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Angola: nova constituição, nova república?

DOCUMENTO DE REFLEXÃO

Situação atual e anocracia

Numa situação habitual, a agitação e tensão que se sentiu nos meses que precederam as eleições gerais de agosto de 2022 em Angola, teria dado lugar à normalidade e tranquilo funcionamento das instituições até ao seguinte ato eleitoral a ocorrer em 2027. No entanto, as fortes clivagens que se sentiram e aquela espécie de contenda quase global que existiu até agosto não parece diminuir, criando uma situação de constante agressão, sem um fim à vista no presente sistema. Sintoma disso é a recente entrevista dada pelo líder da oposição a um jornal português, em que declara “Nem eu, nem o partido reconhecemos a vitória do MPLA, porque sabemos que a UNITA teve mais votos. Escutámos as pessoas em todo o país. A sociedade queria que tomássemos conta das instituições, mas não quisemos o caos.”[1]

Consequentemente, de um lado, o principal partido da oposição assumiu uma política que chamaremos de “dupla via”. Tal política contesta o governo dentro das instituições, embora não lhes reconhecendo legitimidade, desafiando também as próprias instituições. A “via dupla” aceita que a oposição se faz dentro das instituições e fora delas; de certa maneira, as instituições são vistas como mais um instrumento de um projeto mais amplo de confronto com o governo. Ora é evidente que esta postura leva a um maniqueísmo difícil de gerir e coloca em causa qualquer abertura e respeitabilidade que se pretenda com o investimento. A falta de respeito pelas instituições torna tudo demasiado dependente da vontade dos decisores políticos e da conjuntura.

Do outro lado, o partido do governo sente-se embaraçado em levar avante as suas anunciadas reformas, é como se o partido não fosse um, mas dois partidos. Uma massa partidária está insatisfeita com as mudanças propostas, queria que João Lourenço fosse apenas um gestor mais hábil do que José Eduardo dos Santos, mas não que introduzisse reformas de fundo, outro sector pretende que sejam tomadas efetivas reformas e sente-se incomodado com a eventual lentidão dessas reformas. Têm a noção que sem um profundo processo reformista, Angola se pode transformar num Estado sem futuro.

Há assim uma forte instabilidade, por razões diversas, nos partidos que formam a sustentação do sistema político. A Assembleia Nacional não parece ser uma câmara deliberativa do sentir da nação, mas um mero palco duma disputa mais alargada, tornando-se num meio e não num fim, retirando-lhe o peso soberano que lhe seria inerente. Com um registo mais atemorizador surge a justiça. Aquele que é o pilar básico de um Estado Democrático de Direito, oferece mais dúvidas do que certezas. No combate à corrupção, com honrosas exceções, o sistema judicial tem-se pautado pela ineficiência e lentidão, não se percebendo já para onde caminha esse programa estruturante do Estado.  Como já escrevemos: “É verdade que o desenho do Tribunal Supremo contido na Constituição de 2010 ajuda à sua disfuncionalidade. Na verdade, o legislador constitucional angolano quis fazer um tribunal seguindo o modelo da Supreme Court norte-americana enxertado num sistema judicial de tipo romano-germânico, isto é, português. Ora um tribunal de topo no sistema judicial português, alemão ou francês, nada tem a ver com um tribunal de topo num sistema anglo-americano. São conceitos e estruturas judiciais diferentes. O que se pede a um tribunal supremo norte-americano não é o que se pede a um supremo tribunal português. No primeiro caso, apenas grandes e inovadoras questões de direito lá chegam. É já uma espécie de tribunal de reflexão, enquanto, no segundo caso-romano-germânico- o supremo funciona como última instância de recurso para quase todos os casos judiciais. Todavia em Angola, pensou-se um tribunal à americana para funcionar à portuguesa. Portanto, uma estrutura leve e que apenas se dedicava a um pequeno número de processos teve de se defrontar com a tarefa de ser um tribunal habitual de recurso para uma miríade de casos. Isso só podia dar mau resultado, como deu. Além da disfuncionalidade do desenho constitucional, tem-se entendido que os juízes do Tribunal Supremo não têm a preparação adequada para lidar com as complexidades do crime económico-financeiro, não tendo ao longo da sua carreira deparado com essas questões ao nível sofisticado a que têm estado a aparecer, o que tem levado a algumas decisões muito criticadas e a grande mora processual. Iniciando o país simultaneamente uma fase de grande apelo ao investimento estrangeiro, bem como apostando na luta contra a corrupção, é bem de ver que um tribunal mal desenhado e pensado para outros tempos tem de ser reformado e remodelado.”[2]

No seu geral, a justiça não tem oferecido garantias de celeridade e imparcialidade técnica, e os seus atores têm tido uma tendência surpreendente para se envolverem em escândalos consecutivos.

Por parte da população começa a haver uma ideia tímida, mas discutida em vários fora, que as atuais instituições e partidos políticos foram concebidos para um ambiente de guerra e confronto, estando essas características no seu âmago, e, por isso, não estão aptos a lidar com uma nova Angola, em que os objetivos centrais sejam o desenvolvimento e o bem-estar da população. Quer isto dizer que se considera que os “velhos” partidos já não correspondem aos desejos e interesses da população, não oferecendo soluções consistentes e apelativas. A taxa de abstenção das últimas eleições gerais (54%) é espelho dessa situação.

Uma Assembleia Nacional que se transformou em mero instrumento-eco de poder e contrapoder, uma justiça inepta e um sistema partidário anacrónico, definem o presente sistema institucional angolano.

Toda esta situação, um pouco difusa, mas cujos sinais abundam, podem tornar o país numa anocracia. O que é uma anocracia? A anocracia vem sendo definida como um regime instável que combina elementos de autoritarismo e democracia. A anocracia tem um desenvolvimento incompleto de mecanismos de dissensão e consensualização e associa-se a uma permanente agitação ou ingovernabilidade, que dificultam o processo político[3]. A existência duma situação anocrática aumenta a probabilidade [4] de uma guerra civil. Colocando o tema de outra forma, o que procura interrogar é se a situação angolana se apresenta inerentemente instável e pode redundar numa guerra civil?

A resposta é simples, embora tendo duas partes. Não, Angola não vive ainda uma situação de anocracia. Contudo, são exigíveis medidas estruturantes que ultrapassem os presentes bloqueios e insatisfações.

Nova Constituição e Nova República

É necessário criar um Estado ágil, com instituições respeitadas, uma administração pública funcional e uma economia de mercado com atores livres e competitivos, tudo contribuindo para o progresso e bem-estar da população. As estruturas herdadas do colonialismo e das guerras têm de ser transformadas e trocadas por estruturas da modernidade e desenvolvimento, tendo em conta a cultura e história de Angola.

É fundamental um novo ciclo histórico com uma nova estrutura.

A primeira medida é estabelecer uma nova constituição. A atual constituição de 2010 não é consensual e, até certo ponto, é um equívoco jurídico desenhado para agradar aos desejos pessoais de José Eduardo dos Santos. Fundamental será propor uma nova constituição mais angolana e mais protetora das instituições, que marque um recomeço. Entende-se que essa nova Constituição deveria abordar aspetos tão diferentes como a possibilidade de eleição separada (direta ou indireta) do Presidente da República, conferindo-lhe uma legitimidade própria e garantindo que o Presidente se apresente como um líder nacional e não um líder partidário, a criação de uma segunda câmara legislativa composta pelas autoridades tradicionais (permitindo a introdução de vozes diferentes e plurais no processo legislativo, recuperando a cultura africana), a introdução de mecanismos de democracia militante como tem a lei fundamental alemã (como  Karl Loewenstein[5] escreveu a democracia deveria ser capaz de resistir àqueles agentes políticos que utilizam instrumentos democráticos para assegurar o triunfo de projetos totalitários ou autoritários de poder, isto significando, que a constituição tem de conter mecanismos de defesa e repressão das tentativas de derrube do regime constitucional, o que agora não existe com força suficiente na constituição angolana). Obviamente, que a reformulação do poder judicial, a mudança da simbologia da república, seriam outros aspetos desta nova constituição.

Não basta uma mudança constitucional sem se tratar da organização e administração do Estado.  Também aqui o projeto de transformação tem de ser abrangente e procurar-se a libertação dos modelos coloniais e marxistas, introduzindo uma administração pública adequada aos novos tempos. Exemplos podem vir da Ásia, como a China e Singapura[6], ou dos países vizinhos como o Botswana ou a África do Sul. O paradigma tem de ser uma administração baseada no mérito, assente na eficácia e no serviço à população. Naturalmente, que tal implica o fim da influência clientelista na administração, a desconcentração com autonomia e capacidade de tomada de decisão, uma forma completamente nova de ver o procedimento administrativo, não como um conjunto de regras, mas um conjunto de boas práticas e objetivos vocacionados para o bem comum e eficácia.

É evidente que apenas se deixam aqui alguns tópicos sobre as mudanças estruturais aconselháveis, segundo a nossa perspetiva, para transformar Angola num Estado moderno e próspero.


[1] Adalberto da Costa Júnior, entrevista ao Nascer do Sol, 20-01-23

[2] CEDESA (2022). A necessária reforma do Tribunal Supremo em Angola, https://www.cedesa.pt/2022/11/24/a-necessaria-reforma-do-tribunal-supremo-em-angola/

[3]  Jennifer Gandhi e James Vreeland (2008). “Political Institutions and Civil War: Unpacking Anocracy”. Journal of Conflict Solutions. 52 (3): 401–425; Patrick Regan and Sam Bell, Sam (2010). “Changing Lanes or Stuck in the Middle: Why Are Anocracies More Prone to Civil Wars?”. Political Science Quarterly. 63 (4): 747–759.

[4] Patrick Regan and Sam Bell, Sam (2010). “Changing Lanes or Stuck in the Middle: Why Are Anocracies More Prone to Civil Wars?”. Political Science Quarterly. 63 (4): 747–759.

[5] Karl Loewenstein (1937) Militant Democracy and Fundamental Rights, in: American Political Science Review 31.

[6] M. Shamsul Haque (2009), Public Administration and Public Governance in Singapore in Pan Suk Kim, ed., Public Administration and Public Governance in ASEAN Member Countries and Korea. Seoul: Daeyoung Moonhwasa Publishing Company, 2009. pp.246-271.

