e solidariedade. Refiram-se as palavras do Presidente Xi Jinping na cerimónia de abertura do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC) em 2018: “A China busca interesses comuns e coloca a amizade em primeiro lugar na procura de cooperação. A China acredita que o caminho certo para impulsionar a cooperação China-África é que ambos os lados alavanquem a sua força respetiva; cabe à China complementar o desenvolvimento da África através do seu próprio crescimento, e cabe à China e à África buscar a cooperação em benefício mútuo e o desenvolvimento comum. Ao fazer isso, a China segue o princípio de dar mais e receber menos, dar antes de receber e dar sem pedir retorno”[7] (ênfase nosso).

O certo é que a atual situação provocada pela doença Covid-19 apresenta-se como a ideal para que o Presidente Xi Jinping transforme o seu discurso em realidade e passe a atos concretos de amizade, de dar mais e receber menos, bem como dar sem pedir retorno. Sendo certo que uma doação não é um empréstimo, a verdade, é que o espírito da afirmação do Presidente chinês se aplica perfeitamente a esta situação provocada pela Covid-19.  

Assim construirá uma imagem da China em África de uma grande potência mundial que aposta no desenvolvimento efetivo de um continente e mostrará, do ponto geoestratégico, que é um contendor real dos Estados Unidos na criação de um mundo mais próspero e seguro.

É neste momento que se verá o lugar da China no mundo pós-Covid-19.

2-Pragmatismo

Atribui-se a Deng Xiaoping a frase “Não importa se o gato é preto ou branco, desde que cace ratos”.  Não é relevante saber se a disse realmente ou não, mas o facto é que representa o pragmatismo chinês que permitiu que um Partido Comunista mantivesse o poder, enquanto lançava o país na senda de um crescimento económico acelerado assente num misto de mercado liberal e intervenção estatal. É precisamente este pragmatismo que tanto sucesso trouxe à China que irá justificar a remissão da dívida angolana.

Angola sempre foi apresentado como o modelo do investimento em África. A literatura científica refere-se até ao “Modelo angolano” que serviu de base para a atuação contemporânea da China em África.

Sendo assim, será preocupante para a China ver que o seu modelo falha e se torna um peso para a economia.

Se atentarmos nos números, durante 2019 Angola gastou quase 43% das receitas públicas a pagar dívida, onde, como já se referiu a China ocupa a fatia maior. Consequentemente, a manutenção desta situação pode vir a dar razão às alegações que o Secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, fez durante o seu recente périplo por África, no sentido de a dívida chinesa se tornar uma canga insuportável para o desenvolvimento do continente. Na verdade, chegando-se à conclusão que tal está, ou pode estar a acontecer em Angola, tal constrangimento transforma toda a política africana da China num desastre, uma vez que o seu modelo inicial falhou redondamente.

A adicionar a este pragmatismo político, há um aspeto económico óbvio. As mais recentes avaliações dão conta de que as empresas chinesas em Angola registaram uma perda de 350 a 500 milhões de dólares devido à pandemia da COVID-19[8]. E estas perdas podem-se alargar se a situação económica de Angola não melhorar. Portanto, é de todo o interesse chinês criar as condições de relançamento para a economia angolana, pois tal relançamento aproveita e em larga escala as empresas chinesas. É a chamada situação win-win.

Consequentemente, é, pois, do interesse prático chinês a redução da dívida angolana para mostrar ao mundo que o seu modelo de intervenção em África resulta e não é predatório, e também para ajudar as inúmeras empresas chinesas estabelecidas em Angola.

3-Combate à corrupção e dívida odiosa

Há uma razão fundamental e final de elementar justiça para reduzir a dívida angolana à China. Não existem dúvidas de que parte dessa dívida é aquilo que doutrinariamente se chama “dívida odiosa”, i.e., dívida cujos propósitos não foram o interesse público e o bem comum, mas a apropriação privada da soberania por parte de integrantes dos mais altos órgãos do Estado.[9] Dito de modo mais claro, trata-se de dívida que foi utilizada em atos de corrupção ou serviu para financiar interesses de dirigentes angolanos e possivelmente oficiais chineses.

