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A necessidade de um mecanismo conjunto da União Africana para a dívida africana à China

O enquadramento e problemas da dívida à China em África

África é um continente que é mencionado múltiplas vezes por causa das suas vastas riquezas naturais. Desafortunadamente, isso não se reflete na riqueza das populações africanas, que consequentemente sofrem variadas privações.

Neste contexto, a questão da dívida dos países africanos à China vai ganhando contornos algo preocupantes. Os empréstimos contraídos pelos países da África Subsariana à China conheceram um grande impulso, principalmente a partir do momento que foi estabelecida a Road and Belt Initiative (RBI), em 2013. Esta ambiciosa iniciativa chinesa, que teve como fundamental motivador, o Presidente Xi Jinping, apresentava como grande objetivo aumentar a influência económica e geopolítica do país. E se os empréstimos conheceram um grande crescimento em 2013 com 17.5 biliões de dólares, tendo mesmo atingido o auge em 2016 com 28.4 biliões de dólares, nos anos seguintes a queda nos valores dos empréstimos foi incessante, atingido os 1.2 biliões em 2021, e no ano seguinte totalizando apenas 994 milhões de dólares (um total de 9 empréstimos), destacando-se como o nível mais baixo de empréstimos chineses desde 2004.[1]

Fig.1 – Evolução anual dos Empréstimos Chineses para África (biliões dólares)

Fonte: Chinese Loans to Africa Database, Boston University

A canalização deste dinheiro chinês para o desenvolvimento de África, designadamente no financiamento de vários projetos de infraestruturas e outros empreendimentos, tem estimulado algum crescimento económico africano. Contudo, têm existido várias “nuvens cinzentas”, muitas delas bem visíveis na economia angolana, mas que também se destacam noutros países. Isso traduz-se num mal-estar muitas vezes indisfarçável nas relações sino-africanas. Alguns países, inclusive, tornaram-se eventualmente reféns da chamada “diplomacia da armadilha da dívida”. A China, ao desencadear a RBI, provocou a ideia de facilitismo de empréstimo a outros estados de economias em desenvolvimento, e de facto, isso acabou por tornar o país asiático no maior credor internacional. No entanto, inúmeras vezes esses empréstimos careceram de transparência: os casos de corrupção foram-se multiplicando, muitas vezes porque os financiamentos não passavam por processos de concurso público. O problema da denominada ‘dívida oculta’ surgiu quando “a China deixou de emprestar aos governos centrais e a empresas estatais ou apoiadas pelo Estado. Estas dívidas não aparecem nos balanços financeiros do governo, embora frequentemente os governos sejam responsáveis por elas caso o devedor oficial não seja capaz de pagar”.[2]

Podia-se pensar que esta situação poderia a prazo trazer benefícios para os chineses, uma vez que têm vários países “presos” a dívidas monstruosas. Contudo, não é bem assim, pois ao mesmo tempo, a China está a enfrentar problemas económicos domésticos muito graves, que enquanto não forem solucionados, será difícil conseguir promover ao mesmo tempo uma redução da dívida estrangeira.[3]

Com efeito, a lenta recuperação após a pandemia, o problema do desemprego jovem, e a falência do sector imobiliário, têm abanado o que parecia ser um crescimento inabalável da China. Assim, é como Christoph Nedopil, fundador e diretor do think tank chinês Green Finance and Development Center (GFDC), argumenta: “será um desafio interno para a China promover simultaneamente a redução das dívidas no exterior enquanto os problemas económicos domésticos não forem totalmente resolvidos”.[4]

Em Dezembro de 2022, a Chatham House publicou um relatório que analisava o desenvolvimento do modelo dos empréstimos chineses aos estados africanos (2000-2020), que numa fase inicial se fundamentavam em fornecimento de recursos, para evoluírem depois para escolhas mais estratégicas, ou orientadas para o negócio.

Fig 2: Os 10 principais beneficiários de empréstimos chineses em África, 2000-20

Fonte: Chatham House: https://www.chathamhouse.org/2022/12/response-debt-distress-africa-and-role-china/02-case-studies-chinese-lending-africa

Note-se, no entanto, que a partir de 2021 a orientação do país asiático alterou-se, por motivos já anteriormente mencionados, e também porque vários estados não estavam a cumprir com os pagamentos. A liderança chinesa, mudou de rumo e passou a deixar de investir em grandes projetos, como caminhos-de-ferro e autoestradas, para se concentrar em empréstimos mais pequenos, com um impacto social e ambiental mais benéfico. A agenda climática foi mais um fator a entrar na equação.[5]

Além disso, o dinheiro começou a mudar de direção; anteriormente a maioria dos empréstimos iam para os países da África Oriental e Austral. A partir de 2021-22 houve uma mudança para a África Ocidental, com países como o Senegal, Benim e a Costa do Marfim a receberem a maioria das verbas.[6]

Muitos dos estados africanos, e não só, entraram em incumprimento da dívida, por isso era imperativo que fossem trilhados caminhos para que se arranjassem soluções para resolver a já chamada ‘dívida odiosa’ da China.

Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), os países pobres mais endividados do mundo têm todos contraído grandes empréstimos junto da China. Esta situação, como já referimos, pode constituir a “diplomacia da armadilha da dívida”, em que a China concede deliberadamente empréstimos a países que sabe não poderem pagar, na esperança de ganhar influência política.[7]

O que tivemos no ano passado foi um crescimento das exportações chinesas para África, que atingiu os 173 biliões de dólares, um aumento de 7,5 % em relação a 2022, enquanto as suas importações do continente caíram 6,7 %, para 109 biliões de dólares (dados fornecidos pela Administração Geral das Alfândegas chinesa).

Embora o aumento anual de 100 milhões de dólares tenha feito do comércio bilateral de 2023 um recorde, o défice comercial de África com a China continuou a aumentar, passando de 46,9 biliões de dólares em 2022 para 64 biliões de dólares no ano passado.[8]

Em 2022, 60% das nações devedoras da China estavam em dificuldades financeiras, contra 5% em 2010.[9]

Como é que algumas destas nações africanas têm enfrentado este problema da dívida, e de que forma a China tem modificado o seu comportamento ao longo do tempo?

Analisemos alguns casos:

Zâmbia:

O Império do Meio tem sido duro nas negociações para a reestruturação da dívida, e a conjuntura, apesar de todas as condicionantes, só não é pior, porque ganham relevância outros atores, que não apenas os estados, tais como instituições económicas, como o FMI, ou o Banco Mundial, ou organizações que promovem a negociação internacional e o diálogo, como por exemplo, o G20.

No caso da Zâmbia, que é o maior produtor de cobre do continente, foi a primeira nação soberana de África no período da pandemia a entrar em incumprimento quando não conseguiu efetuar um pagamento de obrigações de 42,5 milhões de dólares. A dívida acabou por impedir o país de se desenvolver economicamente e de assumir novos projetos. Desse modo, em Junho de 2023, a Zâmbia e os seus credores nos quais se incluía a China, acabaram por chegar a um acordo no âmbito do Quadro Comum do G20, para reestruturar 6,3 biliões de dólares em empréstimos.[10] Este alívio limitou-se a prorrogações de prazos e a um período de carência no pagamento de juros, mas para se chegar a um consenso não houve cortes na dívida,

Todavia, em Novembro, já havia desentendimentos, uma vez que o governo zambiano anunciou que um acordo revisto para retrabalhar 3 biliões de dólares em euro-obrigações não poderia ser implementado devido a objeções dos credores oficiais, incluindo a China.

Estes problemas de reestruturação da dívida da Zâmbia, que tinha sido negociada no âmbito do Quadro Comum do G20, acabou por minar bastante as negociações e atrasar ainda mais a reestruturação da dívida, colocando cada vez mais em agonia a vida do cidadão comum da Zâmbia.[11]

Gana:

No início do ano passado, o Gana devia à China 1,7 biliões de dólares, de acordo com o Instituto Internacional de Finanças, uma associação comercial de serviços financeiros focada nos mercados emergentes.[12] Tal como a Zâmbia, o Gana entrou em incumprimento soberano de 60 biliões de dólares em dívida interna e externa no final de 2022 e procurou logo a seguir uma resolução para este problema, ao abrigo do Quadro Comum para a dívida externa oficial de 5,4 biliões de dólares.[13]

Um acordo com os credores oficiais para a reestruturação da dívida foi estabelecido, seguindo o mesmo figurino da Zâmbia. Contudo, apesar de este acordo ter permitido desbloquear um empréstimo do FMI, o progresso tem sido arrastado.

Atualmente, segundo algumas fontes, “o Gana pretende proceder a uma simples reestruturação da dívida, trocando obrigações antigas por novas notas, numa altura em que o país procura aliviar a dívida de cerca de 13 biliões de dólares a credores privados internacionais”.[14] Todavia, as informações veiculadas têm sido contraditórias, por isso o governo ganês, mostrou-se cauteloso  quanto a uma reformulação da dívida que incluísse uma redução gradual, em que os detentores de obrigações recebessem menos se os resultados macroeconómicos não fossem tão bons como esperado.[15]

Não obstante, o governo disse aos investidores que gostaria de chegar a uma solução, após o acordo sobre a dívida pública alcançado com credores, tais como o ‘Clube de Paris’ e a China.

Etiópia:

A Etiópia é o segundo país mais populoso de África e o décimo maior em termos de área, mas é também dos estados africanos que vive uma maior turbulência a nível geopolítico, militar e económico. A proximidade com o estado chinês já vem de trás. Há tempos a Etiópia fechou vários acordos bilaterais com vários dos seus credores oficiais, entre os quais a própria China. Com as reservas de divisas reduzidas, que têm sido um problema constante no país, e uma inflação elevada, chegou a acordos bilaterais de suspensão do serviço da dívida. Com a China obteve uma suspensão da dívida de dois anos., que rapidamente passam. A Etiópia tem 28,2 biliões de dólares em dívidas externas, metade das quais são chinesas. De acordo com o Banco Africano de Desenvolvimento, o PIB da Etiópia deverá crescer 5,8 % em 2023 e 6,2 % em 2024, principalmente com base na indústria, no consumo e no investimento. Por outro lado, a inflação atingiu os 34% em 2022. Devido às elevadas despesas com a defesa e à diminuição da cobrança de receitas, o défice orçamental foi de 4,2% do PIB em 2022.[16]Perante este cenário, a Etiópia precisa de apoio ao desenvolvimento, alívio da dívida e Investimento Direto Externo.[17]

A situação angolana

A situação da dívida angolana à China é mais antiga do que a iniciativa Belt and Road de 2013, começando a ser desenvolvida a partir do final da Guerra Civil em 2002, constituindo-se a China no principal financiador da reconstrução que se sucedeu. Neste momento, considerando os dados oficiais do Banco Nacional de Angola (BNA), o stock da dívida pública de Angola em relação à China é 18,4 mil milhões de dólares (biliões na designação anglo-americana), correspondendo a 37% da dívida total. Mais do que isso, os números mostram que entre 2019 e 2023 esse montante desceu de 22,4 mil milhões para 18,4 mil milhões. Tal significa que, em quatro anos, Angola pagou – só de capital, sem contar com juros – 4 mil milhões de dólares à China[18]. Tem sido notado por todos o peso que o pagamento da dívida pública tem no Orçamento Geral do Estado, notando-se sérios apertos nas Finanças Públicas angolanas em 2023, e antevendo-se que o mesmo aconteça em 2024, sobretudo a partir de Março, tendo em conta as necessidades de pagamentos à China.