Teorias da fraude eleitoral, legislação e escrutínio público em Angola

As imagéticas da fraude eleitoral em Angola

O ponto de partida para este estudo é a afirmação de uma conceituada investigadora durante o II Congresso Internacional de Angolanística segundo a qual as “próximas eleições em Angola deverão ser as menos transparentes e credíveis.”[1]

Recorde-se que Angola teve as suas primeiras eleições em 1992, após o que existiu um recrudescimento da guerra civil que terminou em 2002, e apenas voltou a ter eleições em 2008, a que se seguiram atos eleitorais em 2012 e 2017. Houve, portanto, até ao momento, quatro processos eleitorais em Angola.

As próximas eleições estão previstas para 24 de Agosto de 2022.

Em todas as eleições cuja contagem chegou ao final, o MPLA, partido no governo desde a independência em 1975 saiu vencedor com os seguintes resultados: 1992- 53.74%; 2008- 81,76%; 2012-71.84%; 2017-61.05%.

Quadro n. º1- Vencedor das eleições em Angola (1992-2017)

1992MPLA53,74%
2008MPLA81,76%
2012MPLA71,84%
2017MPLA61,05%

O interessante é que em todas as eleições, mesmo as de 1992[2], que tiveram ampla cobertura internacional e contaram com mais de 400 observadores estrangeiros, o principal partido da oposição alegou fraude.

Em 1992, dessas alegações resultou a renovação da guerra civil e um massacre e violência indisfarçáveis. Na verdade, a resolução da contenda só teve lugar com a morte do líder da oposição e o fim da guerra em 2002. Nas outras eleições acabou por haver aceitação final dos resultados e integração no funcionamento constitucional-legal.

Em 2008, estiveram presentes 90 observadores da União Europeia, e a vitória do MPLA foi esmagadora. Estava-se, aliás, na época do boom petrolífero. Mesmo assim a oposição clamou fraude, e exigiu a repetição das eleições devido aos atrasos que marcaram o processo, descrito pelo líder da oposição como “um desastre”, com inúmeras demoras por todo o país. Em todo o caso, apesar destes protestos, as eleições acabaram por ser aceites e os deputados tomaram os seus lugares. Desta vez não houve guerra e iniciou-se uma certa democratização da vida pública.

2012 foi novamente ano de eleições, e novamente, houve denúncia de irregularidades, mas sem a vocalidade do passado. A oposição tomou os seus lugares no parlamento e desempenhou o seu papel.

No ano de 2017, A União Africana enviou observadores para as eleições, com o objetivo de garantir as eleições democráticas, mas a União Europeia decidiu não mandar uma grande equipa de observadores. A oposição contestou os resultados, mas acabou por os aceitar após decisões do Tribunal Constitucional que validaram as eleições.

Há padrões que se repetem. Os dois primeiros são óbvios, a vitória do MPLA e a contestação permanente do processo pela oposição. Também se verifica intervenção de observadores externos, por exemplo 400 em 1992.

Apesar das acusações repetidas de fraude por parte dos candidatos derrotados, o certo, é que com a exceção de 1992, sempre acabaram por aceitar os resultados e tomar os seus lugares na Assembleia Nacional.

Comparações: Transparência e democraticidade em 2022

A questão que vamos responder é se as presentes eleições, marcadas para 24 de agosto de 2022, representam um decréscimo das condições eleitorais do passado, como afirmam alguns investigadores, ou se pelo contrário, mesmo não sendo perfeitas, apresentam uma manifesta evolução em termos de transparência e democraticidade.

Para avaliarmos as condições iremos proceder a uma revisão da legislação em vigor, bem como às características do atual escrutínio público face ao passado, pois acreditamos que este é o mecanismo crítico realista para aferir a transparência das eleições.

Legislação

Sobre a legislação em vigor há alguns aspetos a enfatizar, muitos dos quais têm sido alvo de equívocos ou interpretações pouco literais. As eleições estão agora reguladas pela Lei n.º 30/21 de 30 de dezembro, que alterou a Lei n.º 36/11, de 21 de dezembro — lei orgânica sobre as eleições gerais (LOEG). Na atual legislação temos de destacar os seguintes tópicos que se debruçam sobre o processo eleitoral:

i) Condições básicas: manifestação, direito de antena e financiamento

No período da campanha eleitoral, a liberdade de reunião e de manifestação para fins eleitorais rege-se pelo disposto na lei geral aplicável ao exercício das liberdades de reunião e de manifestação, com as seguintes especificidades (artigo 66.º da LOEG):

a) Os cortejos e desfiles podem realizar-se em qualquer dia e hora, respeitando-se apenas os limites impostos pela liberdade de trabalho, pela manutenção da tranquilidade e ordem públicas, pela liberdade e ordenamento do trânsito, bem como pelo respeito do período de descanso dos cidadãos.

b) A presença de agentes da autoridade pública em reuniões e manifestações organizadas por qualquer candidatura apenas pode ser solicitada pelos órgãos competentes das candidaturas, ficando a entidade organizadora responsável pela manutenção da ordem quando não faça tal pedido.

c)A comunicação à autoridade administrativa competente da área sobre a intenção de se promover uma reunião ou manifestação é feita com antecedência mínima de 24 horas.

O que resulta da lei é uma ampla possibilidade de manifestação, não havendo condicionalismos nem obstáculos assinaláveis.

Note-se aliás, que no período de pré-campanha já têm ocorrido grandes manifestações sem incidentes, quer por parte do partido do governo, quer por parte da oposição.

O líder da oposição tem-se deslocado livremente no território de norte a sul, concretamente, de Cabinda a Menongue e realizado grandes atos de massas, sem qualquer impedimento ou confronto. Este aspeto fundamental para o processo eleitoral tem estado assegurado.

Em relação ao direito de antena dispõe o artigo 73.º da LOEG que determina que as candidaturas às eleições gerais têm direito à utilização do serviço público de radiodifusão e televisão, durante o período oficial da campanha eleitoral, nos termos seguintes: a) Rádio: 10 minutos diários entre as 15 e as 22 horas; b) Televisão: 5 minutos diários entre as 18 e as 22 horas.

A lei garante aquilo que poderemos denominar como mínimos de intervenção política no período de campanha eleitoral.

Também o financiamento global de todos os partidos políticos efetuado pelo Estado está previsto e é imperativo nos termos do artigo 81.º da LOEG, que dispõe que o Estado atribuirá uma verba de apoio à campanha eleitoral das candidaturas às eleições gerais, que é distribuída de forma equitativa, podendo a mesma ser utilizada para apoio aos Delegados de Lista.

A letra da lei oferece suficientes garantias que determinados mínimos de equidade e concorrência entre partidos estão sustentados para as eleições de 2022[3].

ii) Votação e contagem dos votos

Esta é uma área em que tem havido muita discussão e talvez mal-entendidos ou interpretações erróneas. Portanto, é importante sublinhar as determinações essenciais da lei.

Em primeiro lugar, as mesas de voto, ao contrário do que se poderia pensar face a algumas análises publicadas, desempenham um papel fulcral no processo. Desde logo, o Delegado de Lista presente na Mesa de Voto pode solicitar esclarecimentos e apresentar, por escrito, reclamações relativas às operações eleitorais da mesma Mesa e instruí-los com os documentos convenientes, sendo que Mesa não pode recusar-se a receber as reclamações, devendo rubricá-las e apensá-las às atas, junto com a respetiva deliberação, cujo conhecimento será dado ao reclamante. (artigo 115.º da LOEG).

Isto quer dizer, que há uma fiscalização direta por cada um dos partidos em cada uma das Mesas de Voto. Aquilo a que poderíamos chamar uma fiscalização atomista. Cada átomo da eleição está a ser verificado.

Depois, é ainda na Mesa de Voto que se procede à abertura das urnas e contagem dos votos, também ao contrário do que tem sido afirmado.

Na verdade, encerrada a votação, o Presidente da Mesa, na presença dos restantes membros, procede à abertura da urna, seguindo-se a operação de contagem por forma a verificar a correspondência entre o número de Boletins de Voto existentes na urna e o número de eleitores que votaram naquela Mesa de Voto. (artigo 120.º da LOEG).

Em seguida, o Presidente da Mesa de Voto manda proceder à contagem dos Boletins de Voto, respeitando as seguintes regras:

a) O Presidente abre o boletim, exibe-o e faz a leitura em voz alta;

b) O primeiro escrutinador aponta os votos atribuídos a cada partido numa folha de papel branco ou, caso exista, num quadro grande;

c) O segundo escrutinador coloca em separado e por lotes, depois de os exibir, os votos já lidos correspondentes a cada um dos partidos, os votos em branco e os votos nulos;

d) O primeiro e o terceiro escrutinadores procedem à contagem dos votos e o Presidente da Mesa à divulgação do número de votos que coube a cada partido.

Terminada esta operação, bem detalhada na lei, o Presidente da Mesa de Voto procede ao confronto entre o número de votos existentes na urna e a soma do número de votos por cada lote. Os Delegados de Lista têm direito a verificar os lotes sem podendo reclamar em caso de dúvida para o Presidente da Mesa que analisa a reclamação. (artigo 121.º da LOEG).

Consequentemente, temos um ato eleitoral que é fiscalizado e os votos contados localmente em cada Mesa de Voto com a presença dos delegados de cada partido.

É isto que a lei define.

Após esta operação local, é elaborada uma ata da Mesa de Voto pelo Secretário da Mesa e devidamente assinada, com letra legível, pelo Presidente, Secretário, Escrutinadores e pelos Delegados de Lista que tenham presenciado a votação, sendo depois colocada em envelope lacrado que deve ser devidamente remetido, pela via mais rápida, à Comissão Provincial Eleitoral. (artigo 123.º da LOEG). Em sequência, compete à Comissão Nacional Eleitoral a centralização de todos os resultados obtidos e a distribuição dos mandatos (artigo 131.º da LOEG). Em síntese, o apuramento nacional é realizado com base nas atas-síntese e demais documentos e informações recebidas das Assembleias de Voto (artigo 132.º da LOEG).

Verifica-se assim que a contagem dos resultados é efetuada ao nível local, não havendo centralização da abertura de urnas nem das contagens, a centralização é realizada a posteriori, tendo como base os resultados obtidos nas Mesas de Voto.

Olhando para as disposições legais mencionadas vislumbra-se um mecanismo transparente e devidamente fiscalizado ao nível local.

A este mecanismo acresce que norma do artigo 116.º da LOEG que torna obrigatório que as tecnologias a utilizar nas atividades de escrutínio atendam aos requisitos da transparência e da segurança.