Nunca se pode esquecer o papel que o cidadão chinês Sam Pa, hoje, aparentemente preso na China, desempenhou nos variados negócios em Angola. Nomes como o CIF-China International Fund ou o Grupo Queensway, ou ainda a China Sonangol, são paradigmas de atividades reputadas como ilegais que estão ou estiveram debaixo de estreita investigação. É um facto que o dinheiro chinês esteve envolvido em vastos atos de corrupção.

Além deste facto, há outro com contornos indefinidos e que merece uma investigação mais atenta por parte dos jornalistas investigativos. A análise das séries estatísticas desagregadas do Banco Nacional de Angola sobre a evolução da dívida chinesa mostra que no segundo quadrimestre de 2016 (maio a agosto) essa dívida passou de 10.531 milhões de dólares para 21.228 milhões de dólares. A dívida à China duplicou em 2016[10].

Figura n.º 3- Evolução da dívida pública externa (stock) de Angola à China-2012/2019 (Milhões de dólares. Fonte: BNA)

Esse movimento foi relativamente recente e está mal explicado. Em termos temporais tal acontecimento coincide com uma anunciada ida de José Eduardo dos Santos à China para negociar um empréstimo em Julho de 2015, a que posteriormente se sucederam vários factos como a queda em desgraça do Vice-Presidente da República, Manuel Vicente, e a prisão de Sam Pa em outubro de 2015. Depois disto, Isabel dos Santos assumiu a presidência da Sonangol em Junho de 2016, coincidindo com o lançamento da dívida chinesa nas contas do BNA. Aparentemente, foi desta nova dívida chinesa que saíram 10 mil milhões USD que o Governo atribuiu à Sonangol liderada por Isabel dos Santos para pagamentos antecipados de seis financiamentos da petrolífera, no valor de cinco mil milhões de dólares. Tal permitiu a redução do stock da dívida da petrolífera de 9,8 mil milhões para 4,8 mil milhões. Os restantes cinco mil milhões terão sido canalizados para investimento na e da Sonangol.

Atendendo à controvérsia judicial que, neste momento, envolve a passagem de Isabel dos Santos pela Presidência da Sonangol e a aparente simultaneidade da sua nomeação com a duplicação da dívida angolana à China que terá servido para financiar a Sonangol, talvez devesse haver uma suspensão do pagamento desta dívida até se perceber se existiu alguma ilegalidade ou não, designadamente naquilo que se refere aos 5 mil milhões que foram, aparentemente, afetos a investimentos na e da Sonangol.

Refira-se que é o que a lei chinesa, reforçada por Xi Jinping, impõe. Como se sabe o Presidente chinês e a sua administração desenvolvem um aturado e intenso combate à corrupção no seu país. A lei chinesa em vigor sobre a corrupção encontra-se no Código Penal da República Popular da China aprovado em 1981, revisto em 1997 e reforçado em 2015. De acordo com essa norma, todas as atividades que envolvam corrupção relativas a governantes estrangeiros são crime para os quais os tribunais chineses têm jurisdição. Com efeito, desde 1 de maio de 2011 é crime o pagamento ilícito a oficiais estrangeiros. A verdade é que, atualmente, o Código Penal chinês atua para além das suas fronteiras, por isso pagamentos corruptos, a “dívida odiosa”, já têm de ser considerados pelas autoridades chinesas quando fazem as suas avaliações das situações.

Quer isto dizer que quer por razões políticas, quer por razões de direito interno, a China está obrigada e deve analisar a dívida que tenha sido eventualmente constituída com propósitos corruptos ou de benefício ilegítimo. A dívida de Angola deve ser revista exaustivamente, nessa perspetiva.

Figura n.º 4- Razões para a China reduzir a dívida angolana

Conclusões

Os motivos expostos aconselham vivamente a que a China proceda a uma substancial redução unilateral da dívida angolana. É um imperativo da sua atual posição no mundo, do seu pragmatismo e do direito sínico.


[1] IMF- Angola, IMF Country Report No. 19/371, p. 54. Disponível em https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2019/12/18/Angola-Second-Review-of-the-Extended-Arrangement-Under-the-Extended-Fund-Facility-Requests-48887

[2] Idem, p. 54.