Embora, não entendamos que o pagamento da dívida à China coloca em causa a solvabilidade do Estado angolano, entendemos que tem um efeito crowding out muito significativo, uma vez que retira recursos do Orçamento Geral do Estado que poderiam ser destinados ao desenvolvimento e ao sector social para pagamento de dívida, dívida que em certa parte é polémica, uma vez que houve uma utilização muito questionável dos empréstimos: Parte dessa dívida foi destinada a infraestruturas descartáveis, como estádios e estradas que hoje estão em condições precárias. Além disso, uma parcela significativa desses empréstimos acabou apropriada privadamente por dirigentes angolanos, prejudicando a economia do país.

Há um claro problema angolano com a dívida chinesa, que como acabámos de descrever sumariamente, também existe em relação a outros países africanos.

Fig. 3 – Empréstimos chineses a África e Angola (em USD$ biliões)

Fonte: China Africa Research Initiative – Johns Hopkins University (https://www.sais-cari.org/)

 A criação de um mecanismo comum na União Africana (UA) para negociar a dívida chinesa

Sendo a dívida chinesa uma questão africana, não deve continuar a ser encarada bilateralmente, tornando-se evidente que cada Estado, por si, pode ser demasiado fraco para negociar com a China, uma das potências mundiais da atualidade ou para surgir sozinho nas organizações que os credores promovem. Os credores unem-se, enquanto os países africanos os enfrentam sem apoio, individualmente.

Seria importante que a Conferência da União Africana, órgão supremo da UA composto pelos chefes de estado e de governo (art.º 6 do Acto Constitutivo da UA) criasse um Comité Conjunto de Negociação da Dívida Chinesa (art.º 6.º, d) de si dependente, mandatado para negociar com as autoridades chinesas um quadro global de reajustamento da dívida africana para com a China, que depois seria aplicado a todos os que pretendessem um aligeiramento da divida.

Torna-se evidente que a negociação da divida africana com a China é um processo complexo que envolve a interação entre as diferentes partes com interesses e objetivos distintos. Para alcançar o sucesso é fundamental considerar a unidade africana para exigir a cooperação chinesa. Essa unidade traduz-se, desde logo, em reunir informações e obter o máximo de elementos para a negociação, o que um órgão conjunto pode facilitar. Em negociações complexas, o tempo e a capacidade de entender o outro são aspetos fundamentais, e nesse sentido, uma solução una africana permitirá uma muito maior troca de experiências, e, simultaneamente, um acompanhamento mais técnico, menos emotivo e com mais peso negocial da negociação.

Torna-se fundamental que África delineie uma política conjunta para lidar com a dívida chinesa de igual para igual e não numa posição de fraqueza.

Uma solução clara é fazer passar todas as negociações por um corpo unido africano dentro da União Africana, tornando-se numa negociação alargada União Africana-China. Tal permitiria igualmente reforçar a unidade do continente berço.


[1] https://www.reuters.com/world/africa/chinese-loans-africa-plummet-near-two-decade-low-study-2023-09-19/

[2] Africa Defense Forum Magazine:  https://adf-magazine.com/pt-pt/2022/02/dividas-com-a-china-colocam-20-paises-africanos-em-dificuldades-financeiras/

[3] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cmj544lg205o

[4] idem

[5] https://www.voanews.com/a/china-s-lending-to-africa-hits-a-low-study-shows/7280214.html

[6] idem

[7]  Visual Capitalist: https://www.visualcapitalist.com/countries-loans-from-china/

[8] South China Morning Post: https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/3250552/china-africa-trade-hit-282-billion-2023-africas-trade-deficit-widens-commodity-prices-key-factor

[9] Visual Capitalist:  https://www.visualcapitalist.com/countries-loans-from-china/

[10] Associated Press: https://apnews.com/article/zambia-debt-restructuring-deal-china-a0d14e7af986e2f873555685cedb86b3

[11] Afronomics Law: https://www.afronomicslaw.org/category/african-sovereign-debt-justice-network-afsdjn/one-hundred-and-fourth-sovereign-debt-news

[12] https://www.reuters.com/world/africa/china-says-its-official-bilateral-loans-are-less-than-5-ghana-debt-2023-03-02/

[13] Economist Intelligence:  https://www.eiu.com/n/china-and-africas-long-road-to-debt-recovery/

[14] https://www.reuters.com/markets/rates-bonds/ghana-pushes-simple-debt-rework-proposal-bondholders-sources-2024-01-30/

[15] idem

[16] Observer Research Foundation: https://www.orfonline.org/research/the-changing-face-of-ethiopia

[17] idem

[18] Rui Verde, https://www.makaangola.org/2024/01/angola-eua-trump-e-divida-a-china/

A atual situação económica na China e Angola

Crise da economia chinesa: factos e causas

Está a existir um problema na economia chinesa que parece estrutural e poderá afetar as relações com países devedores, como Angola. Vários fatores estão a contribuir para uma diminuição do crescimento económico na China e o aumento do desemprego, sobretudo jovem, o que poderá também implicar alguma instabilidade política dentro da própria China.

Comecemos por referir alguns dados avulsos recentes[1]:

-Os dados de crédito de julho divulgados no passado dia 11 de Agosto mostraram uma queda na procura de empréstimos por parte de empresas.

-As vendas no retalho subiram apenas 2,5% em julho em relação ao ano anterior, abaixo das expectativas de um aumento de 4,5%.

-A produção industrial somente aumentou 3,7% em julho em relação ao ano anterior, abaixo do aumento de 4,4% que os analistas esperavam.

A verdade é que as estatísticas recentes publicadas pela China causaram severa preocupação.  Além das estatísticas acima mencionadas, os preços ao consumidor em julho estavam mais baixos do que há um ano, sugerindo que se pode estar à beira da deflação, o que reflete uma escassez crónica da procura na economia. O comércio exterior da China no mesmo mês de julho mostrou uma queda acentuada nas exportações devido à fraca procura global, acompanhada por um declínio mais acentuado nas importações, significando a referida fraqueza na procura doméstica. As empresas e famílias chinesas estão “encolhidas”[2]. A gravidade da situação levou a que numa reunião do Politburo no mês passado, os dirigentes da China se referissem à recuperação económica deste ano como “tortura[3].”

Todo este fraco desempenho levanta-nos várias reflexões. A primeira é que não se deve entrar em exageros. Assim, como houve um exagero nos anúncios pretéritos acerca da China como superpotência económica, quando o seu PIB per capita não ultrapassa os 13.000 USD em 2021,[4] enquanto o PIB per capita nos Estados Unidos é de mais de 70.000 USD, ou mesmo em Portugal de 25.000 USD, também não se deve entrar no exagero contrário, de que a China entrou num abismo insuperável. O evidente é que a economia chinesa está num momento de correção como acontece a todas as economias, possivelmente, necessitando de profundas reformas e ajustamentos políticos.

Portanto, o contexto que adotamos neste trabalho é de considerar uma crise na economia chinesa, mas acreditar que as escolhas certas de política podem ultrapassar essa crise.

Neste preciso momento, a esperança de recuperação chinesa após a pandemia desvaneceu-se, pois, o consumo geralmente tem sido muito moderado, especialmente para itens caros, como carros e casas, e o investimento privado, a espinha dorsal da economia da China, caiu no primeiro semestre deste ano, pela primeira vez desde que tais dados foram publicados. As empresas privadas e os empresários não gastam muito em investimentos ou na contratação de pessoal. O desemprego juvenil atingiu 21%. A formatura anual de 11 a 12 milhões de estudantes neste verão vai agravar uma situação já difícil por causa dos problemas de encontrar trabalho adequado e também porque o mercado de trabalho chinês se tornou naquele em que a maioria dos empregos são de baixa remuneração, baixa habilitação ou economia informal.

Parece errado atribuir tudo isto à pandemia. A maioria das ameaças à economia da China estava a crescer há alguns anos. O problema fundamental é que a China gerou, durante a última década ou mais, uma montanha de dívidas incobráveis, infraestruturas e imóveis não lucrativos e não comerciais, blocos de apartamentos vazios, instalações de transporte pouco usados e excesso de capacidade, por exemplo, em carvão, aço, painéis solares e veículos elétricos. O crescimento da produtividade estagnou e a China pode ostentar um dos mais altos níveis de desigualdade do mundo[5].

Além disso, sob Xi Jinping, desenvolveu um sistema de governação mais intenso, centrado no Estado e controlador, tanto por razões políticas, quanto para lidar com os efeitos de seu modelo de desenvolvimento em dificuldades.

Temos dúvidas até que ponto as intervenções políticas para limitar alguns bilionários como Jack Ma[6] foram positivas para o ambiente económico. Se é verdade que evitaram o perigo russo do domínio oligárquico do Estado e deram um sinal à população em geral de um poder preocupado com excessos, também é certo que fizeram soar calafrios no espírito empresarial necessário para uma economia competitiva. Todos terão medo de crescer em demasia, de dar demasiado nas vistas, no final de contas, de inovar. Pois a inovação e a atenção exagerada podem ter reflexos negativos.

De certa forma, o “espírito animal” de que Keynes falava como motor de qualquer economia saudável foi “domesticado” na China e esse poderá ser o principal problema da sua economia, não sendo mensurável nem resolúvel com medidas técnicas.

Reação chinesa e outras possibilidades de rumo

Para já a China anunciou a suspensão da divulgação da taxa oficial de desemprego entre os jovens urbanos da China, entre os 16 e os 24 anos, que atingira em junho um novo recorde histórico de 21,3%. O Conselho de Estado publicou novas diretrizes para intensificar esforços para atrair investimento estrangeiro. E o banco central baixou as taxas de juro[7].
Nenhuma destas medidas parece ter força para inverter o ciclo de declínio da economia chinesa.