A mesma norma impõe a auditoria dos programas-fontes, dos sistemas de transmissão e tratamento de dados e dos procedimentos de controlo e torna imperativo que antes do início de cada eleição, o Plenário da Comissão Nacional Eleitoral realize uma auditoria técnica independente, especializada, por concurso público, para testar e certificar a integridade dos programas- -fontes, sistemas de transmissão e tratamento de dados e dos procedimentos de controlo a utilizar nas atividades de apuramento e escrutínio, a todos os níveis.

iii) A transparência da eleição do Presidente da República

O Boletim de Voto é impresso a cores, em papel liso e não transparente, de forma retangular com as dimensões apropriadas para que nele caibam todas as candidaturas admitidas à votação e cujo espaçamento e apresentação gráfica não induzam os eleitores em erro na identificação e sinalização exatas da candidatura por si escolhida.

Em cada Boletim de Voto são impressos o número de ordem, a designação estatutária do partido político, o nome do candidato a Presidente da República e a respetiva fotografia tipo passe, a sigla e os símbolos do partido político ou coligação de partidos políticos, dispostas verticalmente, umas abaixo das outras, pela ordem do sorteio efetuado pela Comissão Nacional Eleitoral, após a aprovação das candidaturas pelo Tribunal Constitucional (artigo 17.º da LOEG).

Isto significa que apesar do método de eleição presidencial próprio escolhido pela Constituição, o eleitor sabe manifestamente em quem está a votar para Presidente da República. Tem a face e o nome indicado.

 iv) O contencioso eleitoral

A apreciação da regularidade e da validade das eleições compete, em última instância, ao Tribunal Constitucional (artigo 6.º LOEG). Esta norma comete o Tribunal Constitucional (TC) todas as decisões finais sobre eleições, não é a Comissão Nacional Eleitoral (CNE).

Ser o TC a ter a palavra final e não a CNE é uma garantia jurisdicional acrescida. No presente momento, como veremos adiante, isso tem relevo porque o TC tem sido objeto de um grande escrutínio público, sendo-lhe mais difícil, acreditamos, tomar decisões que não tenham fundamento legal.

Escrutínio Público

É natural, que sobretudo para os adeptos duma visão realista do Direito[4], em que nos incluímos, segundo a qual o importante não é o que está escrito na lei, nem sequer os princípios meta-legais em que esta assente, mas a sua aplicação e resultado prático, não se fique satisfeito com a mera enumeração legal, mesmo que esta surja bem construída e promissora, como se nos afigura acontecer com a presente Lei Orgânica das Eleições Gerais.

Torna-se necessário invocar outros fatores reais que permitam realizar uma avaliação mais objetiva do fenómeno eleitoral em Angola como esperado para 2022.

Entendemos que o fator chave é o do escrutínio público que o processo eleitoral está a ter. Escrutínio público entendido como exame minucioso e averiguação diligente de um fenómeno realizado pela sociedade em geral, e não apenas por órgãos específicos que poderão ou não estar alinhados com determinada opção política ou ideológica.

O nosso argumento é que quanto maior for o escrutínio público a que um fenómeno eleitoral esteja sujeito maior será a sua transparência e democracia e menores as probabilidades de fraude, havendo uma relação direta entre escrutínio e transparência.

Ora, o breve excurso que realizámos pelas várias eleições ocorridas em Angola, e retirando a de 1992, que pela sua especificidade e contexto histórico não tem lugar nesta comparação, e considerando que alguns dos nossos colaboradores acompanharam pessoalmente as eleições de 2012 e 2017, permite-nos avançar com algumas tendências em relação a aspetos escrutinadores por parte de integrantes da sociedade civil ou órgãos estruturantes não políticos da comunidade. Esses temas levam-nos a uma comparação qualitativa entre 2008 e 2017.

Em primeiro lugar, destaquemos a Igreja Católica. Possivelmente, fruto de certas acusações de colaboração com o poder colonial e de algum embate com a ideologia marxista pós-independência, a Igreja Católica, na sua generalidade, tinha-se remetido nas anteriores eleições a um papel discreto e pouco interventivo publicamente, não contribuindo para um forte debate acerca do processo eleitoral nas anteriores eleições (2008 a 2017).

Isso não acontece em 2022, seguindo as passadas da sua congénere na vizinha República Democrática do Congo (RDC) em que a Igreja Católica teve um papel determinante na transição eleitoral de 2018/2019 entre Kabila e Tshisekedi, a Igreja Católica angolana tem assumido um manifesto protagonismo na preparação das eleições angolanas. Os seus bispos e padres estão ativos na sua pastoral e nas homilias e têm uma atividade pública intensa, exigindo eleições adequadas[5].

É precisamente este ativismo católico, lembrando que segundo as estatísticas, cerca de 40% da população angolana é católica,[6]que permite concluir que o escrutínio que a Igreja Católica está a fazer das eleições não deixará larga parte da população indiferente e obriga por si só a uma transparência acrescida no processo. Melhor dizendo, o escrutínio católico e das suas múltiplas organizações é, em si mesmo, um fator intrínseco de transparência.

Um segundo fator que notamos diferente em relação às outras eleições angolanas é o papel das redes sociais. Estas abrangerão cerca de ¼ da população votante[7], mas talvez mais daqueles que efetivamente votam. Ora frequentando as redes sociais facilmente se vislumbra a intensidade com que falam das eleições e como discutem a sua realização e necessidade de transparência. Um candidato a deputado pelo partido da oposição e ativista constantemente presente nas redes como Hitler Samussuku tem 52.000 seguidores no Facebook e os seus posts alcançam muitas vezes mais de 1000 likes. Trata-se de um mero exemplo aleatório, mas muitos outros poderiam ser referidos.

Nunca as redes sociais em Angola estiveram tão vivas a ativas como neste período, contestando, discutindo e afirmando posições.

Tal como na situação da Igreja Católica entendemos que este escrutínio digital tem uma dupla função. Por si só é sinónimo de transparência e ao mesmo tempo aumenta a transparência ao colocar no espaço público a discussão sobre as eleições.

Temos aqui dois fatores conducentes intrinsecamente à transparência eleitoral: o ativismo da Igreja Católica e o ativismo digital.

Finalmente, convém referir a questão dos Observadores internacionais. No ano difícil de 1992 estiveram presentes, segundo informações públicas, 400 observadores internacionais[8], em 2017, terão estado mais de 1000 observadores[9],atualmente, segundo as publicações que se debruçaram sobre o assunto estão previstos 2000 observadores nacionais para 2022 e um número ainda não apurado de observadores internacionais. Convém dizer que atendendo ao ativismo acima referido da Igreja e no digital, os observadores nacionais terão um papel muito intenso ao contrário do que poderia acontecer no passado.

Conclusões

A questão que aqui estudámos não é da perfeição platónica das eleições angolanas, mas da evolução da transparência eleitoral desde 2008 com a previsão para 2022.

O que apurámos atendendo a dois índices, a legislação e o escrutínio público, é que, neste momento, existe uma lei suficientemente robusta para realizar eleições livres e justas, e que o escrutínio público, designadamente por parte da Igreja Católica e suas organizações satélite e também pelas redes sociais, nunca foi tão elevado como atualmente.

Nessa medida, mesmo com imperfeições, augura-se que estas eleições serão mais transparentes do que no passado, porque se tal não acontecer a opinião pública sentirá melhor e mais profundamente do que no passado.


[1] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/proximas-eleicoes-em-angola-deverao-ser-as-menos-transparentes-e-crediveis-avisa-investigadora-de-oxford_n1413623

[2] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/unita-diz-que-houve-fraude-nas-eleicoes/

[3] Não discutimos neste trabalho o problema do desequilíbrio do serviço público na época da pré-campanha. Será, possivelmente, objeto de outro estudo apontando soluções e necessidades de uma visão holística da situação englobando todas as fontes de notícias: públicas, privadas, estrangeiras e digitais.

[4] Ver por exemplo, Rui Verde, Juízes: o novo poder, 2015.

[5] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/bispos-angolanos-pedem-eleicoes-transparentes-e-participacao-responsavel-dos-cidadaos_n1381285; https://www.vaticannews.va/pt/africa/news/2022-06/angola-eleicoes-bispos-convidam-a-moderacao-respeito-e-sentid.html ; https://www.dw.com/pt-002/angola-bispo-de-cabinda-nega-crispa%C3%A7%C3%A3o-entre-igreja-cat%C3%B3lica-e-o-executivo/a-61651439

[6] https://observatoriodaafrica.wordpress.com/2016/04/04/maioria-da-populacao-angolana-e-catolica/

[7] https://marcasemaccao.com/utilizadores-de-redes-sociais-cresce-36-em-angola/

[8] http://www.angonoticias.com/Artigos/item/48509/primeiras-eleicoes-em-angola-realizaram-se-ha-23-anos

[9] https://www.voaportugues.com/a/mais-de-mil-observadores-as-eleicoes-em-angola/3926114.html

As novas ameaças e o reforço das Forças Armadas Angolanas

Novas ameaças a Angola

A história de Angola tem sido uma constante de desafios e superações, tendo estado a sua sobrevivência como entidade única ameaçada desde a independência em 1975. Nunca é demais lembrar que a própria independência foi declarada em diferentes horas e vários locais por entidades diversas, com maior ou menor legitimidade. Agostinho Neto proclamou a independência da República Popular de Angola às 23h de 11 de novembro de 1975, em Luanda. Holden Roberto, líder da FNLA, anunciava a Independência da República Popular e Democrática de Angola à meia-noite do dia 11 de novembro, no Ambriz e Jonas Savimbi fazia o mesmo pela UNITA na então Nova Lisboa no mesmo dia, declarando o nascimento da República Social Democrática de Angola.

Imediatamente, seguiu-se uma guerra civil que mais ou menos esporadicamente, abrangendo maiores ou menores áreas, durou até 2002. As tentativas de invasão externa também foram frequentes, a África do Sul ainda antes da independência entrou pela Namíbia e o Zaire de Mobutu fez o mesmo a norte. Depois foi a vez de Cuba, a convite do governo de Luanda também entrar no país para contrapor as outras invasões.[1]As intervenções indiretas das então superpotências, também abundaram, sendo desnecessário recordar as ameaças de desintegração que o país viveu até ao final da guerra civil em 2002.

Depois dessa data as ameaças que se colocaram a Angola diminuíram, embora muitas permanecessem latentes e outras surgissem como as ligadas à captura do Estado e corrupção.[2]

Na atualidade, há um incremento das ameaças externas pós 2002, não assumindo os contornos dramáticos dos anos a seguir à independência, mas colocando exigentes desafios às forças de defesa da soberania, integridade territorial e ordem pública nacional.