[3] IMF- World Economic Outlook, April 2020: The Great Lockdown, p. 24. Disponível em https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/04/14/weo-april-2020 e também IMF-SUB-SAHARAN AFRICA.COVID-19: An Unprecedented Threat to Development, April 2020, p. 19. Disponível em https://www.imf.org/en/Publications/REO/SSA/Issues/2020/04/01/sreo0420

[4] BNA-Banco Nacional de Angola, DÍVIDA EXTERNA PÚBLICA POR PAÍSES (STOCK): 2012 – 2019. Disponível em https://www.bna.ao/Conteudos/Artigos/lista_artigos_medias.aspx?idc=15419&idsc=16458&idl=1

[5] e [6] BNA-Banco Nacional de Angola, idem.                                        

[7] Presidente Xi Jinping “Full text of Chinese President Xi Jinping’s speech at opening ceremony of 2018 FOCAC Beijing Summit”,  XinhuaNet, 3 setembro 2018. Disponível em http://www.xinhuanet.com/english/2018-09/03/c_137441987.htm

[8] Francisco Shen (entrevistado por Natacha Roberto), “Empresas chinesas em Angola com perdas de 500 milhões de dólares”, Jornal de Angola, 28 de abril 2020. Disponível em http://jornaldeangola.sapo.ao/economia/empresas-chinesas-em-angola-com-perdas-de-500-milhoes-de-dolares

[9]  Robert Howse, The Concept of Odious Debt in Public International Law, UNCTAD, 2007.

[10] BNA-Banco Nacional de Angola, Dívida Externa por País, Dados Trimestrais. Disponível em https://www.bna.ao/Conteudos/Artigos/lista_artigos_medias.aspx?idc=15420&idsc=16460&idl=1

Um modelo de privatização da Sonangol

Introdução

Apesar da emergência climática e da necessidade de “energias verdes”, apesar dos apelos à diversificação da economia angolana, a verdade é que, nos próximos tempos, a Sonangol continuará a ser o coração e motor do desenvolvimento de Angola.

Sendo a principal empresa e fonte de receitas do país, a Sonangol tem estado cheia de problemas. Em 2016, quando Isabel dos Santos assumiu a presidência da empresa foi dito que se encontrava tecnicamente falida e que era preciso reestruturá ‑la e acabar com os gastos descontrolados. Saiu Isabel dos Santos no final de 2017, e continua ‑se a repetir que é preciso reestruturar a empresa e acabar com os gastos descontrolados. 

No PROPRIV (Programa de Privatizações para o Período de 2019-2020), aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 250/19, de 5 de Agosto, a Sonangol está identificada como empresa de referência nacional que será objecto de privatização. Todavia, não se sabe em que termos será feita essa privatização e quando.

Riscos da Privatização Total

A integral privatização da Sonangol não se afigura a melhor opção, atendendo à dependência umbilical da República relativamente à empresa. No final, tal privatização total, poderia condenar a viabilidade do Estado angolano ou criar uma nova classe de oligarcas ainda mais poderosos que os passados. De momento, a Sonangol ainda é um instrumento de soberania e afirmação estratégica do Estado em Angola.

Problemas da Sonangol

As dificuldades da Sonangol são acima de tudo estruturais e não conjunturais. Na realidade, a Sonangol padece de três males.

Em primeiro lugar, uma grande falta de foco, quis fazer de tudo e acabou por não fazer quase nada. Em relação à falta de foco, o facto de a Sonangol ter sido a responsável pelas concessões e licitações do petróleo em Angola retirou ‑lhe estímulo para ser uma empresa eficiente, porque à partida a companhia não tinha um incentivo para se organizar com regras eficazes e fazer face à concorrência, porque contava com receitas garantidas. Uma empresa com receitas garantidas torna -se preguiçosa, lenta e pouco inovadora.

Afortunadamente, neste aspecto, já se estão a tomar algumas medidas importantes como o estabelecimento da Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis, instituída pelo Decreto Presidencial nº 49/19 de 6 de Fevereiro, e a decisão de alienação de património e empresas não ligadas à essência da actividade da Sonangol.