Muitos autores defendem que seria necessário um estímulo fiscal avultado para dinamizar a economia, que não deveria ser traduzido em mais dívida, mas em pura “impressão” de moeda, o que faz sentido numa situação de deflação. Uma espécie de “helicópteros com dinheiro” a sobrevoar as cidades e a largá-lo.[8]

Também é possível que esta crise obrigue o presidente chinês a uma revisão da sua política em relação aos grandes grupos económicos e ao empresariado em geral, optando, tal como Lenine há um século, por uma nova liberalização e flexibilização, procurando igualmente, aligeirar a tensão que se foi criando entre a China e os Estados Unidos.

Na verdade, acreditamos que uma boa parte da solução para os atuais problemas económicos chineses resida na política e não na economia, e quer na política interna, como na externa. Provavelmente, a nível interno o sistema mais adequado para sair da crise seria a reintrodução do sistema mais ambíguo e flexível dos tempos de Jiang Zemin. Jiang Zemin, presidente da China de 1993 a 2003, é considerado “o homem que mudou a China”. Muitos chineses que cresceram na década de 1990 lembram-se de Jiang Zemin por supervisionar a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, e também por permitir a difusão do filme Titanic. Durante a crise financeira asiática, Jiang enfatizou a importância das finanças e da segurança financeira para a segurança nacional da China e a construção de uma economia moderna. Ao mesmo tempo, tal não implicou uma menorização do poder do Partido Comunista Chinês e do seu controle político. Alguns autores apontam-lhe um histórico manchado em relação aos direitos humanos e à liberdade de expressão. Zemin supervisionou a repressão aos dissidentes nacionais, a proibição de grupos religiosos como o Falun Gong e a supressão da imprensa e da Internet e também manteve uma posição intransigente em relação a Taiwan[9].

A vantagem para a China de Jiang Zemin é que soube manter um ponto de equilíbrio entre a libertação das forças de mercado e inovação, e o controlo da China pelo partido Comunista.

E, a nossa opinião, é que uma boa parte da crise chinesa não resulta apenas ou sobretudo de fatores económicos, mas sim da perda desse ponto de equilíbrio que é necessário recuperar.

Obviamente, que tal não depende apenas da liderança chinesa, também tem de contar com uma modificação da situação externa de quase-confronto entre os Estados Unidos e a China.

É sabido que desde o tempo de Donald Trump que houve uma inflexão na política externa norte-americana aumentando a agressividade face à China. O que parecia um “trumpismo”, tornou-se uma política central norte-americana com Joe Biden e hoje os Estados Unidos veem e tratam a China como um potencial inimigo futuro que é preciso conter. Naturalmente, que tal coincidiu com a afirmação nacionalista de Xi Jinping que abandonou a anterior cautela externa, e passou a querer uma China forte no contexto mundial e sem complexos, pretendendo que o país fosse uma alternativa pós-hegemónica aos Estados Unidos. Portanto, de ambos os lados tivemos uma iniciativa voluntária confrontacional.

A questão que se coloca é se é possível uma retração e a criação dum novo espaço de colaboração EUA-China, que certamente aumentará a prosperidade da China, ou se o rumo é definitivamente o confronto estratégico? Neste confronto a China, perdendo as capacidades de inovação ligadas ao espírito empresarial tenderá a compartimentar-se e fechar-se, o que aumenta quer as possibilidades de elevação dos níveis de conflito (guerra mais ou menos direta) e dificulta qualquer recuperação económica chinesa.

Impactos em Angola

Esta é a situação real da economia chinesa neste momento. Como referido, os “travões” fundamentais ao crescimento parecem ser dois: do ponto de vista económico, a excessiva dívida, e do ponto de vista político, que a nós nos parece mais importante para o médio e longo-prazos, a acentuação da força do poder político na economia e na sociedade, e a condenação política do espírito empresarial e da inovação.

Face a este cenário, Angola confronta-se com vantagens e desvantagens que atuam de forma dinâmica.

Uma vantagem resulta da aproximação de Luanda aos Estados Unidos e das relações que mantém com a China. Angola poderá ser um país-ponte para o reencontro entre as duas potências, uma espécie de terreno em que se comprove que ambos podem cooperar, competir e subsistir para benefício mútuo. Todavia, também se pode tornar pela mesma razão como uma desvantagem, transformando-se Angola num dos campos de disputa entre as duas potências, querendo ambas puxá-la para a sua esfera de influência. Aqui estaria mais um equilíbrio difícil de manter para João Lourenço.

Em termos económicos, haverá a possível tendência das autoridades chinesas acentuar alguma inflexibilidade em relação a dívidas externas, tal podendo já estar a acontecer com Angola, ou vir a acontecer. É a reação normal de países em “aperto.” Há, portanto, o perigo de uma maior pressão chinesa em termos económicos em relação a Angola, que poderá colocar em perigo as, novamente, periclitantes finanças públicas angolanas.

O espírito “árvore das patacas” (de largueza) que predominou nas relações financeiras China-Angola a partir de 2002 terminou definitivamente e não será recuperado. A China comportar-se-á com Angola, com maior ou menor detalhe, como qualquer outro credor internacional, e a sua pressão aumentará à medida que a situação económica interna chinesa se deteriore. Outro desafio para João Lourenço.

Há uma vantagem que Angola poderá oferecer à China que é a criação de um amplo mercado de trabalho para a sua juventude já formada. Acordos de cooperação poderão ser feitos para colocar chineses em Angola para formar quadros angolanos e ajudar à implementação de políticas em áreas como a Administração Pública em que a China tem uma milenar experiência ou as telecomunicações e tecnologias de informação.

O sistema de função pública chinês proporcionou estabilidade ao império chinês durante mais de 2.000 anos e proporcionou uma das principais saídas para a mobilidade social na sociedade chinesa e atualmente, conseguiu nos anos 1980s realizar uma transição de sucesso duma economia centralizada marxista para uma economia mista com um crescimento acentuado.

Igualmente, a China tornou-se um dos maiores mercados de telecomunicações do mundo, com mais de mil milhões de utilizadores de Internet e uma receita mensal de mais de 130 mil milhões de yuans provenientes do sector das telecomunicações. O país passou por várias ondas de reformas nas últimas três décadas no sentido da liberalização e privatização da sua indústria de telecomunicações. Ora é a experiência adquirida nesta imensidão que pode ser colocada ao serviço dos angolanos.

Nestes termos, a fase atual das relações China-Angola poderá deixar em parte o capital físico e centrar-se no capital humano, mostrando que as relações entre países podem maturar. Angola poderá proporcionar uma oportunidade de escape para as empresas chinesas e os seus jovens.

O que se tem de atentar é que a relação entra numa fase “madura” em que cada país tem os seus interesses que deve defender.  Da China já não virão “chuvas de dinheiro”, mas investimentos racionais, e é com isso que Angola deve contar e contrapor. Na verdade, em termos de mercados de futuro, oportunidades de investimento e escape para os problemas chineses, Angola tem muito a oferecer e pode ser a “moeda de troca” em várias negociações.


[1] https://www.cnbc.com/2023/08/14/china-economy-new-loans-fall-property-fears-low-consumer-sentiment-.html

[2] https://www.cnbc.com/2023/08/17/david-roche-chinas-economic-model-is-washed-up-on-the-beach.html

[3] https://www.theguardian.com/business/2023/aug/11/china-economic-problems-show-things-are-seriously-amiss

[4] https://www.ceicdata.com/pt/indicator/china/gdp-per-capita

[5] Sobre os problemas estruturais e de longo prazo da economia chinesa ver Frank Dikotter, A China depois de Mao – A ascensão de uma superpotência, 2023.

[6] https://www.forbes.com/sites/georgecalhoun/2021/06/07/the-sad-end-of-jack-ma-inc/

[7] https://www.nytimes.com/2023/08/15/business/china-economy-downturn-unemployment.html, https://www.bloomberg.com/news/features/2023-08-20/xi-jinping-is-running-china-s-economy-cold-on-purpose?in_source=embedded-checkout-banner,

[8] Rui Verde, Helicópteros com Dinheiro, 2013

[9] https://www.cfr.org/blog/jiang-zemin-put-chinas-economic-opening-practice

Proposta de um esquema-piloto de garantia de emprego em Angola

Introdução: a magnitude do problema do desemprego e a necessidade de uma resposta governamental sistemática

Em Angola, no terceiro trimestre de 2020, a taxa de desemprego situou-se nos 34%[1]. Este número corresponde a um aumento em cadeia (i.e., em relação ao trimestre anterior) de 9,9% e homólogo (referente ao mesmo período de 2019) na ordem dos 22%[2]. Face a estes dados, qualquer que seja a perspetiva adotada, é fácil verificar que o desemprego é um problema fundamental e grave com que se deparam a economia e sociedades angolanas.

Fig. n.º 1- Evolução recente da taxa de desemprego em Angola (2017-2020). Fonte: INE-Angola

Até ao momento, o governo reconhece esse problema, mas aposta na retoma da economia ao nível do setor privado, para resolver a questão, acreditando que o Estado pouco pode fazer para enfrentar a situação. A solução está no crescimento económico e no dinamismo empresarial, afirma o executivo. O Presidente da República, João Lourenço, foi claro no último discurso do Estado da Nação quando afirmou: “prioridade da nossa agenda é: trabalhar para a reanimação e diversificação da economia, aumentar a produção nacional de bens e de serviços básicos, aumentar o leque de produtos exportáveis e aumentar a oferta de postos de trabalho.” João Lourenço realiza uma ligação indelével entre a diversificação da economia e o aumento da produção nacional e a descida do desemprego.

No fundo, o governo estriba-se no tradicional postulado enunciado pelo economista norte-americano Arthur Okun, segundo o qual existiria uma relação linear entre as mudanças na taxa de desemprego e o crescimento do produto nacional bruto: a cada crescimento real do PIB em dois por cento corresponderia uma diminuição do desemprego em um por cento[3]. A verdade é que vários estudos empíricos não confirmam em absoluto esta relação empírica, e nos anos mais recentes em vários países do mundo, um aumento do PIB não tem levado a um decréscimo acentuado do desemprego, enquanto, noutros casos tem, portanto, é difícil estabelecer uma relação permanente entre desemprego e PIB. A isto acresce que a magnitude do desemprego em Angola implicaria que para diminuir a taxa para os, ainda assustadores, 24%, o PIB teria de crescer 15%…

A questão fundamental é que o problema do desemprego em Angola não é conjuntural, mas estrutural, isto quer dizer que está intimamente conectado às deficiências permanentes da economia angolana e não tem uma mera dependência do ciclo económico.