Separatismo

A nível interno, vislumbra-se o reacender das tentativas separatistas, quer nas Lundas, quer em Cabinda, que poderão ser rastilho para outras iniciativas. Relativamente a Cabinda surgiram recentemente relatos nas redes sociais, replicados nalguns órgãos de comunicação social de confrontos entre o braço-armado da Frente de Libertação do Estado de Cabinda (FLEC) e as Forças Armadas Angolanas (FAA).[3] Esses ataques, reais ou virtuais, sucedem-se a várias queixas da República Democrática do Congo (RDC) acerca de incursões angolanas no seu território em aparente hot pursuit de membros da FLEC. Em agosto passado, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da RDC, Célestin Mbala Musense, criticava supostas incursões da Marinha angolana em águas territoriais do país em operações contra rebeldes de Cabinda e afirmava que os soldados das FAA estariam a multiplicar as incursões na perseguição aos rebeldes da FLEC. [4]

A par deste eventual recrudescimento militar, que não é certo e sobre o qual não existe informação fidedigna, surge uma corrente de opinião devidamente publicitada que invoca a necessidade de uma solução, embora não se perceba qual seja, ou se apresenta cansada de um confronto.

A verdade é que a Constituição de Angola (CRA) no seu artigo 5.º, n.º 6 é determinante ao prescrever que: “O território angolano é indivisível, inviolável e inalienável, sendo energicamente combatida qualquer acção de desmembramento ou de separação de suas parcelas, não podendo ser alienada parte alguma do território nacional ou dos direitos de soberania que sobre ele o Estado exerce.” Note-se que esta formulação implica que qualquer território permaneça sempre como parte integrante do Estado, mas não proíbe diferentes estatutos e aproximações, como o estabelecimento de autonomias sempre integradas no todo nacional e de autarquias locais, mais ou menos descentralizadas.

Há, portanto, um dever constitucional de combater qualquer tentativa de secessão territorial, admitindo a CRA o uso da força para que tal aconteça (“energicamente combatida”). Neste âmbito as FAA desempenharão um papel crucial em evitar qualquer desmembramento. Além do direito constitucional, também é fácil de perceber que qualquer separação ou “desligamento” de Cabinda face a Angola teria um efeito desagregador do país, que como se sabe, historicamente, é uma construção recente e em progresso.

Isso leva à segunda ameaça do mesmo tipo separatista existente nas Lundas. Em janeiro de 2021, houve um confronto sangrento, cujos contornos foram devidamente descritos no texto de Rafael Marques, “”Miséria & Magia.”[5]Além de aspetos socioeconómicos, o evento tem sido visto como ligado às tentativas independentistas de um autodesignado Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT).

É evidente que, em primeiro lugar é dever do Estado e do governo tratar os agravos das populações locais atendendo às suas reivindicações de cariz desenvolvimentista, económico e social. Trata-se primordialmente duma questão política e de progresso. Contudo, não vale a pena ignorar que no final haverá sempre que garantir a integridade e soberania nacionais e as FAA poderão ter um papel determinante para assegurar a coesão do território.

É por isso que se considera que uma ameaça real à soberania de Angola são as pulsões ou intenções separatistas de parte do seu território, cabendo às FAA como esteio do Estado garantir a integridade e unidade do Estado.

Captura do Estado e corrupção

A segunda ameaça existente a nível interno liga-se com a referida captura do Estado e combate à corrupção. A opção do poder político foi entregar o combate à corrupção aos meios judiciais comuns, portanto, tal não é uma função das FAA, mas das forças policiais, de investigação criminal e magistraturas. As FAA apenas entram naquilo que se refere à “captura do Estado”. Se porventura forças ou entidades que beneficiarem da corrupção tentem afetar o normal funcionamento do Estado de Direito e da Justiça, fragilizando o poder político, pode-se entender que as FAA terão o dever de defender a constitucionalidade e a legalidade, não intervindo nos processos judiciais concretos, mas garantindo as condições de tranquilidade e paz para que os órgãos judiciários normais façam o seu trabalho. Esta é uma linha difícil de traçar para a atuação dos militares, pelo que a postura aqui deve ser entendida como de vigilância e simbólica de suporte à atividade das forças policiais e não de intervenção direta.

Se o separatismo e a “captura de Estado” são as ameaças à soberania e paz em Angola, do ponto de vista externo existem mais e variadas ameaças que têm que ser elencadas e aumentaram nos últimos anos, obrigando a uma especial atenção das FAA. Destacam-se como ameaças externas:

  1. a instabilidade em países vizinhos, designadamente a RDC;
  2. o alastramento do terrorismo designado como islâmico;
  3. crime e pirataria marítima;
  4. o aumento da concorrência entre as potências mundiais com interesses em bens africanos.

Algumas palavras rápidas sobre cada um destes segmentos:

  1. a instabilidade em países vizinhos, designadamente a RDC

Embora pela primeira vez tenha ocorrido em 2018/2019 uma transição pacífica de poder no Congo (RDC), a verdade é que a situação nesse enorme país está longe de estar controlada. A porosidade com a fronteira de Angola é um facto, habitualmente, referido, mas o problema essencial é que Tshisekedi, o Presidente da República e o aparato estatal parecem não controlar vastas zonas do país que, segundo alguns, estão submetidas a milícias fomentadas pelo Ruanda para buscar riquezas para processamento nesse país. Recente artigo do docente angolano e membro do partido do governo angolano, Benjamim Dunda, refere que “O que alguns não sabem é que Ruanda é a porta de entrada e saída da pilhagem dos excessivos recursos minerais da RDC. Boa parte da interminável instabilidade da vizinha nação de Mobutu, tem as impressões digitais de Kagame. O Exército Patriótico Ruandês (EPR) e militares do Uganda ocupam militarmente parte do território da RDC. O Coltan (columbita e tantalita) é actualmente o minério mais cobiçado mundialmente pelas indústrias de tecnologia. 80% das reservas mundiais encontram-se na República Democrática do Congo.”[6] Sem o tom exaltado de Dunda, Laura McCreedy, do Centro de Operações de Paz do International Peace Institute afina pelo mesmo diapasão, referindo já este mês existiram relatos da retomada da violência por procuração (proxy violence) – atribuída ao Uganda, Ruanda e Burundi – bem como as recentes operações ofensivas contra as Forças Democráticas Aliadas (ADF) pelas forças de Uganda e a suposta presença da polícia ruandesa e tropas burundesas no leste da RDC, o que é particularmente alarmante[7].

O que aparenta é que existe um conflito latente na RDC que está longe de ser resolvido, a que acresce uma espécie de invasão assimétrica, utilizando as técnicas popularizadas por Vladimir Putin na Crimeia e Ucrânia, por forças do Ruanda e talvez do Uganda dentro da RDC. Isto pode provocar a breve trecho uma guerra mais intensa e não tão dissimulada no país com efeitos óbvios em Angola. Não esquecer que Angola esteve presente nas denominadas Primeira Guerra Civil do Congo (1996-1997) e Segunda Guerra Civil do Congo (1998-2003), além de ter intervindo direta ou indiretamente nos momentos relevantes subsequentes da história da RDC. Consequentemente, não será indiferente ao evoluir da situação na RDC e a esta espécie de invasão discreta ou disfarçada que ocorre, tendo as FAA, pelo menos um papel dissuasor.

2. o alastramento do terrorismo designado como islâmico

A realidade religiosa angolana não faria antever um perigo iminente proveniente do terrorismo islâmico. No entanto, existem dois fatores que devem ser tidos em conta para aumentar o grau de perigo do terrorismo islâmico em Angola.

O primeiro fator é que aquilo que muitas vezes se chama “terrorismo islâmico” não tem uma real conotação religiosa, mas representa uma espécie de franquia ou marca adotada por movimentos ou guerrilhas insurrecionais em zonas degradadas económico-socialmente. Quer isto dizer que é possível que em áreas descontentes em Angola surjam movimentos terroristas “islâmicos”, que de maometano nada tenham a não ser a designação, adotada para infundir o medo e terror nas populações e autoridades. Aliás, parece claro que os vários movimentos terroristas islâmicos que surgem em África não resultam de um comando ou planificação central, antes sendo células mais ou menos autónomas que se imitam e mutuamente inspiram, buscando elementos comuns na propaganda e metodologias. Como dizem os especialistas da Chatham House, Alex Vines e Jon Wallace, “[Em África, a] linha entre o jihadismo, o crime organizado e a política local é muitas vezes turva e ainda mais complicada por fatores globais, como mudanças climáticas, crescimento populacional e migração.[8]”Quer isto dizer que o “caldo” referido pode surgir em Angola, e de repente, a bandeira islâmica ser atrativa para grupos insurrecionais descontentes com o governo.

A este primeiro fator, junta-se o alastramento que vai percorrendo o continente africano relativamente ao terrorismo islâmico e que vai cercando paulatinamente Angola. Na vizinha RDC, embora ainda longe das fronteiras angolanas, já se fala de terrorismo islâmico a propósito da ADF (Allied Democratic Forces), fazendo-se ligações desta organização ao Estado Islâmico. Na Tanzânia referem-se pequenos ataques como os de outubro de 2020, na aldeia de Kitaya na região de Mtwara; ataque que foi reivindicado por extremistas islâmicos que operam a partir do norte de Moçambique. Obviamente, que o caso de Cabo Delgado em Moçambique é paradigmático da combinação que se pode antever para Angola, um descontentamento socioeconómico aliado ao surgimento do terrorismo islâmico. Mais a norte, seja na República Centro Africana, seja no Chade, seja na Nigéria, há uma permanente ameaça de grupos terroristas que se identificam como islâmicos.

A porosidade das fronteiras, aliada às dificuldades socioeconómicas tornam-se magnetos poderosos para a expansão do terrorismo que se pode tornar uma ameaça interna em Angola, e já é certamente uma ameaça fronteiriça e em propagação pelo continente africano.

3. crime e pirataria marítima

De Cabo Verde à costa angolana, os ataques a navios aumentaram nos últimos anos. Nesta vasta região marítima, os piratas – inicialmente concentrados em torno do Delta do Níger – estenderam as suas atividades a todas as costas nigerianas, bem como ao Benin e ao Togo. Desde 2011, não menos de 22 atos de pirataria foram registados no Benin, afetando o tráfego no porto de Cotonou, que caiu 60%. O grande impacto económico do crime marítimo – que inclui pesca ilegal, tráfico de drogas e armas – nas costas da África Ocidental aumenta todos os anos. O Golfo da Guiné é agora considerado a zona vermelha marítima do continente.[9]

A posição de Angola tem sido clara, assumindo-se como motor estratégico do combate à pirataria, apontando para a criação de uma estratégia de financiamento governamental no Golfo da Guiné e na região dos Grandes Lagos, reconhecendo que a criminalidade tem vindo a crescer nesta área, pondo em perigo a própria região do ponto de vista nacional, internacional e regional. É nesta perspetiva que Angola atribui grande importância aos espaços marítimos que têm que ser controlados. De facto, dos 90 por cento dos crimes cometidos no oceano Atlântico, 70 por cento ocorrem no Golfo da Guiné o que é preocupante.