Em segundo lugar, a Sonangol possui uma estrutura organizativa e burocrática muito complexa e com muitos escalões de gestão, o que lhe retira flexibilidade e capacidade de adaptação. Neste âmbito, toma especial relevo o recurso sistemático a consultores externos, o que tem duas consequências negativas: é caro e não forma e especializa os recursos humanos próprios. A Sonangol foi deixando de ser uma “escola” de excelência, para ser um vaso receptor de relatórios externos mal-amanhados. A aposta numa estrutura de gestão simples e assente no pessoal doméstico é fundamental.

O terceiro mal, e talvez o mais relevante é a falta de dinheiro para investimento.  Tem-se assistido nos últimos tempos que a uma subida do preço do petróleo não se segue uma subida directamente proporcional as receitas da empresa, porque a sua produção efectiva baixa.  Significa isto, que a empresa não está com capacidade para aproveitar a bonança de mercado. Por exemplo, em 2018, a produção de barris de petróleo desceu 9% em relação a 2017. De acordo, com a própria administração da companhia, tal desempenho explica-se por vários motivos, designadamente:” “maturidade dos reservatórios, entrada de novos projetos de desenvolvimento com baixo desempenho e à degradação das instalações de produção devido a não realização de trabalhos de intervenção nos poços, bem como a falta de perfuração de novos poços por falta de unidades de perfuração nos blocos.” Facilmente, se conclui que a maior parte destas razões se liga à falta de investimento ou uso eficiente dos recursos.

Tabela 1 – Os três problemas da Sonangol

Modelo de Privatização

Consequentemente, a principal medida a tomar é a privatização da Sonangol, pois além de trazer receitas para o Estado, proporcionará os investimentos e a capacidade de gestão adicionais que são fundamentais para a sobrevivência da companhia. Como referido, não se defende a privatização de 100% da empresa, mas sim a privatização de 33% do seu capital de forma a trazer investimento internacional, envolvimento do capital angolano e motivação dos seus trabalhadores.

Estes três objectivos seriam atingidos através do seguinte modelo de privatização parcial:

Dos 33% de capital social a ser privatizado, 15% seriam para investidores estrangeiros e seriam objecto de uma OPV (Oferta Pública de Venda) numa Bolsa Internacional de referência mundial com liquidez abundante. 

Os outros 10% seriam para investidores nacionais e seriam objecto de OPV em Luanda.

E finalmente, os restantes 8% seriam destinados aos trabalhadores da Sonangol, que se tornariam também donos da empresa pela propriedade das suas acções.

Tabela 2 – Modelo de Privatização Parcial de 33% da Sonangol

Oferta Pública de Venda em Bolsa Internacional 15%
Oferta Pública de Venda Nacional 10%
Parte reservada aos Trabalhadores   8%

Através deste modelo, a Sonangol entraria nos mercados internacionais mais líquidos para obter dinheiro e investidores experientes, e estimularia o mercado financeiro em Luanda. E no fim das contas, 2/3 (dois terços) da empresa continuariam a pertencer ao Estado.

Bem estudada e montada de molde a evitar as entropias habituais nestas situações, esta privatização faseada tinha a grande vantagem de abrir de novo Angola ao mundo financeiro e ao dinheiro internacional, lançando a empresa numa senda de progresso, novamente. Estar numa capital mundial global obriga à eficiência, transparência e boas práticas de gestão. Estar em Luanda e pertencer, em parte, aos trabalhadores, renova o compromisso da empresa com o Estado e o Povo angolano e demonstra que apesar da privatização parcial, o povo é o dono do petróleo.

Nos tempos turbulentos que se vivem, as empresas têm de se modernizar e investir. Para isso precisam de uma gestão competente e de obter fundos, esse tem de ser o destino da Sonangol e não ser uma coutada de uns poucos. Por isso, se defende que o processo de privatizações tem de começar pela privatização parcial e faseada da Sonangol através de um procedimento internacional, transparente e competitivo. Por algum tempo, o futuro de Angola ainda continuará ligado à Sonangol, nessa medida, a mudança começa por esta empresa.