O facto de o problema do desemprego ser estrutural e duma retoma económica para os anos 2021 e seguintes apenas se situar entre os 2 a 4% do PIB[4], de acordo com as presentes projeções do FMI, implicam que tal animação da economia venha a ter pouco impacto no emprego.

Neste sentido, é fundamental entender-se que a solução do problema do desemprego não depende apenas do mercado e da retoma económica, exige, pelo menos no curto prazo, a intervenção musculada do Estado. É neste contexto que surge esta proposta de experiência piloto.

Fig. n.º 2- Projeções de crescimento do PIB Angola (2021-2024). Fonte: FMI

Uma experiência-piloto de garantia de emprego em Angola

Partindo da primeira experiência de garantia universal de emprego do mundo, projetada por investigadores da Universidade de Oxford e administrada pelo Serviço Público de Emprego Austríaco, que tem lugar na cidade austríaca de Marienthal[5], aplicar-se-ia a mesma metodologia a uma localidade específica em Angola, possivelmente, a um município concreto em Luanda.

Segundo este regime a implementar a título experimental num município de Luanda seria oferecida uma garantia universal de um emprego devidamente remunerado a todos os residentes que estão desempregados há mais de 12 meses.

Além de receber formação e assistência para conseguir trabalho, os participantes teriam garantido o trabalho remunerado, devendo o Estado subsidiar 100% do salário numa empresa privada ou empregar participantes no setor público ou ainda apoiar a criação de uma microempresa. Todos os participantes receberiam pelo menos um salário mínimo fixado de acordo com o Decreto Presidencial que regula a matéria adequado a uma vida com dignidade.

O esquema-piloto funcionaria da seguinte forma:

1) Todos os residentes do município de Luanda escolhidos, que estejam desempregados há um ano ou mais, serão convidados incondicionalmente a participar no esquema-piloto.

2) Os participantes começam com um curso preparatório de dois meses, que inclui formação individual e aconselhamento.

3) De seguida, os participantes serão ajudados a encontrar um emprego adequado e subsidiado no setor privado ou apoiados para criar um emprego com base nas suas competências e conhecimento das necessidades de sua comunidade ou ainda serão empregues pelo Estado.

4) A garantia de emprego assegura três anos de trabalho para todos os desempregados de longa duração, embora os participantes possam optar pelo trabalho a tempo parcial.

Fig. n.º 3- Descrição sumária do esquema-piloto de emprego

Além de eliminar o desemprego de longa duração na região, o programa visa oferecer a todos os participantes um trabalho útil, seja na pavimentação de ruas, em pequenas reparações comunitárias, numa creche, na criação de um café comunitário, no acesso a água e energia, saneamento básico, na reconstrução de uma casa, ou em algum outro campo.

O esquema-piloto é projetado para testar os resultados e eficácia da política e ser depois estendido a mais áreas do país.

Financiamento

“No âmbito do processo de recuperação de ativos, o Estado já recuperou bens imóveis e dinheiro no valor de USD 4.904.007.841,82, sendo USD 2.709.007.842,82 em dinheiro e USD 2.194.999.999,00 em bens imóveis, fábricas, terminais portuários, edifícios de escritório, edifícios de habitação, estações de rádio e televisão, unidades gráficas, estabelecimentos comerciais e outros.”

Assim, falou o Presidente da República no mais recente discurso do estado da Nação acima mencionado.

Ora, nada melhor do que destinar uma parte destas verbas recuperadas ao fomento do emprego. Consequentemente, utilizar-se-ia um montante daí retirado para se criar um Fundo de Desenvolvimento do Emprego que chamaríamos simplificadamente, por causa da origem dos montantes, “Fundo dos Marimbondos”. Este Fundo receberia parte dos ativos recuperados e iria usá-los para financiar iniciativas de fomento de emprego como a aqui apresentada. Dinheiro retirado no passado da economia retornaria a esta para fomentar trabalho para as novas gerações.

Com este modelo de autofinanciamento ficariam arredadas eventuais constrições impostas pelo Fundo Monetário Internacional ou a necessidades de contenção orçamental. O fomento do emprego teria fundos próprios resultantes da luta contra a corrupção. Não parece existir melhor destino do dinheiro que esse.

Fig. n.º 4- Financiamento do esquema-piloto


[1] https://www.ine.gov.ao/

[2] https://www.ine.gov.ao/images/Idndicador_IEA_III_Trimestre_2020.PNG

[3] Arthur M. Okun, The Political Economy of Prosperity (Washington, D.C.: Brookings Institution, 1970)

[4] https://www.imf.org/en/Countries/AGO#countrydata

[5] https://www.ox.ac.uk/news/2020-11-02-world-s-first-universal-jobs-guarantee-experiment-starts-austria

INFLAÇÃO E DESVALORIZAÇÃO DO KWANZA

Resumo:
A flexibilização do câmbio do Kwanza (que está a implicar a sua desvalorização) é condição fundamental para relançar o tecido produtivo angolano e torná-lo competitivo, depois deste ter sido devastado pela política de valorização artificial da moeda. Ao mesmo tempo, autonomiza a política anti-inflação que se torna um elemento doméstico e não importado do exterior. Neste sentido, deve haver cautela com parangonas e análises internacionais que apenas se focam em números negativos do valor do kwanza e da inflação; e estabelecem correlações não necessariamente existentes.

Algumas análises de prestigiadas consultoras económicas têm, ultimamente, emitido alguns relatórios sobre a economia angolana que apenas reproduzem números e projeções negativas, não tomando em consideração nem os modelos teóricos em que assentam algumas das principais decisões de política económica em Angola, nem a realidade concreta da sua economia.

Um dos casos mais intrigantes é a ligação permanente que se faz entre a subida da inflação e a desvalorização do Kwanza, apresentando os dois fenómenos como causa e efeito ou efeito e causa, bem como atribuindo sempre uma carga negativa à expressão “desvalorização[1]”.

O presente texto, não sendo uma previsão, que neste momento de Covid-19 parece despiciendo fazer, tenta abrir outras pistas alternativas para o significado e para a análise da inflação e desvalorização do kwanza, apontando outras justificações e caminhos.

É evidente que o regime cambial semirrígido ou controlado existente antes da adoção do câmbio flexível no último ano, foi um dos responsáveis pela devastação económica angolana. De facto, ao manter-se a moeda angolana num valor elevado face às condições de mercado e não correspondendo ao que seria o resultado da oferta e da procura, estimularam-se as importações fáceis, o consumismo desenfreado e deixou-se declinar a produção interna, uma vez que os preços internacionais foram tornados mais competitivos artificialmente. É a altura em que Luanda se torna a cidade mais cara do mundo[2], e sinais exteriores de riqueza nas elites angolanas abundavam. Tal situação não correspondia a qualquer produção ou desenvolvimento interno, mas ao gasto excessivo de divisas obtidas com os preços elevados do petróleo para manter o valor desadequado do kwanza. Esta era uma situação impossível.


Obviamente, que a recessão prolongada desde 2014, exigia que se terminasse com a valorização artificial do kwanza e se introduzisse um câmbio flexível. Ainda ocorreram alguns anos até tal acontecer, e obviamente, a liberalização do kwanza tem trazido vários problemas graves económicos e sociais a curto-prazo e até mesmo algumas tensões inflacionistas acrescidas.

No entanto, o modelo subjacente à adoção de câmbios flexíveis tem objetivos opostos que se refletirão após um primeiro momento de desconcertoeconómico. Desde o texto seminal de Milton Friedman em 1953[3], sobre as taxas de câmbio flexíveis que dois argumentos sustentam essa política: primeiro, os movimentos livres das taxas de câmbio são uma maneira eficiente de ajustar os preços relativos internacionais em resposta a choques macroeconómicos; segundo, com taxas de câmbio flexíveis, os formuladores de políticas são livres para escolher e seguir sua própria meta de inflação, em vez de depender da taxa de inflação do exterior. Este último aspeto é fundamental ser sublinhado. Milton Friedman enfatizou que as taxas de câmbio, ajudariam a isolar a economia doméstica de choques externos e dariam às autoridades políticas nacionais a capacidade de satisfazer objetivos domésticos. Taxas de câmbio flexíveis fornecem bastante isolamento à economia doméstica se as fontes do choque recessivo estiverem no exterior.


Quer isto dizer que havendo uma taxa de câmbio flexível é possível que o governo/ banco central prossiga uma política anti-inflacionista autónoma do valor externo da moeda.

Na verdade, a desvalorização do kwanza poderá significar que os preços dos bens internacionais  tornam-se excessivamente caros para Angola, e provocar que, ao contrário do que se passava anteriormente, seja mais barato produzir bens em Angola.

Ficando os bens nacionais mais competitivos e substituindo por concorrência, e não por imposição administrativa ineficiente, os bens similares estrangeiros, tal implica que a produção nacional renasça e possa até se constituir como exportadora.

E desde que simultaneamente, o banco central não emita moeda em excesso, outra preocupação da teoria de Milton Friedman, o que a desvalorização cambial acaba por fomentar é o aumento da produção nacional e a redução da inflação, neste último caso se forem seguidas as políticas internas adequadas.

Temos aqui dois efeitos da flexibilização do câmbio:

  • Desvalorizar ou ter uma moeda com valor fraco não é algo de negativo em termos económicos. Pode ser uma questão de afirmação política, mas não é económica. Duas potências económicas mundiais como o Japão e Itália, alcançaram sucesso no pós Segunda Guerra Mundial adotando uma moeda fraca;
  • A flexibilização permite a diferenciação da política cambial do combate à inflação. O combate à inflação passa a depender do acerto das políticas internas. Não há uma ligação necessária entre uma coisa e outra.

Isto não quer dizer que o caminho de transição de uma economia sustentada artificialmente por um kwanza de valor elevado suportado por preços de petróleo em alta para uma economia competitiva e produtiva seja fácil. Está a haver um momento de crise profunda, mais acentuado pela pandemia Covid-19, além de que há sempre um fator sorte a considerar. E sorte não tem havido para Angola, em termos económicos.

Contudo, a política de flexibilização cambial está certa e não há que ter medo da desvalorização. Esta está a tornar a economia mais competitiva face ao exterior e a obrigar à busca de soluções internas. O sucesso passa a depender mais das políticas do governo. É na definição coerente e consistente da política económica do governo que está agora o segredo.

É por isso que os números que estão a ser lançados sobre desvalorização e inflação assustam superficialmente, mas só terão impacto negativo se forem causadores da implementação de políticas erradas por parte do governo. Caso contrário, não têm, por si mesmo, qualquer relevo. É sabido que o Kwanza estava sobrevalorizado e que tal prejudicou imensamente a economia angolana. É sabido que o combate à inflação, com taxas flexíveis, não depende do exterior, mas das decisões certas do governo.