4. o aumento da concorrência entre as potências mundiais com interesses em bens africanos

Esta situação é mais geral e talvez menos iminente em causar disrupção que as anteriores, contudo, existe e a médio-prazo pode ser a principal ameaça para Angola. Alguns autores falam de uma nova “corrida para África”, como aquelas que ocorreram no final do século XIX a propósito da Conferência de Berlim e após as independências no âmbito da Guerra Fria. Angola foi obviamente parte central de ambas as “corridas”. A primeira serviu para lhe delimitar as fronteiras e completar a intervenção colonial portuguesa, enquanto na segunda foi um dos principais palcos de batalha do confronto EUA-União Soviética. A prestigiada revista inglesa The Economist resumia em 2019 a nova, e terceira, corrida para África, escrevendo que há uma terceira onda em andamento. O continente é importante e está a tornar-se cada vez mais importante, principalmente por causa de sua crescente participação na população global (até 2025 a ONU prevê que haverá mais africanos do que chineses). Governos e empresas de todo o mundo estão a correr para fortalecer os laços diplomáticos, estratégicos e comerciais.[10] Na verdade, quem primeiro discerniu as oportunidades do continente foram os chineses que desde o início do século XXI apostam fortemente em África, sendo Angola o seu principal parceiro, pelo menos em termos de dívida. O restante mundo só agora re-acordou para África. Mas de facto, verificamos a Turquia em busca de novos mercados e aliados desde que abandonou o alinhamento com a União Europeia, os países do Golfo Pérsico na mesma linha procurando projetos de diversificação para as suas economias, e a União Europeia, liderada por Alemanha e França, com a Itália e Espanha também com intensidade retomando velhos e arranjando novos contactos, quer por motivos económicos, quer para tentar estancar a imigração clandestina que afeta os seus países e pode fazer perder eleições aos seus governos. Igualmente a Rússia, no misto de retomada imperial e procura de negócios volta a África. Apenas os Estados Unidos da América prosseguem desde Donald Trump uma política adormecida em relação ao continente, não entendendo ainda muito bem o que estão a fazer de substancial, além de alguns ruídos contra a China e/ou a propósito do terrorismo islâmico. No entanto, esta letargia pode terminar.

Neste momento, é a China que vai muito à frente na nova corrida para África. A partir do momento em que europeus e norte-americanos entendam definitivamente- estamos ainda numa fase ambivalente-que a presença chinesa em África é uma ameaça aos seus interesses geopolíticos e económicos, acentuar-se-á a competição. Recorde-se que a China atualmente absorve de África cerca de 60% das exportações de cobalto; 40% de ferro; e 25-30% de suas exportações de cromo, cobre e manganês.

Consequentemente, o papel de Angola como detentor de matérias-primas fundamentais e força estabilizadora da RDC, outro repositório imenso de recursos, será determinante.

O momento atual das FAAs

Face ao exposto, facilmente se compreende que este tempo é de grande exigência para as FAAs que podem ser novamente chamadas a desempenhar funções de sobrevivência nacional.

Neste momento, de acordo com as fontes mais credíveis, as FAAs são compostas por aproximadamente 107.000 soldados ativos (100.000 Exército; 1.000 Marinha; 6.000 Força Aérea); estima-se ainda 10.000 na Polícia de Reação Rápida (2021).[11]

A despesa militar é de cerca de 1,7% do PIB, portanto, abaixo dos 2% que os Estados Unidos pretendem como parâmetro para os países da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte de que obviamente Angola não faz parte, mas cujo parâmetro pode servir de valor ideal de dispêndio militar). Não é uma despesa exagerada, ao contrário, do que se poderia pensar.

A maioria das armas e equipamentos militares angolanos são de origem russa, soviética ou do Pacto de Varsóvia; desde 2010, a Rússia continua a ser o principal fornecedor de equipamento militar para Angola.[12]

Em relação à sua capacidade militar em 2022, Angola está classificada em 66º lugar entre 140 países considerados pela Global Fire Power. [13] As suas forças contam com 320 tanques, 1210 veículos blindados, e várias peças de artilharia. Note-se, contudo, que os tanques são essencialmente antigos, adquiridos na década de 1990 com origem na União Soviética. Da pesquisa que realizámos, apenas conseguimos encontrar um veículo tipo tanque-destroyer razoavelmente moderno (de 2016), o PTL-02 Assaulter comprado à China. Quanto às forças navais, embora possuindo uma costa alargada e responsabilidades no Golfo da Guiné, o país apenas dispõe de 37 barcos de patrulha e nenhum navio de porte médio ou maior como corvetas, fragatas ou cruzador.

Quanto à Força Aérea são contabilizados 299 aviões, dos quais 71 caças, 117 helicópteros e 15 helicópteros de ataque.

Uma recente análise do África Monitor, que, há que anotar, tem refletido uma postura crítica do governo de João Lourenço, apresenta uma suposta factualidade, que mesmo que esteja exagerada ou represente um prisma demasiado pessimista, traça um quadro pouco animador acerca da prontidão e material da Força Aérea e Marinha Angolanas. Segundo, esta publicação, a frota da marinha de guerra tem os seus níveis de operacionalidade cronicamente “prejudicados por incumprimento de exigências de manutenção e/ou impreparação das suas tripulações.”[14] Também na Força Aérea a paralisia será a palavra-chave. De acordo com o mesmo periódico, estarão paralisadas “as unidades da frota de helicópteros de transporte que ainda operavam (Mil Mi-8, de fabrico russo), quer aparelhos da década de 1980-1990, quer unidades recondicionadas posteriormente”, existe uma “incapacidade para assegurar a manutenção de helicópteros de combate (Mil Mi-24)” e  também em “situação de quase paralisia estão(…), há mais tempo, as frotas de caças MiG-21 e MiG-23, de fabrico soviético, e Sukhoi (Su-22, Su-25, Su-30, Su-27).[15]

Especialistas com quem contactámos diretamente e que preferem manter anonimato asseguram que nos últimos anos não existiu qualquer compra significativa de material militar. Assim, aparentemente, pode existir uma necessidade de reforço com estes ramos das forças armadas.

Em resumo, vislumbram-se necessidades nas Forças Armadas de três tipos: material obsoleto e não modernizado, falta de manutenção do equipamento e impreparação de alguns quadros para atividades específicas. Tal torna, obviamente, importante a intervenção nas FAAs no sentido de aumentar o seu orçamento e elevar a sua capacidade operacional face aos desafios descritos.

Vetores de modernização das FAAs

De tudo o exposto resulta dois pressupostos de base que nos levam a uma conclusão simples. Os pressupostos são que as ameaças à soberania e integridade de Angola aumentaram nos últimos anos depois de um período de alguma acalmia após 2002. Hoje o país defronta-se com uma nova “corrida para África” das grandes potências e das emergentes, a ameaça do terrorismo designado como islâmico espalha-se pelo continente e a pirataria e criminalidade no golfo da Guiné ao longo da costa são uma realidade. A isto acresce o renovar das tendências separatistas internas e a forte reação da oligarquia anteriormente dominante ao combate contra a corrupção. A estes factos correspondem, neste momento, umas FAAs com algumas lacunas ao nível de material, prontidão e treino, o que pode, eventualmente, inviabilizar uma reação adequada em caso de incremento de alguma das ameaças expostas.

Resulta da equação destes pressupostos que uma política de modernização das FAA em termos de equipamento, treino e prontidão/ manutenção é fundamental. Ao contrário, do que muitos alegariam é necessário um reforço do orçamento militar e uma reforma modernizadora das Forças Armadas.

O Orçamento Geral do Estado para 2022 ainda não reflete totalmente essas necessidades. Se reparamos, de 2021 para 2022 há um incremento nominal dos gastos de defesa de 19,7%. Basta pensar que a inflação oficial se situa na ordem dos 27% em 2021[16]para se perceber que em termos reais o dispêndio com a defesa diminui, levando provavelmente a cortes na esfera militar. Por sua vez, os gastos com a defesa equivalem a 1,4%PIB.[17]

Entendemos que a modernização das FAA tem um vetor qualitativo que deve ser definido pelos especialistas na área e envolver a prontidão das Forças Armadas, a sua capacidade de implantação e níveis de sustentabilidade, bem como a qualidade da força que pode exercer. Contudo, o vetor que nos debruçamos neste relatório é o quantitativo e apresentamos a sugestão muito simples já adotada pelos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), que é a de situar a despesas com a defesa na ordem dos 2% do PIB.[18] Este não é um número mágico e pode ser objeto de muitas críticas, mas representa um parâmetro objetivo e quantificável, e na verdade confere ao poder político um instrumento mensurável para atingir[19], o que pode ser um avanço nas políticas de boa governação e transparência que se pretendem implementar em Angola.


[1] Cfr. Pedro Pezarat Correia (1991), Descolonização de Angola: jóia da coroa do império português, Lisboa: Inquérito; Silva Cardoso (2000) Angola, anatomia de uma tragédia, Lisboa: Oficina do Livro; «Involvement in the Angolan Civil War, Zaire: A Country Study». United States Library of Congress;

 Donald S. Rothchild (1997). Managing Ethnic Conflict in Africa: Pressures and Incentives for Cooperation. Brookings Institution Press. pp. 115–116; Ndirangu Mwaura, (2005). Kenya Today: Breaking the Yoke of Colonialism in Africa. pp. 222–223; Chester A Crocke, Fen Hampson, Pamela Aall, Pamela (2005). Grasping The Nettle: Analyzing Cases Of Intractable Conflict.

[2] Para uma boa definição destes temas na África do Sul, mas com aplicação conceitual a Angola ver Judicial

Commission of Inquiry into State Capture Report: Part 1  [Zondo Report] (2022).

[3] Simão Lelo, (2022), Ataques em Cabinda: Aumentam apelos para uma solução, Deutsche Welle, https://www.dw.com/pt-002/ataques-em-cabinda-aumentam-apelos-para-uma-solu%C3%A7%C3%A3o/a-60489955

[4] Cópia de documentos na posse do CEDESA e referidos na imprensa, por exemplo, em https://e-global.pt/noticias/lusofonia/angola/chefe-do-estado-maior-congoles-protesta-contra-violacoes-do-territorio-por-angola/

[5] Morais, Rafael, (2021), Miséria & Magia, MakaAngola & UFOLO.