Há consciência que o momento presente é de crise profunda, mas começam a surgir alguns indicadores reais animadores. Um deles é que “Angola desembolsou, no primeiro trimestre do ano, 495 milhões de dólares (436,5 milhões de euros) na importação de bens alimentares, uma diminuição de 31% comparativamente aos 717 milhões de dólares (632,3 milhões de euros) do último trimestre de 2019.[4]


O governo angolano atribuiu esta evolução a uma melhor organização do mercado cambial e a um aumento da procura de produtos nacionais. Fonte oficial afirmou: “Estamos a verificar estes dois fatores, podemos dizer que estamos no caminho certo, há uma procura da produção nacional, há uma diminuição das importações”. Estes factos parecem confirmar a análise que fazemos. Obviamente, que no final tudo dependerá do acerto das políticas públicas internas.


[1] Usamos indistintamente a expressão desvalorização e depreciação, apesar da existência de correntes que defendem serem conceitos diferentes.

[2] https://www.me.mercer.com/newsroom/2015-cost-of-living-survey-rankings-Mercer-Middle-East.html

[3] Friedman, M. (1953) “The Case for Flexible Exchange Rates.” In Essays in Positive Economics, 157–203. Chicago: University of Chicago Press.

[4] https://www.sapo.pt/noticias/economia/angola-importou-menos-31-de-alimentos-no_5f0f32adb34d505496f5eddd

A revisão do Orçamento Geral e a reforma da economia angolana

Como está a acontecer em vários países, também em Angola foi necessário proceder à revisão do Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2020[1]. Dois motivos fundamentais impuseram essa revisão: a instabilidade do preço do petróleo e a pandemia Covid-19.

Pela forma como este Orçamento aparece desenhado, parece poder afirmar-se que existe aqui uma oportunidade de começar, finalmente, a corrigir os erros da política fiscal passada e adotar uma visão realista e saudável para a economia. Acima de tudo, é um Orçamento que confere tempo ao Presidente da República para acelerar a reforma da economia.

O ORÇAMENTO REVISTO

Os pressupostos macroeconómicos básicos da revisão orçamental são a inflação média de 25 por cento, o preço do petróleo bruto de 33 dólares por barril, preço médio de gás de 19 dólares por barril e um crescimento negativo do produto de 3,6 por cento.

Figura n.º 1- Pressupostos macroeconómicos do OGE (revisto). Fonte: Ministério das Finanças de Angola

Na verdade, segundo o Relatório de Fundamentação do OGE Revisto elaborado pelo ministério das Finanças, para 2020, projeta-se a maior contração da economia angolana dos últimos 38 anos, com o PIB a contrair -3,6%. O PIB do sector de hidrocarbonetos (petrolífero + gás) irá contrair em 7,0%, enquanto a taxa de crescimento média projetada para os demais sectores situou-se em -2,1%. Facilmente, se percebe que a grande quebra do PIB é provocada pelo petróleo e que são os outros setores que ainda seguram a queda, o que não deixa de ser uma ironia.

Figura n. º2- Decréscimo do PIB geral e por setores (%). Fonte: Ministério das Finanças de Angola

As projeções fiscais do OGE 2020 Revisto apontam para um défice fiscal equivalente a 4,0% do PIB, um agravamento de 5,2 pontos percentuais (pp) face ao valor previsto no OGE 2020 Inicial. O saldo primário deverá estar em torno dos 2,2% do PIB, um valor inferior ao inicialmente projetado em 4,9 pp[2]. O atual valor do Orçamento reflete uma redução de 15,7% relativamente ao OGE 2020 Inicial (Kz 15 970,6 mil milhões)[3].

Naturalmente, um OGE mais pequeno, reflete uma economia mais pequena.

Sobre estes pressupostos vamo-nos dedicar à análise do impacto e significado do preço do petróleo a 33 dólares por barril. Como se sabe este valor é meramente indicativo, pois muitos dos contratos petrolíferos já estão com preços anteriormente estabelecidos e não dependem de oscilações. No entanto, analisando os números mais recentes sobre o preço do petróleo verifica-se que o Brent Crude desde 7 de Julho passado oscilou entre USD 42,84 nesse dia, USD 41, 38 a 10 de Julho, e USD 42,18 a 14 de Julho[4]. Num prazo maior, apenas a 15 de Junho esteve abaixo dos USD 40,00.

Sendo a previsão da evolução do preço do petróleo um exercício sempre muito difícil, a verdade é que parece existir uma tendência para ter o preço acima dos USD 40,00, ao mesmo tempo que no curto prazo não se vê razão para não começar a existir uma aumento da procura do petróleo ligado à recuperação das economias mundiais. A isto liga-se a instabilidade cada vez mais intensa no Golfo Pérsico e os problemas na Venezuela.

Figura n.º 3-Gap entre o preço do petróleo no OGE-R e o índice efetivo recente

Todos estes fatores poderão contribuir para alguma pressão no sentido da subida do preço do petróleo. No entanto, essa subida não deverá ser tão acentuada que volte a inundar Angola de petrodólares.

Neste sentido, há aqui um momento ótimo para a economia se libertar da dependência do petróleo com alguma margem. Se o OGE revisto prevê um preço de USD 33 por barril e este vai estando acima dos USD 40, podendo subir, quer dizer que existe alguma margem de manobra para o governo. Nessa medida este orçamento cria a oportunidade de Angola sair da dependência excessiva do petróleo.

Um segundo aspeto que merece destaque é o facto de o Estado passar a gastar mais no sector social do que com os juros da dívida pública[5]. Não se trata tanto de ter aumentado as despesas sociais, mas de se ter diminuído o pagamento da dívida pública, resultado da negociação com a China, que, aparentemente, concedeu uma moratória de capital e juros por três anos. Sempre defendemos que naquilo que tange à dívida o fundamental era encarar a questão chinesa[6], pois é este país que detém quase metade dos créditos externos públicos sobre Angola.

A China terá sido sensível aos argumentos angolanos, e sobretudo, não poderia deixar que o seu modelo de intervenção win-win em África se tornasse num fiasco mundial, por isso, rapidamente se chegou a um acordo.

REFORMA DA ECONOMIA

Quer o preço orçamentado para o petróleo, quer a posição da China permitem que Angola, apesar da intensa recessão económica em que se encontra, ainda tenha margem de manobra para definitivamente reformar a sua economia.

Essa reforma assenta em vários pilares sobejamente conhecidos. O primeiro, e mais importante, é a extinção definitiva da grande corrupção ou “captura do Estado”. É fundamental sublinhar que a luta contra a corrupção não é uma mera política criminal com impacto reduzido na vida nacional. Devido à magnitude do fenómeno, tornou-se o principal problema económico do país pois desviou recursos e impede que a economia funcione de forma livre, sem entraves e na sua plenitude. Há sempre uma sombra de um interesse corrupto à espreita que pode desvirtuar toda a racionalidade e eficiência económica.

Enquanto a grande corrupção, clientelismo e a falta de transparência que lhe estão associadas persistirem, não há revisão orçamental ou documento, por muito bem elaborado que esteja, que permita o desenvolvimento do país.

Não foi o preço do petróleo que lançou o país na recessão, foi a profunda corrupção e captura do Estado por interesses privados que determinaram uma política económica rapace que criou um falso modelo económico incapaz de reagir às oscilações do preço do petróleo. Na verdade, utilizando a terminologia da Ciência Política, um “bandido estacionário” (ou vários) apoderaram-se dos recursos do Estado para seu proveito próprio, e todo o modelo económico foi construído para sustentar essa apropriação privada dos recursos públicos. Consequentemente, em termos estruturais o preço do petróleo acaba por ser irrelevante para se resolver o problema económico angolano.

Figura n.º 4- Causa da presente crise económica

Nessa medida, a erradicação da grande corrupção é a base de qualquer reforma económica, e também a condição necessária para o segundo pilar dessa reforma que é a liberalização da economia e abertura ao investimento privado. Ninguém vai investir num país tido como corrupto.

Este OGE revisto concede tempo ao Presidente da República João Lourenço para efetivar as reformas fundamentais na economia: erradicação da grande corrupção, liberalização dos mercados internos, promoção do investimento privado. A isto tem de se somar uma aposta na produção interna e possivelmente a criação de um programa de transferências monetárias diretas para as populações mais desfavorecidas para minimizar os riscos intensos de pobreza. Em rigor, este programa de transferências diretas não deveria ser unilateral, mas estar ligado a aspetos de promoção individual e social ligados à educação ou saneamento, no fundo, seguindo os programas do mesmo estilo introduzidas pelo Presidente Lula no Brasil. Não se trata apenas de transferir fundos para as populações carentes, mas de as incentivar a frequentar escolas, construir saneamento, ou exercer um ofício.  Este é um tema que abordaremos em separado.

CONCLUSÕES

Em resumo, temos uma revisão sensata do OGE que abre espaço para o Presidente da República acelerar as reformas necessárias na economia e que são: erradicação da grande corrupção; liberalização do acesso aos mercados, promoção efetiva do investimento privado, intensificação da produção interna, transferências diretas sujeitas a condição educativa ou de saneamento para as populações mais desfavorecidas.

Figura n.º 5- Medidas estruturais genéricas de reforma económica


[1]http://www.ucm.minfin.gov.ao/cs/groups/public/documents/document/aw4x/mja1/~edisp/minfin1205333.pdf

[2]http://www.ucm.minfin.gov.ao/cs/groups/public/documents/document/aw4x/mja2/~edisp/minfin1206937.pdf, p. 11.

[3] Idem, p.11 e 12.

[4] https://oilprice.com/oil-price-charts/46

[5] http://expansao.co.ao/artigo/133628/estado-volta-a-gastar-mais-com-o-sector-social-do-que-com-juros-da-divida-p-blica?seccao=5

[6] https://www.cedesa.pt/2020/05/05/porque-a-china-deve-reduzir-a-divida-de-angola/

Análise crítica de um Estudo sobre o impacto socio-económico das medidas do Governo angolano para combater a Covid19

IMPACTO SOCIO-ECONÓMICO

1-Introdução

Um consórcio de investigação científica formado pelo Instituto Superior Politécnico Sol Nascente do Huambo (www.ispsn.org) e pela OVILONGWA CONSULTING-Sondagens e Estudo de Opinião em parceria com a TV ZIMBO apresentou um trabalho intitulado ESTUDO DE AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS SOCIOECONÓMICOS DAS MEDIDAS DO EXECUTIVO ANGOLANO PARA O COMBATE À COVID19.

Este estudo foi levado a cabo por uma equipa liderada pelos investigadores David Boio do CISN – Centro de Investigação Sol Nascente do Huambo, Carlos Pacatolo e Martinho MBangula da OVILONGWA CONSULTING – Sondagens e Estudos de Opinião Pública[1].

Na verdade, trata-se de uma sondagem seguida de uma curta análise. A sondagem foi realizada a “07, 08 e 09 de Abril de 2020. Foram inquiridos 2291 indivíduos com 18 ou mais anos de idade e residentes em Angola e validados 2271 inquéritos. Para selecção dos inquiridos usou-se a “amostra por conveniência” ou “bola de neve”. Por isso, a amostra não é representativa do conjunto da sociedade angolana.[2]” (bold nosso).

Do universo inquirido destaca-se que 63,5 % frequenta ou frequentou o ensino superior[3] e 60% têm entre 18 e 35 anos de idade.

2-Resultados apresentados

É importante assinalar os principais resultados obtidos pela sondagem:

  • 61,3% dos inquiridos declararam que acompanham com muita atenção as informações sobre a doença e apenas cerca 10% declarou acompanhar as informações sobre a doença com pouca atenção;
  • 34% dos inquiridos afirmaram ter a percepção de que os seus concidadãos estão a encarar os riscos da doença de forma pouco séria;
  • A televisão é o meio de comunicação preferido pelos respondentes e cerca de 70% confiam mais nas notícias veiculadas pela televisão sobre a covid19, seguindo-se a rádio e os familiares, ambos com 55%.
  • As redes sociais constituem a fonte de informação sobre a covid19 que os inqueridos menos confiam. 34,6% dos inqueridos afirmaram não ter nenhuma confiança;
  • 71% confia ou confia muito no Presidente da República para gerir a crise;
  • 74,8% na ministra da Saúde;
  • 52,61% no ministro do Interior;
  •  53% dos inquiridos não possuem condições de subsistência para continuar em isolamento social;
  • Na eventualidade de o período de Estado de Emergência se prolongar por mais um mês, mais de 63,1% dos inquiridos de Luanda afirmou que terá de reduzir o nível de consumo para poder continuar a subsistir;
  • As recomendações para evitar lugares de grande aglomeração parecem ter sido acatadas pela maioria dos inquiridos.
  • 40,8% dos respondentes ao inquérito afirmaram que, habitualmente, realizam as suas compras no mercado informal;
  • Maioria a favor do Estado de Emergência.

3-A análise realizada pelo Estudo

Na apreciação efectuada pelos autores do estudo, ressaltam alguns aspectos. Um facto importante sublinhado é a importância do mercado informal: é fundamental assegurar a sobrevivência das famílias que têm no mercado informal a principal fonte de rendimentos, bem como a sobrevivência das famílias que têm no mercado informal a sua principal fonte de abastecimento alimentar. E assim sendo, “a eficácia das medidas de isolamento social nos mercados informais deve obrigar a mais reflexão e cautela dos decisores públicos”, destacam os autores[4].

Igualmente, com relevo estão as conclusões e recomendações realizadas. Os autores do Estudo consideram que o Governo deve prestar especial atenção aos desempregados, ao sector informal e famílias desfavorecidas, necessitando estas áreas de medidas adicionais de apoio durante o Estado de Emergência, bem como atentar melhor às medidas de redução do tempo de funcionamento dos mercados informais e venda ambulante. Também sugerem uma melhoria da comunicação para os perigos da Covid19.

4-Apreciação crítica do Estudo e visões alternativas

Obviamente que estudos deste tipo são positivos e devem ser acarinhados e promovidos. Contudo, este Estudo em concreto, como os próprios autores reconhecem, não representa, nem pode representar a realidade angolana.

E nessa medida, o Estudo acaba por ser enganador, e pode levar à tomada de medidas erradas e a conclusões desadequadas da realidade.

O Estudo tem como larga maioria dos inquiridos pessoas que frequentam ou já terminaram o Ensino Superior. É óbvio que se trata de uma pequena elite privilegiada em Angola, não representando o grosso da população. É demasiado fantasioso retirar daqui conclusões a não ser aquelas referentes ao que pensam os licenciados angolanos. Não se pode extrapolar para a população qualquer análise ou conclusão.

O quadro que resulta do Estudo é de uma população que apoia o Estado de Emergência, tem confiança no Presidente da República, na ministra da Saúde e no ministro do Interior, utiliza mercados informais, informa-se pela televisão, não confia nas redes sociais e, simultaneamente acha que os outros não levam a doença muito a sério. Também reconhecem que não têm capacidade para aguentar muito tempo em termos económicos o Estado de Emergência.

Este quadro, mesmo apenas considerando o grupo sondado, é ambivalente e permite algumas pistas, enquanto suscita dúvidas e contradições.

As pistas dadas são duas: a doença não é levada muito a sério; um Estado de Emergência efectivo criaria problemas económicos para as famílias, sendo que os mercados informais não podem ser combatidos.

Temos aqui dois temas de fundo para análise.

A Covid 19 em Angola

O primeiro tema é o facto de a doença não ser levada a sério, segundo a sondagem. Apesar da comunicação intensa que está a ser feita, o certo é que as consequências da Covid 19 em Angola, de momento, a não ser para os atingidos, são despiciendas.

Haverá 19 infectados detectados, que foram “importados” e 2 mortos, isto num país de 30 milhões de habitantes, situado numa zona epidémica de malária e de outras doenças.

Quer isto dizer que não há qualquer epidemia registada da Covid 19 em Angola.

Pode vir a haver, pode existir uma deficiência estatística e de controlo, ou pode acontecer que o vírus, como alguns alegam, tenha dificuldade em se disseminar em zonas quentes e húmidas do planeta[5].

Por isso, não descurando a atenção à boa gestão da saúde pública há que não cair em exageros, que acabem por perturbar mais do que resolver.

Estado de Emergência, Economia e Mercados Informais. Necessidade de balanço adequado

A fragilidade da economia angolana, especialmente, das famílias e empresas que suportam uma crise desde 2014 é extremamente sensível, pelo que ao contrário de economias robustas como a dos Estados Unidos ou da Alemanha que podem suportar (embora por pouco tempo) um “encerramento do país”, a economia angola não pode “encerrar”, sem entrar em tremendas dificuldades, pelo que tem de existir um delicado balanço entre um aspecto (Estado de Emergência) e outro (sobrevivência das famílias), e deve ser explorada a possibilidade do perdão da dívida internacional.

Dentro da mesma lógica subscrevemos a preocupação contida no texto sobre os mercados informais no sentido de aligeirar as restrições sobre os mercados informais.

Os enganos do Estudo

Se o Estudo nos permite desenvolver as pistas acima referidas, a verdade é que pode induzir em vários erros de avaliação.

Um primeiro erro de avaliação é o aparente consenso e efeitos positivos do Estado de Emergência. Ao reportar-se apenas a uma população instruída com possível influência portuguesa ou europeia, o Estudo apresenta um cenário de aquiescência ao Estado de Emergência que está longe de se verificar. A realidade em Angola é que o Estado de Emergência tem sido cumprido de forma deficiente e não pode ser imposto na sua efectividade. Se o Estado persistir em o impor enfrentará certamente variada desobediência civil e problemas de agitação social grande. E no fim de contas a população descobrirá que o Estado não tem força para impor as suas regras, podendo criar mais problemas do que resolver. Portanto, é necessário perceber que o Estado de Emergência pode constituir uma demonstração de incapacidade do poder e levar as pessoas a deixar de ter respeito pelas autoridades.

Um segundo erro de avaliação é sobre a popularidade e confiança nas autoridades. Não tendo razões para duvidar que 71,5% da população tenha confiança no Presidente da República para gerir a crise trazida pela Covid 19, não se pode extrapolar o mesmo número para a gestão da economia, onde actualmente se centram as maiores dificuldades, e sobretudo, não é crível aceitar que 52% confia no ministro do Interior relativamente às medidas da Covid 19. É bem sabido que pequenos episódios relativos a este ministro, como o da filha no aeroporto, os dos rebuçados e chocolates, bem ou mal-contados, tornaram o ministro bastante impopular e uma espécie de “saco de pancada” da opinião pública, portanto, não é crível que 52% confiem nele.

Um terceiro erro de avaliação possível surge relativamente à confiança demonstrada nas redes sociais. Cerca de 34% afirma não confiar. Podem afirmar isso, mas a verdade é que quem tem acesso às redes, está lá, permanece lá e vai interiorizando o que lá se escreve. Começa a estar demonstrado o verdadeiro impacto das redes sociais, e não é por se afirmar que não se confia, que não se frequenta e em última análise não se termina por acreditar ou ser influenciado[6].

*

Em resumo, este Estudo é muito interessante, mas pode induzir em vários erros de avaliação, pelo que deve ser tomado como um elemento de trabalho, mas nunca um retrato do pensamento e sentir da população angolana.


[1] BOIO, D., PACATOLO, C., MBANGULA, K, ESTUDO DE AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS SOCIO-ECONÓMICOS DAS MEDIDAS DO EXECUTIVO ANGOLANO PARA O COMBATE À COVID19: Relatório Final, (Luanda: 2020).

[2] BOIO et al.  cit, p. 4.

[3] Idem, p.6.

[4] Ibidem, p. 16.

[5] WANG, JINGYUAN AND TANG, KE AND FENG, KAI AND LV, WEIFENG, HIGH TEMPERATURE AND HIGH HUMIDITY REDUCE THE TRANSMISSION OF COVID-19 (March 9, 2020). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3551767 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3551767

[6] CHRISTAKIS, NICHOLAS, The Hidden Influence of Social Networks, https://www.ted.com/talks/nicholas_christakis_the_hidden_influence_of_social_networks/transcript

A oportunidade das Privatizações em Angola. Análise 2020

Introdução

O programa de privatizações correntemente em curso em Angola tem um alcance nunca antes delineado no país e merece atenção redobrada da comunidade de negócios internacional.

Legislação

A fundamentação normativa do programa de privatizações angolano encontra-se na Lei de Bases das Privatizações (Lei n.º 10/19, de 14 de Maio) e no ProPriv (Decreto Presidencial n.º 250/19 de 5 de Agosto). Também tem relevo a Lei do Investimento Privado ((Lei n.º 10/18, de 26 de Junho).