[6] Benjamin Dunda (2022), O que não dizem do Ruanda e de Kagame, https://camundanews.com/noticia/9593/dupla-nacionalidade-da-presidente-do-tribunal-constitucional-nao-viola-constituicao.html

[7] Laura McCreedy (2022), What Can MONUSCO Do to Better Address the Political Economy of Conflict in DRC? https://reliefweb.int/report/democratic-republic-congo/what-can-monusco-do-better-address-political-economy-conflict-drc

[8] Alex Vines e Jon Wallace, (2021), Terrorism in Africa, Chatham House, https://www.chathamhouse.org/2021/09/terrorism-africa

[9] Baudelaire Mieu (2021), Cameroon, Nigeria, Angola: Increased pirate activity along western coasts, The Africa Report, https://www.theafricareport.com/70478/cameroon-nigeria-angola-increased-pirate-activity-along-western-coasts/

[10] The Economist (2019), The new scramble for Africa, https://www.economist.com/leaders/2019/03/07/the-new-scramble-for-africa

[11] Angola. The World Factbook (2022) CIA, https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/angola/#military-and-security

[12] Idem nota supra

[13] Cfr. https://www.globalfirepower.com/country-military-strength-detail.php?country_id=angola 

[14] África Monitor, Nº 1334 |20.JAN.2022 |Ano XIX.

[15] Idem nota supra.

[16] https://www.bna.ao/#/, taxa de inflação apresentada a 28-01-2022  é de 27,03%.

[17] Ministério das Finanças, (2021), RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO

Orçamento Geral do Estado 2022, p.68.

[18] North Atlantic Treaty Organization, (2014) “Wales Summit Declaration,” press release,

September 5, www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_112964.htm

[19] Sobre as críticas e vantagens ver Jan Techau (2015), THE POLITICS OF 2 PERCENT. NATO and the Security Vacuum in Europe. Carnegie Foundation.

Radiografia do combate à corrupção em Angola

1- Introdução. A discussão sobre o combate à corrupção em Angola

O combate à corrupção foi estabelecido como um objetivo principal no dealbar do mandato presidencial de João Lourenço. O que se procura saber nesta análise é se este combate passou da retórica para a prática, e, sobretudo, quais os elementos que podem identificar uma resposta clara de um tema que se tornou objeto de disputa política em Angola. Para chegarmos a conclusões provisórias-uma vez que o dito combate ainda não terminou-vamos analisar alguns elementos estruturantes do combate à corrupção como o discurso do poder político, a legislação adotada, os órgãos criados, a cooperação internacional, os casos em investigação, a recuperação de ativos e o universo de acusações judiciais. Juntando todos estes elementos chegaremos a uma fotografia do presente combate à corrupção.

Este texto cura averiguar se existe ou não combate à corrupção em Angola, utilizado os elementos-índice referidos. Não procede a um balanço desse combate, tal só será feito no final do mandato presidencial, nem investiga as falhas e melhoramentos necessários para esse combate, o que tem vindo a ser feito noutros estudos. Aqui quer-se juntar elementos e concluir acerca da práxis do combate à corrupção em Angola

2Elementos estruturantes do combate à corrupção

2.1- O discurso político

O combate à corrupção iniciou-se com um forte apelo do poder político que começou na tomada de posse do Presidente da República. Nessa altura, em setembro de 2017, João Lourenço elegeu a luta contra a corrupção como uma das suas prioridades afirmando ir confrontar a corrupção que “grassa nas instituições do Estado.” O Presidente enfatizou o “impacto negativo directo no Estado” da corrupção, afirmando que esta ameaça “os alicerces do país” e concluindo que esta será “uma das mais importantes frentes de luta dos próximos anos”[1]. Mais tarde, em fevereiro de 2020, depois de variados discursos do mesmo teor, quando se colocou publicamente a possibilidade de um acordo entre o Estado e Isabel dos Santos, o Presidente saiu a terreiro para vigorosamente reafirmar a prioridade do combate à corrupção e negar qualquer acordo com Isabel dos Santos.[2] Recentemente, por ocasião do aniversário da Procuradoria-Geral da República (PGR), reafirmou o seu empenho nesse combate e elogiou o papel da PGR[3].

Três momentos diferentes, e três discursos claros e solenes sobre o combate à corrupção por parte do Presidente da República e titular do poder executivo. A mesma retórica tem acompanhado outros decisores políticos ao longo destes últimos anos. Não tem havido hesitações ou recuos nas construções gramaticais. Nessa medida, do ponto de vista do discurso político não existe dúvida que há um empenho forte e permanente desde 2017 em relação ao combate à corrupção, ficando preenchido o primeiro elemento analítico. Cumpre seguir para os seguintes elementos.

2.2- Legislação contra a corrupção

O discurso político foi acompanhado por legislação com o foco no combate à corrupção. O governo fez aprovar duas leis sobre repatriamento de capitais, as quais considerou serem a pedra-de-toque da sua política contra a corrupção. Essas leis são a Lei do Repatriamento de Recursos Financeiros, vulgo Lei do Repatriamento Voluntário (LRV), Lei n.º 9/18, de 26 de junho, e a Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, vulgo Lei do Repatriamento Coercivo (LRC), Lei n.º 15/18, de 26 de dezembro. As referidas leis representarão o empenho do executivo em garantir que os fundos desviados pela corrupção, retornam ao seu legítimo dono, o Estado. Veremos mais abaixo quais têm sido os efeitos da aplicação dessas leis em termos de valores. Mais tarde, em 2020, a Assembleia Nacional, aprovou um novo Código Penal e um novo Código de Processo Penal. Embora estas leis sejam estruturantes de todo o Estado e ordenamento jurídico, é de realçar que o Código Penal novo tem um capítulo específico sobre Crimes Cometidos no Exercício de Funções Públicas e em Prejuízo de Funções Públicas (art.ºs 357.º a 375.º) em que se inclui a corrupção (art.ºs 358.º a 361.º), o recebimento indevido de vantagens (art.º 357.º), o tráfico de influências (art.º 366.º) e o peculato (artigo 362.º), entre outros. Toda a tipicidade sancionatória do direito penal foi revista e sistematizada para ser de mais fácil compreensão e adequação.

Também na área dos contratos públicos existiram várias alterações com vista a reforçar a transparência e a luta contra a corrupção. A legislação da contração pública foi alterada pela Lei n.º 41/20, de 23 de dezembro. Em 2018, o governo aprovara a Cartilha de Ética e Conduta na Contratação Pública, o Guia Prático de Prevenção e Gestão de Riscos de Corrupção e Infrações Conexas nos Contratos Públicos e o Guia de Denúncias de Indícios de Corrupção e Infrações Conexas nos Contratos Públicos.

Igualmente na área da informação financeira foram reforçados manifestamente os mecanismos de controlo de fluxos ilícitos e de prevenção do branqueamento de capitais. Há que destacar a Lei n.º 5/2020 de 27 de janeiro sobre a prevenção e combate ao branqueamento de capitais, do financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, resultante das ratificações das Convenções das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Narcóticos e Substâncias Psicotrópicas, contra o Crime Organizado Transnacional e sobre a Supressão do Financiamento do Terrorismo. Importante foi também o Decreto Presidencial n.º 2/18 de 9 de janeiro que aprovou o Estatuto Orgânico da Unidade de Informação Financeira, adiante designada por UIF e do Comité de Supervisão, enquanto serviço público especializado na coordenação ao nível nacional dos reforços de prevenção e repressão do branqueamento de capitais, financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição massiva.

Vemos, portanto, que existe uma atualização maciça da legislação contra a corrupção e o branqueamento de capitais. À retórica juntou-se o ato legislativo, às palavras as normas. O elemento seguinte de análise prende-se com a orgânica.

2.3- Órgãos de combate à corrupção

O governo optou por não criar novos órgãos, e assentar a execução da política anticorrupção nas instituições já existentes: Procuradoria-Geral da República (PGR), Banco Nacional de Angola, Unidade de Informação Financeira, Serviço de Investigação Criminal (SIC), etc.

No entanto, ao nível da PGR criou um subórgão com funções específicas no combate à corrupção: o Serviço Nacional de Recuperação de Activos. Este serviço foi criado pela Lei 15/18, de 26 de dezembro, Lei sobre o Repatriamento Coercivo e a Perda Alargada de Bens. De acordo com o artigo 13.º dessa Lei, a atribuição principal desse Serviço Nacional consiste em proceder à localização, identificação e apreensão dos bens, ativos financeiros e não financeiros ou produtos relacionados com o crime, quer esses bens estejam em Angola quer estejam no exterior do país. Além disso, o Serviço tem competência para assegurar a cooperação internacional entre as suas congéneres, bem como exercer as demais atribuições conferidas por lei, em que se destaca a instauração de qualquer ação cível, administrativa ou fiscal com o intuito de se recuperar os ativos retirados ilicitamente do Estado.

O funcionamento prático do Serviço tem estado estribado na abertura de investigações patrimoniais em apenso aos processos-crime que correm termos nas autoridades judiciárias, com vista a investigar e identificar a localização dos ativos suscetíveis de serem objeto de uma decisão de perda e a adoção das medidas necessárias à sua recuperação. Dentro deste escopo o Serviço efetiva todas medidas necessárias (envio de cartas rogatórias a suas congéneres, ordenar apreensões e requerer arrestos) para garantir que os ativos não se dissipem. De notar que este órgão não atua sozinho, mas em cooperação com os órgãos que têm os processos principais. No entanto, a verdade é que se tem destacado pelo montante de apreensões e medidas tomadas.

Existem vários exemplos da atividade do Serviço de Recuperação de Activos. Em julho de 2020, ordenou a apreensão de três edifícios, de escritórios e residenciais, denominados Três Torres, em Luanda. Os prédios, conhecidos como Três Torres e construídos recentemente, incluem a Torre A Escritórios, e Torre B e C Residencial, estão localizados no distrito urbano da Ingombota, em Luanda, capital do país. Na altura, a Deutsche Welle referiu que: “O nome de Manuel Vicente, ex-presidente da Sonangol e ex-vice-Presidente do país, é apontado, à boca pequena, como estando ligado aos edifícios.”[4] Em setembro de 2020, o Serviço determinou a apreensão da participação social minoritária de 49% da AAA Ativos no SBA, bem como edifícios do grupo AAA, pertencentes a Carlos São Vicente, no âmbito do processo de investigação patrimonial ligado ao processo-crime que lhe diz respeito. Já em 2021, foram apreendidos cinco projetos habitacionais, nomeadamente Projeto Tambarino (Lobito, Benguela), Palanca Negra (Malanje), Projeto Mifongo (Malanje) e os projetos Ex-Petro, no Golf II e Nova Vida III, ambos em Luanda. Na mesma altura, no âmbito de um processo contra o ex-presidente do conselho de administração do Banco de Poupança e Crédito (BPC), Paixão Júnior, o Serviço apreendeu ainda contentores de material para montagem de uma fábrica de iogurtes em Benguela que estava entregue à empresa Smart Solution.