Tabela 1-Normas legais básicas das Privatizações

Lei de Bases das Privatizações Lei n.º 10/19, 14 de Maio
ProPriv Decreto Presidencial n.º 250/19, 5 de Agosto
Lei do Investimento Privado Lei n.º 10/18, 26 de Junho

Termos de referência

Nos termos do ProPriv serão privatizadas 195 entidades públicas durante 4 anos de programa (2019-2022). Essas entidades foram agrupadas em quatro sectores: Empresas de Referência Nacional, Empresas Participadas e activos da Sonangol, Unidades industriais da Zona Económica Especial (ZEE) e Outras Empresas e Activos a Privatizar. Os sectores da actividade a que se referem as privatizações são diversos: recursos minerais e petróleos, telecomunicações e tecnologias da informação, finanças, transportes, economia e planeamento, hotelaria e turismo, indústrias, agricultura, pescas.

Na lista de empresas a privatizar temos as mais importantes do país como a Sonangol (petróleos), a Endiama (diamantes), Unitel (telecomunicações), TAAG (aviação), Banco Económico (ex-Besa, banco), ENSA (companhia de seguros), CUCA (cervejas), e também outro género de entidades mais modestas como o Centro Infantil 1 de Junho, a Fazenda Pungo-Andongo ou a INDUPLAS (indústria de sacos plásticos). É, portanto, um programa vasto e abrangente.

Tabela 2-Elementos fundamentais das Privatizações

Concretização

Até ao momento, o programa de privatizações concentrou-se em pequenas indústrias e entidades. Em 2019, Angola obteve 16 milhões de dólares com a privatização de cinco fábricas, que tinham custado aproximadamente 30 milhões de dólares. Para 2020, foi anunciada a 2.ª fase de privatizações que engloba 13 unidades fabris localizadas na Zona Económica Luanda/Bengo. As fábricas operam na área das embalagens metálicas, betão, carpintaria, sacos plásticos, tintas e vernizes, torres metálicas, tubos em PVC, telhas metálicas, acessórios em PVC, vedações, absorventes e sacos para cimento.

Também, avançada vai a privatização de vários empreendimentos agro-pecuários, bem como alguns activos pertencentes à Sonangol.

Vantagens e oportunidades

Este vasto programa de privatizações afigura-se extremamente atractivo para o investidor estrangeiro devido a vários motivos, nomeadamente:

  • Garantia de Qualidade IFC/Banco Mundial. O programa de privatização está a ser feito com o enquadramento da IFC-International Finance Corporation, entidade pertencente ao Banco Mundial que presta serviços de investimento, consultoria e administração de activos para incentivar o desempenho do sector privado em países menos desenvolvidos. A IFC garante a projecção global do projecto e o selo de garantia do Banco Mundial nos procedimentos seguidos, além de ser um parceiro experiente e conhecedor das regras globais. Deste modo, o processo de privatização angolano surge com uma certificação de qualidade apreciável que poderá tranquilizar os investidores estrangeiros.
  • Reforço institucional e da protecção da propriedade em curso. O presente governo está empenhado na solidificação das instituições, na transparência de processos e na protecção adequada dos direitos de propriedade através da promoção do Estado de Direito. Este não é um processo imediato que permita afastar rapidamente os riscos associados à perda de investimentos em Angola, sobretudo para parceiros locais. Contudo, é uma tendência já em movimento e num sentido de progresso. Neste âmbito é importante realçar a aprovação da nova Lei de Investimento Privado (Lei n.º 10/18, de 26 de Junho) que expressamente confere garantias legais a investidores referentes aos seus direitos, propriedade e também garantias jurisdicionais (artigos 14.º, 15.º e 16.º da referida Lei). Além do mais a mesma norma deixa cair a exigência de parceiro local para qualquer investimento estrangeiro, que como se sabe era a fonte dos maiores abusos e fraudes em relação ao investidor não-nacional. E também o investimento deixou de ser precedido de autorização, bastando o mero registo.
  • Reforma económica de sentido liberalizante. O executivo liderado por João Lourenço, com o apoio dos técnicos do Fundo Monetário Internacional, está a desenvolver um programa económico de liberalização da economia assente no aumento da competição entre empresas e na redução das barreiras à entrada nos mercados. Tal torna-se acentuado na ligação ao combate à corrupção que tem como consequência imediata, em termos económicos, a quebra dos monopólios e oligopólios existentes no país e que limitavam a competição, além de imporem preços mais elevados e terem práticas abusivas do ponto de vista fiscal. Consequentemente, além do reforço jurídico, a componente económica parece mais preparada para uma economia de mercado funcional.
  • Empresas apetecíveis. Para privatizar estão empresas com grande atracção mundial como a Sonangol, a Endiama ou a Unitel. São o que se pode chamar as Blue Chips de Angola que oferecerão um potencial de crescimento muito grande ao investidor uma vez submetidas a uma disciplina de gestão rigorosa, investimento racionalizado e optimização das suas valências. Num momento, em que a economia africana por força de demografia e das complementaridades com a Ásia que actuam como determinantes, tem um potencial de crescimento aumentado, torna-se uma boa aposta investir em empresas de porte ligadas aos recursos naturais e às comunicações em Angola.
  • Pequenas e médias empresas com nichos de mercado atraentes. O interessante do programa é que o universo de empresas a privatizar é vasto e diverso. Nesse âmbito surgem várias pequenas e médias empresas que podem ser base para pequenos investidores que queiram explorar nichos de mercado em Angola ou África Austral a partir de uma plataforma tendente a ser business friendly e em desenvolvimento infra-estrutural. Em África, o potencial das pequenas e médias empresas é muito grande. Alguns inquéritos levados a cabo em províncias específicas da África do Sul, de forma encorajadora, concluem que 94% das pequenas empresas pesquisadas são lucrativas, enquanto, 75% dos proprietários de pequenas empresas acreditam que ganham mais dinheiro administrando os seus próprios negócios do que em qualquer outra alternativa. As áreas abrangidas por estas empresas são muito diversas: viagens, turismo e hotelaria; agro-pecuária; cervejeiras; etc.
  • Os problemas das empresas não são estruturais. As empresas a privatizar sofrem, essencialmente, dois tipos de problemas: gestão incompetente e falta de capital. Qualquer novo investidor que aporte uma gestão profissional e dinheiro fresco para a empresa, poderá explorar as suas potencialidades com sucesso. Os mercados ainda estão por desenvolver e longe de serem maduros, consequentemente, há um caminho muito amplo e estimulante para empresas com capital e gestão profissional.
  • Alta taxa de retorno do investimento. Atendendo às necessidades ainda emergentes do mercado angolano e às possibilidades que a integração na SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) vem trazer, as perspectivas de obtenção de altas taxas de lucro são elevadas. Na verdade, conta-se com mão-de-obra com custos reduzidos, desde que se aposte no desenvolvimento da formação local e com uma extensão de mercado muito grande. Estes dois factores auguram crescimento e retorno do capital estimulante.

Tabela 3 – Motivos de atracção das Privatizações em Angola

•          Garantia de Qualidade IFC/Banco Mundial
•          Reforço institucional e da protecção da propriedade em curso
•          Reforma económica de sentido liberalizante
•          Empresas apetecíveis
•          Pequenas e médias empresas com nichos de mercado atraentes
•          Os problemas das empresas não são estruturais
•          Alta taxa de retorno do investimento

Problemas a resolver

Os problemas que se vislumbram são de três tipos: burocrático-administrativos e avaliação da situação real das empresas. Falta também clareza de propósitos em relação às grandes empresas e bancos.

Sobre a questão burocrática-administrativa há que salientar a multitude das entidades coordenadoras. O Presidente da República surge como o líder e coordenador estratégico, mas depois temos o Ministro de Estado da Coordenação Económica como coordenador geral do programa, a Secretaria de Estado das Finanças e Tesouro no âmbito do Ministério das Finanças como coordenador operacional, cada Ministério de Tutela Sectorial terá funções de partilha de informação e dados das empresas que actuam no sector. O Instituto de Gestão dos Activos e Participações do Estado (IGAPE) como gestor e executor do programa, além de outras instituições com papéis específicos. Talvez por isso, todos os cronogramas têm sido ultrapassados. Até meados de Fevereiro de 2020 estava previsto serem privatizados cerca de 50 empresas. O número como se viu anteriormente é muito mais reduzido. Na verdade, o programa de privatizações não atingiu uma fase de dinâmica entusiasmante, o chamado momentum.

Czar das Privatizações”

É fundamental conferir às privatizações uma dinâmica acelerada. Para tal a melhor solução é nomear aquilo que se pode chamar um “Czar das Privatizações”. Alguém da confiança do Presidente da República que debaixo apenas do seu comando dirija as privatizações com poderes legais para se instruir qualquer ministro ou órgão e se sobrepôr decidindo concentrando as competências e poderes para as privatizações.

Problemas técnicos

Os restantes tipos de problemas são de carácter mais técnico. Em relação a muitas empresas não se tem uma noção exacta dos seus valores ou das eventuais perdas escondidas que existam. Por exemplo, em relação à banca o processo tem encontrado várias situações em que são detectadas imparidades desconhecidas que exigem recapitalização ou níveis de incumprimento de alguns indicadores de equilíbrio financeiro, designadamente excessiva concentração de aplicações em imóveis de baixa rentabilidade.

Não está feito um trabalho de auditoria interna às empresas a privatizar. Tal implica, obviamente, que os investidores corram riscos. A resposta que não se pode dar é que se terá de realizar uma auditoria interna exaustiva a cada uma das 195 empresas. Isso será impossível e obrigaria a um atraso infindável das privatizações.

Assim, haverá que prever eventuais mecanismos de compensação estatal caso se encontrem imparidades a partir de certo nível, imputando a responsabilidade abaixo desse nível aos compradores. Simultaneamente, em casos duvidosos, o Estado terá de vender com um desconto acentuado.  E confiar que uma gestão privada adequada permitirá solucionar a maior parte dos casos.

Na verdade, o ponto essencial do programa de privatizações, mais do que obter receitas para o Estado, é criar uma gestão profissional assente em investimento que contribua para a estruturação de mercados florescentes, pelo que se justifica vender com desconto ou suportar eventuais imparidades não detectadas previamente. É um risco que o Estado deve aceitar para obter o tão almejado objectivo de criar uma economia de mercado livre competitiva.

Finalmente, em relação às grandes empresas deve ser definido e divulgado publicamente o programa total de privatização com referência aos montantes percentuais a ser oferecido ao mercado, as datas e demais condicionantes qualificativas. Ainda há muito desconhecimento nos mercados nacionais e internacionais sobre o modo de privatização destas empresas.