Estes são meros exemplos de um trabalho amplo que está a ser desenvolvido por este serviço dinamicamente dirigido pela magistrada do Ministério Público Eduarda Rodrigues. Possivelmente, este Serviço poderá ser o embrião de um órgão anticorrupção mais global e abrangente, como temos defendido.

2.4. Cooperação judiciária internacional

A par com o labor de recuperação de ativos centrado por um subórgão acima descrito, tem existido um amplo recurso à cooperação judiciária internacional. Em primeiro lugar há que destacar os pedidos dirigidos e cumpridos a Portugal. A atividade com Portugal tem sido imensa, desde as cartas-rogatórias referentes a Isabel dos Santos e seus associados que já levaram a vários “congelamentos” de participações sociais em terras lusas. Ainda recentemente se noticiou que “O Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) arrestou as contas bancárias em Portugal de três amigos de Isabel dos Santos, a pedido das autoridades judiciárias de Angola. O arresto das contas de Mário Leite da Silva, Paula Oliveira e Sarju Raikundalia foi efetuado no âmbito de uma carta rogatória enviada de Angola para Portugal em janeiro de 2020. Nessa carta, as autoridades angolanas pediram o arresto preventivo em Portugal de bens de Isabel dos Santos e dos seus três amigos até ao valor total de 1,15 mil milhões de euros, como garantia de uma eventual indemnização futura a Angola.”[5] Também Carlos São Vicente e outros foram objeto de cartas rogatórias e pedidos para Portugal.

O PGR de Angola informou há dias que já foram feitos pedidos de cooperação à Suíça, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido, Singapura, Bermudas, Emirados Árabes Unidos, Ilhas Maurícias, Reino do Mónaco, Malta, Ilhas de Man e outros. No âmbito da cooperação internacional a Procuradoria-Geral da República já solicitou a apreensão e o arresto de bens no valor de cerca de 5 mil milhões de dólares norte americanos.

3-Índices de aferição

3.1- Índices quantitativos

            Toda a atividade que tem vindo a ser descrita tem apresentado resultados quantificáveis que aqui se reproduzem:

  • Desde o início do combate contra a corrupção, Estado angolano recuperou, definitivamente, em dinheiro e bens num total de cerca de 5,3 mil milhões de dólares.
  • Ademais, pediu para apreender em jurisdições estrangeiras 5, 4 mil milhões de dólares americanos.
  • Em Angola, já foram apreendidos e arrestados bens no valor de cerca 4 mil milhões de dólares. Tais bens encontram-se à ordem dos respetivos processos ainda em curso, aguardando decisão final em primeira instância ou em sede de recurso.
  • Foram abertos 1522 processos criminais referentes à criminalidade ligada à corrupção e afins.

3.2- Índices qualitativos

Em termos de acusações criminais, o Ministério Público proferiu acusações contra variados altos dignatários. Destacam-se os despachos acusatórios contra: general Sachipengo Nunda, ex-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, Norberto Garcia, ex-director da Agência de Investimento Externo, Valter Filipe, ex Governador do banco central, José Filomeno dos Santos, ex CEO do Fundo Soberano, Augusto Tomás, ex-ministro dos Transportes, Manuel Rabelais, ex-ministro da Comunicação Social, Carlos São Vicente, ex-Presidente do Grupo AAA.

Além destas figuras, existe uma miríade de casos ao nível das províncias que se replicam em cada uma. Recentemente, foi dada nota que o ex-diretor do Gabinete do Ordenamento do Território, Urbanismo e Ambiente da província do Bengo foi condenado, a dois anos de prisão pelos crimes de corrupção ativa e passiva e recebimento indevido de 125 milhões de kwanzas. No mesmo processo, foram igualmente condenados a um ano de prisão a ex-diretora do gabinete jurídico do Governo Provincial do Bengo, e o antigo diretor do gabinete do ex-governador pelos crimes de corrupção passiva e grau de influência, por terem beneficiado de valores monetários no negócio.

Naquilo que se refere a “congelamentos” de bens, foram apreendidos ou entregues bens de Manuel Vicente e generais Dino e Kopelipa, entre outros. No que diz respeito a estes dois últimos regista-se que na qualidade de representantes das empresas China International Fund Angola — CIF e Cochan, S.A., os generais entregaram as acções que detinham na empresa Biocom-Companhia de Bionergia de Angoala, Lda., na rede de Supermercados Kero e na empresa Damer Gráficas-Sociedade Industrial de Artes Gráficas SA. Ainda em relação a Manuel Vicente, o Presidente da República determinou a nacionalização de 60% das participações sociais da sociedade comercial Miramar Empreendimentos, SA”, o que abrange “43% das ações pertencentes à Sociedade Suninvest — Investimentos, Participações e Empreendimentos, SA” e “17% das ações pertencentes à Sommis, SGPS. Estas participações serão pertencentes a Manuel Vicente.

Obviamente, há que referir também as apreensões de bens referentes a Isabel dos Santos e seus associados.

4- Conclusões

Neste estudo procurámos aferir, com elementos concretos, a realidade do combate à corrupção em Angola neste momento. Fazer uma radiografia. Concluímos que existe uma retórica poderosa a suportar o combate à corrupção, que foi aprovada legislação adequada, criado um subórgão específico com vista à recuperação de ativos, entidade que se tem demonstrado bastante empenhada. A cooperação judiciária internacional é ampla. Do ponto de vista da recuperação de ativos, entre apreensões e entregas definitivas talvez se tenham já obtido 10 mil milhões de dólares. Variadas acusações já foram realizadas a diversas altas individualidades.

O que há a concluir desta enumeração é a abrangência daqueles que já foram alvo de alguma acusação ou ação de recuperação bens. Não se pode falar que exista seletividade, pois na verdade temos uma amostra representativa dos antigos altos dirigentes, nem se pode afirmar que não existe nenhuma medida. Existiram já muitas e variadas. Não quer dizer que o âmbito do combate não possa e deva ser alargado. Em resumo, existe um combate alargado contra a corrupção em Angola que se traduz nos elementos que aqui identificámos.

Contudo, tal não quer dizer que esse combate não se necessite de vários aperfeiçoamentos e tenha variadas falhas, que já identificámos em estudos anteriores, designadamente, a falta de especialização e de órgãos de investigação alargada e justiça próprios, a necessidade de celeridade, e a criação de mecanismos atuais para evitar a continuação de práticas corruptas.

Fig. nº 1- Quadro Índice do Combate à Corrupção


[1] https://www.publico.pt/2017/09/26/mundo/noticia/joao-lourenco-promete-combater-a-corrupcao-que-grassa-o-estado-1786811

[2] https://www.dw.com/pt-002/jo%C3%A3o-louren%C3%A7o-quebra-o-sil%C3%AAncio-e-fala-%C3%A0-dw-sobre-isabel-dos-santos/av-52240806

[3] https://novojornal.co.ao/politica/interior/joao-lourenco-elogia-pgr-no-combate-a-corrupcao-uma-das-suas-prioridades-anunciadas-quando-tomou-posse-101998.html

[4] https://www.dw.com/pt-002/angola-pgr-apreende-tr%C3%AAs-pr%C3%A9dios-em-luanda/a-54272442

[5] https://angola24horas.com/component/k2/item/20926-justica-portuguesa-arresta-contas-bancarias-de-amigos-de-isabel-dos-santos

Estado de Direito e Corrupção em Angola: por um minissistema de justiça contra a corrupção

1-Introdução. Luta contra a corrupção em Angola. Objetivos e factos

A corrupção tornou-se um fenómeno tão alastrado em Angola que colocou em causa a sobrevivência do próprio Estado e a viabilização económica do país. A denominada luta contra a corrupção não é uma questão de polícia e de combate a uma atividade criminosa. É algo de muito maior e com muito mais importância. Na verdade, aquilo a que se chama corrupção em Angola é um fenómeno mais abrangente de apropriação em larga escala dos recursos nacionais e de “privatização da soberania[1]”. Consiste em comportamentos variados que preenchem vários tipos criminais como a burla, abuso de confiança, peculato, fraude fiscal, branqueamento de capitais, entre outros, e não apenas o crime de corrupção. O que este fenómeno acarreta é a captura do Estado e da Economia pelas forças corruptas e a utilização dos seus mecanismos de poder em proveito próprio. É uma degradação sistémica do corpo político e económico do país. Em última análise, a corrupção em Angola impede o funcionamento das instituições políticas e da economia num ambiente de mercado livre.[2]

Acreditamos que foi a perceção da gravidade da corrupção para o desenvolvimento político e económico do país que levou João Lourenço a determinar como um dos objetivos fundamentais do seu mandato presidencial a luta contra a mesma. Não vale a pena citar os inúmeros discursos e ações encetados sobre o tema, para confirmar que efetivamente a luta contra a corrupção se tornou um ponto inultrapassável do mandato presidencial.

Se este objetivo é claro e justificável, as questões colocam-se ao nível da execução. Uns criticam o que chamam a seletividade dos casos levados a tribunal, outros a morosidade e ainda outros o atropelo de formas legais.

Não vislumbramos que exista seletividade na luta contra a corrupção. Basta ater-nos apenas aos julgamentos ocorridos e veremos que são diferentes as pessoas que foram sentenciadas. Temos no caso “Burla tailandesa”, um antigo Diretor do gabinete de investimento estrangeiro, Norberto Garcia e um antigo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o general Nunda. Ambos foram absolvidos e ocupam hoje cargos de relevo, Garcia no gabinete presidencial e Nunda como Embaixador em Londres. Depois temos Augusto Tomás, antigo ministro dos Transportes, que foi condenado a prisão efetiva com trânsito em julgado, José Filomeno dos Santos, filho do antigo Presidente da República, condenado a cinco anos de prisão e que aguarda o resultado do recurso em liberdade, tal como Valter Filipe antigo Governador do Banco Nacional de Angola. Finalmente, tivemos recentemente a condenação de Manuel Rabelais a 14 anos de prisão. Rabelais era o homem-forte da comunicação social no tempo de José Eduardo dos Santos. Também aguarda o resultado do recurso em liberdade. Vê-se que não são todos, nem sequer a maioria, da família de José Eduardo dos Santos, apenas um é filho; têm situações carcerárias diferentes e resultados diversos. Não se confirma qualquer seletividade.