RECOMENDAÇÕES AOS INVESTIDORES:
Para grandes investidores, as Blue Chips angolanas que vão ser submetidas à privatização têm vastas potencialidades de crescimento e racionalização de custos e organização, pelo que podem aportar taxas de retorno de investimento bastante elevadas;
Para pequenos e médios empresários existe uma panóplia de empresas que podem servir de plataforma de lançamento de negócios de porte moderado;
Em geral, atendendo ao clima social shumpeteriano positivo que está a ser criado, há uma forte recomendação de participação e compra no processo de privatizações em Angola.

RECOMENDAÇÕES AO ESTADO ANGOLANO:
Para obviar a atrasos e alguma confusão administrativa e de decisão, deve ser instituído um “Czar das Privatizações” dirigido directamente pelo Presidente da República e com poderes legais delegados que lhe permita executar as privatizações;
Devem existir mecanismos de compensação da falta de auditoria interna das companhias;
Devem ser clarificados os mecanismos de repatriamento de capital para investidores;
É necessária a clarificação com datas, percentagens e condições específicas das privatizações a ocorrer nas grandes companhias de referência (Blue Chips).

Indicadores monetários angolanos indiciam animação da economia

Os dados mais recentes libertados pelo Comité de Política Monetária (CPM-BNA) do Banco Nacional de Angola de 27 de Janeiro de 2020 indiciam uma recuperação sustentada a médio prazo da economia angolana.

INTRODUÇÃO

A análise monetária proveniente dos números destacados pelo CPM-BNA concentra-se num horizonte de longo prazo, que permite uma verificação mais fina que os dados macroeconómicos de curto-prazo, designadamente da evolução esperada entre inflação e crescimento económico. A análise monetária agora realizada resulta da utilização de vários instrumentos e ferramentas proporcionados pelo CPM-BNA que permitem conclusões abrangentes acerca do sentido de vários indicadores.

INFLAÇÃO EM DESACELERAÇÃO

No mês de Dezembro de 2019, o Índice de Preços no Consumidor Nacional (IPCN) divulgado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) apresentou uma variação de 1,91%. A inflação anual manteve a trajectória de desaceleração, tendo-se fixado em 16,9%, atingindo o nível mais baixo desde 2015 (12,09%). Relativamente ao Índice de Preços no Consumidor da província de Luanda, este registou uma inflação acumulada no ano de 17,06%; uma redução de 1,15 p.p. face ao ano anterior (18,21%).

Figura 1-Valores da Inflação em percentagem (IPCN) nos anos 2018 e 2019-Dados BNA

A primeira conclusão é que o aumento dos preços começou a estar controlado e a seguir uma trajectória descendente. Aquilo que se designa como processo desinflacionista está em curso, o que é significativo atendendo ao aumento da tarifa de energia eléctrica, a introdução do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) – 14% (único país da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral onde não vigorava este imposto)  e do Imposto Especial de Consumo (IEC), bem como da depreciação cambial ocorrida particularmente no último trimestre de 2019.

AUMENTO DA MASSA MONETÁRIA EM CIRCULAÇÃO

Em Dezembro de 2019 a Base Monetária em moeda nacional situou-se em Kz 1,59 biliões, registando uma variação anual de 22,21%. O agregado monetário M2 em moeda nacional, que congrega a totalidade dos depósitos bancários em moeda nacional e as notas e moedas em poder do público, registou uma variação nos últimos 12 meses de 14,45%, fixando-se em Kz 4,85 biliões.

Adicionalmente, se verificarmos o agregado M3 (M2+Outros instrumentos equiparáveis a depósitos), e que é a medida utilizada, entre outros, pelo Banco Central Europeu, notaremos que entre Abril de 2019 e Dezembro do mesmo ano houve um aumento deste agregado de Kz 7, 93 biliões para Kz 10,27 biliões. Historicamente, nos anos de 2016, M3 era igual a Kz 6,522 biliões, 2017, Kz 6,521 biliões, e 2018, Kz 7,8 biliões. É no período que medeia entre Abril de 2019 e Dezembro do mesmo ano que o agregado M3 cresce exponencialmente.

Figura 2-Evolução do agregado monetário M3-Dados BNA


REFORÇO DAS RESERVAS

No que concerne às reservas internacionais, registou-se uma acumulação tanto das Reservas Internacionais Brutas (RIB) como das Reservas Internacionais Líquidas (RIL). As RIB situaram-se em USD 17,34 mil milhões em Dezembro de 2019, contra USD 16,17 mil milhões no ano anterior (+7,22%), representando um grau de cobertura de importações de bens e serviços de 8,45 meses.

As Reservas Internacionais Líquidas tiveram o mesmo comportamento, tendo-se situado em USD 11,84 mil milhões, o que representou um aumento de 11,19% face ao ano anterior, cenário de aumento anual de reservas que não ocorria desde 2013.

INFERÊNCIAS & CONCLUSÕES

Estes números têm de ser confrontados com as séries históricas para permitir comparações adequadas e inferências aceitáveis. E o que se verifica, é que a política anterior do banco central foi de redução/ contenção da massa monetária em circulação para controlar a inflação. Apesar dessa política monetária restritiva, a inflação foi sempre subindo.

Actualmente, algo de diferente se está a passar. A massa monetária cresceu, sobretudo M3, aumentou significativamente no segundo semestre de 2019, o que indiciaria uma renovada pressão inflacionista. Contudo, o CPM entendeu não ser necessário subir a taxa de juro para obviar a qualquer efeito-gatilho nos preços. Possivelmente, os agentes económicos já anteciparam os efeitos das subidas de impostos e tarifas, e a oferta de bens e serviços compensou em boa parte a procura.

É na possibilidade da oferta estar a fazer face à procura, que surgem indicadores de optimismo para a economia angolana. Se uma subida acentuada de M3 não faz disparar a inflação, existe razão para optimismo moderado. Há mais dinheiro e mais actividade na economia.

Como se vê na Figura n.º 3 abaixo, uma subida de M3 (linha laranja) não está a gerar uma subida da inflação (linha azul) como se esperaria. Os restantes agregados têm o mesmo comportamento que M3. Pelo contrário, a inflação desce enquanto a moeda em circulação aumenta.

Figura 3-Comparação da evolução da Inflação e do agregado M3

Nos termos da igualdade de Fisher MV=PT, quando um acréscimo de M (massa monetária) já não tem o impacto histórico passado em P(preços) e assumindo que V (velocidade de circulação) é constante, então, é provável que a igualdade esteja a ser concretizada através de um acréscimo de T (volume de transacções de bens e serviços).

Tudo isto indica que a economia real começa a dar sinais de retoma, que permite que mais dinheiro circule sem fazer disparar a inflação.

Isto poderá ser um primeiro indício da recuperação da actividade económica no país.

Quais as razões para a economia estar estagnada e a pobreza continuar?

Poderíamos começar a explicação utilizando um jargão académico, afirmando que estamos perante um ciclo de recessão e estagnação da economia que já vem desde 2014, e que estes ciclos têm explicação difícil e resolução ainda mais complicada, podendo-se prolongar duradouramente no tempo. Também, é possível afirmar algo de básico na economia, que é que as políticas económicas têm uma dilação acentuada, querendo isto dizer que demoram tempo a surtir efeito, pelo que medidas que João Lourenço tenha tomado recentemente, só daqui a um ano ou dois terão resultados práticos.

No entanto, a explicação para os problemas económicos pode ser simplificada e assentará em dois aspectos: um estrutural e outro de política económica actual.

Do ponto de vista estrutural, é sabido que a economia angolana é extremamente dependente do petróleo e que o preço deste está em queda desde 2014. Se olharmos para os números, em 20 de Junho de 2014, o preço do barril/brent situava-se nos U$ 114,81. A partir de Agosto desse ano, o preço inicia a sua descida abrupta, e nunca mais se aproximou dos U$ 100,00. O mais próximo que esteve foi em 3 de Outubro de 2018, nos U$ 86,26, tendo, todavia, descido rapidamente. Actualmente, o preço situa-se próximo dos U$ 60,00, tal significando que está em cerca de metade do que acontecia em 2014.

É assim fácil perceber que um país dependente em excesso do petróleo (ainda segundo os últimos dados do Banco Mundial, 90% das exportações e 33% da produção nacional total derivavam do petróleo) está armadilhado por esta dependência. Dir-se-á que não devia ser assim, que já deveriam estar em cima da mesa alternativas.

A realidade é que este modelo foi o escolhido após 2002. Um crescimento rápido assente no petróleo. O desastre é que os frutos desse crescimento foram apropriados por muito poucas pessoas, e não houve um real efeito na economia, nem a criação de uma economia nacional; apenas foram criadas fortunas nacionais que se apressaram a investir a maior parte dos seus proventos no estrangeiro. Ora, não é em dois anos que se resolve esse problema.

A transformação estrutural de uma economia leva tempo e é dolorosa. Existe sempre uma primeira fase em que a situação piora, as pessoas sofrem mais, os sacrifícios são maiores. Surgem na memória dois exemplos. No final dos anos 1970, o Reino Unido era considerado um país em decadência, cujo tesouro só não faliu devido a uma intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) em 1976. A Grã-Bretanha inicia, nos anos 1980, um grande esforço de recuperação liderado por Margareth Thatcher. Contudo, a situação antes de melhorar, piorou, o desemprego alcançou números exorbitantes, na casa do milhão, e a economia continuou estagnada. Tal levou 364 dos mais famosos economistas em Inglaterra a escreverem uma carta a Thatcher afirmando que a política económica dela estava totalmente errada…Curiosamente, quando essa carta vem a público, é quando a economia começa a melhorar e a relançar o Reino Unido para um novo patamar de prosperidade. Os economistas enganaram-se, mas a recuperação não se fez sem muito desemprego e falência, sem muito sacrifício. Em termos mais singelos, também o que se passou em Portugal com a última crise de 2011 e a política de Passos Coelho, não foi muito diferente, embora mais concentrado. Portugal também passou por uns tempos amargos, para depois recuperar, embora não se saiba por quanto tempo. Isto quer dizer que qualquer adaptação estrutural da economia é dolorosa e leva tempo.

A questão que se segue é se João Lourenço está a realizar ou não uma reforma estrutural da economia.  Se o Presidente da República não é responsável pelo estado comatoso em que encontrou a economia e as finanças públicas de Angola, já é imperativo que tome as medidas adequadas para sair desse estado e informe a população do seu rumo e da sua política. É aqui que tem havido confusão. Ainda não se viu claramente o plano e o rumo de Lourenço em termos económicos, tem havido um afinamento de equipas, algumas medidas, mas ainda pouca clareza.

Têm de ser enunciadas e explicitadas, por uma equipa coesa e com sentido de direcção, as políticas estruturais que vão trazer progresso e prosperidade a Angola.