Diferente é a morosidade processual e alguma atrapalhação com as formas legais. Ainda recentemente, o Procurador-Geral da República em relação ao suposto processo referente a Isabel dos Santos, que vai ser, possivelmente, o processo mais importante e marcante de Angola, referia que estava atrasado porque era muito complexo.[3]E muitos outros processos se arrastam e levantam dúvidas legais. Não entrando aqui em detalhes, o que há a anotar, é que, neste momento, (16 de abril de 2021), apenas existe um processo de político muito relevante transitado em julgado e com cumprimento de pena. Os outros dois processos de pessoas muito relevantes estão em recurso, e nada mais chegou a julgamento.

Este panorama para uma situação de extrema urgência como a descrita acima é muito curto. Não havendo dúvida que a luta contra a corrupção era uma urgência e prioridade do Estado e que foi assumida como tal pelo Presidente da República, o que se verifica é que os resultados judiciais são ainda reduzidos. A nossa opinião é que esta míngua de resultados é consequência duma opção de boa-fé do poder político que não funciona. Essa opção foi a de combater a corrupção com os meios normais e habituais pré-existentes no sistema judicial angolano. O uso do sistema judicial como está para combater a corrupção não satisfaz. Veremos a razão por que tal opção não resulta e as alternativas.

2- A opção de combate à corrupção dentro do sistema judicial pré-existente

O poder político quando elegeu como objetivo principal o combate à corrupção, resolveu fazer essa luta através dos órgãos judiciais pré-existentes e com as pessoas titulares habituais. Não houve qualquer renovação orgânica ou de pessoal, apenas meros ajustes, o Vice-PGR subiu a PGR, os Presidentes do Tribunal Supremo e Tribunal Constitucional trocaram de cargo e umas leis um pouco apressadas sobre recuperação de ativos foram aprovadas. Portanto, poucas mexidas para lançar o combate à corrupção. Esta opção deve ter correspondido a uma opinião formalista dada pelos mais eminentes juristas angolanos segundo a qual, o combate à corrupção deveria ser feito dentro do Estado de Direito e com os meios legais existentes. Só assim seriam garantidos os necessários direitos de defesa e credibilidade dos processos. E face ao estrangeiro poder-se-ia sempre afirmar que não haveria qualquer abuso por parte das autoridades, pois era o sistema judicial instalado que estava a funcionar dentro das normas habituais do Estado de Direito.

Esta normalidade legal parece correta, mas na realidade, é o que impede um real, célere e efetivo combate contra a corrupção. O que estamos a assistir é a máquina e pessoas que foram capturadas no passado pelos interesses corruptos a fazer essa luta contra a corrupção. Por isso, processos perdem-se fisicamente nos tribunais, outros embrulham-se, outros surgem com decisões inaceitáveis e outros prolongam-se inexplicavelmente. Na verdade, entregar à estrutura judicial existente o combate contra a corrupção revela-se um erro. Se essa estrutura também era corrupta, não pode, por razões de lógica elementar, estar a julgar a corrupção, as relações clientelares do passado, os favores devidos, a venalidade habitual, são demasiado fortes, para de repente um manto de integridade tudo afastar. O que temos estado a verificar é que o sistema judiciário e judicial se mostra incapaz de combater a corrupção. Os processos judiciais com princípio, meio e fim rareiam. É como se existisse uma disfuncionalidade entre as intenções do Poder Executivo e as concretizações do Poder Judicial.

A realidade é que se está a pedir a uma estrutura que colaborou e beneficiou da corrupção que agora a combata; no fundo, que se vire contra si própria. Salvaguardando, que nessa estrutura existem agentes de mudança, juízes, procuradores, polícias, funcionários, que devem ser elogiados pelo seu trabalho aturado, o certo é que são uma exceção-mesmo que larga- e não impedem que a estrutura judicial como um todo seja conservadora e avessa ao risco de combater os seus aliados de ontem.

Nessa medida, a luta contra a corrupção pode acabar por ser inglória e não resultar, atendendo aos vários empecilhos estruturais existentes.

3- Exemplos históricos de superações das magistraturas atávicas

Não é a primeira vez que as magistraturas, pelo seu conservadorismo e aversão ao risco, colocam em causa as intenções de novos regimes. Há exemplos históricos impressivos, que também contribuem para soluções para esse problema.

         Sumariamente, referiremos duas situações.

A primeira a referir ocorreu após a Revolução Francesa e a instauração do regime legal que se seguiu, designadamente ao nível do direito administrativo. Este direito foi considerado chave para o desenvolvimento do novo regime pois regularia a atividade do novo Estado e as suas relações com os cidadãos. Sendo o Estado revolucionário e querendo instituir um regime baseado em novos valores-Liberdade, Igualdade e Fraternidade- temia que os juízes, pertencentes às classes privilegiadas e um dos pilares do Ancien Régime impedissem esses desideratos e se tornassem obstáculos inultrapassáveis às novas medidas. Para obviar a esse perigo logo em 1790, uma lei de agosto definiria um código de relações entre o judicial e a administração, proibindo os tribunais de participarem no exercício dos poderes legislativo e executivo, em especial impedindo o juiz ordinário de intervir na atividade da administração. Um ano depois um novo Código Penal determina sanções contra os juízes que se pronunciarem sobre o funcionamento de um órgão administrativo. A lógica que presidiu ao direito administrativo a seguir à Revolução Francesa foi uma lógica de estanquicidade face ao poder judicial, para a Revolução avançar, os juízes tinham de ser afastados. Essa lógica foi evoluindo e permitiu criar um novo sistema judicial autónomo do sistema judicial ordinário. Assim, surgiram a par das leis administrativas, os tribunais administrativos e os juízes administrativos, um corpo estranho aos anteriores juízes[4].

Outra situação em que houve necessidade de contornar o conservantismo de juízes ligados a um antigo regime, ocorreu na Áustria, após o final da Primeira Guerra Mundial (1918). Aí uma República substituiu o antigo Império Habsburgo, e uma nova classe de juízes era necessária para fazer vigorar os novos valores republicanos. É nesse contexto que surge o Tribunal Constitucional e a nova concetualização de Hans Kelsen sobre o tema. É instituído um novo tribunal com juízes diversos.

Isto quer dizer que em diversas circunstâncias históricas, quando o poder político sentiu que os juízes e tribunais não correspondiam aos novos tempos e valores, tornou-se necessário criar novos sistemas judiciais paralelos, complementares ou suplementares. É uma sugestão deste género que se faz em relação ao tempo presente em Angola[5].

4-Estado de Direito para a corrupção

Muitos defendem que em Angola já existem os mecanismos adequados para combater a corrupção e que é imperativo respeitar o Estado de Direito, considerando que tal é representado pelos sistemas e leis tal como estão neste momento. Não podemos subscrever esta tese por duas razões. A primeira assenta num ponto de vista teórico, enquanto a segunda tem um caráter eminentemente prático.

Em termos teóricos, o Estado de Direito não é mais, nem menos do que o respeito pela lei aprovada segundo critérios pré-estabelecidos, portanto, o oposto de arbítrio. O Estado de Direito implica que exista uma lei e que todos a respeitam. Vários pensadores legais acrescentam a este pressuposto formal, que o Estado de Direito também contém um elemento substantivo ligado à igualdade- todos são iguais perante a lei, e à liberdade – há uma presunção a favor da liberdade na implementação das normas jurídicas. Outros ainda vão mais longe equiparando Estado de Direito a uma série de direitos fundamentais e princípios democráticos[6]. Não seguimos esta última versão, ficando pela segunda. Contudo, tal não é importante, importante é salientar que o Estado de Direito admite que existam regras específicas para determinadas situações. Um exemplo típico são as regras constitucionais para o Estado de Emergência (cfr. artigos 58.º e 204.º da Constituição angolana), outro exemplo é o sistema de direito administrativo autónomo como existe em França ou em Portugal. Em Portugal, temos uma situação muito clara de um sistema completamente apartado do sistema judicial ordinário, com leis próprias, tribunais específicos, juízes com carreiras independentes naquilo que se refere ao direito administrativo, o direito do poder do Estado e da sua relação com os cidadãos. Portanto, do ponto de vista teórico e do Estado de Direito não é difícil conceber minissistemas jurídicos dedicados a determinadas matérias.

Se do ponto de vista teórico pode haver um Estado de Direito diferenciado para as questões de grande criminalidade económico-financeira e captura do Estado (vulgo corrupção) com regras diversas do Estado de Direito normal, do ponto de vista prático é evidente que só assim se conseguirá combater a corrupção instalada no poder soberano do Estado. Só estabelecendo um minissistema judicial estanque a influências e com regras próprias tal será viável.

A verdade é que cada sistema jurídico nacional admite vários subsistemas de acordo com as matérias ou propriedades traçadas. Tal não viola qualquer conceção de Estado de Direito, pelo contrário cria regras e obrigações para todos, transparentes e claras, em determinadas áreas. Em resumo, existirá um Estado de Direito para a normalidade e um Estado de Direito para a corrupção.

5. A proposta: criação do minissistema judicial anticorrupção

A proposta que aqui se adianta é simples: criar de raiz um minissistema judicial anticorrupção, ou mais precisamente um sistema jurídico relativo aos grandes crimes de natureza económico-financeira e de captura do Estado.

         Esse sistema jurídico funcionaria com independência dos outros órgãos judiciários e judiciais e seria composto por quatro partes:

  1. Um órgão especial com poderes judiciários para a investigação e acusação. Este órgão seria um misto de polícia judiciária e ministério público tendo poderes de investigar, apreender, realizar buscas e detenções, pedir cooperação judicial internacional e no final fazer uma acusação ou arquivar um processo de grande corrupção. Só trabalharia nestes casos e seria composto por um corpo de agentes com treino focado e dedicado.
  2. Um sistema de tribunais dedicados a estes crimes. Para julgamento e recurso dos casos de grande criminalidade económico-financeira e captura do Estado existiria um sistema de tribunais apenas dedicado a esta matéria. Este sistema de tribunais implicaria uma revisão da Constituição naquilo que se refere ao artigo 176.º n.º 3 e 5. Dever-se-ia passar a admitir uma jurisdição destinada aos grandes crimes de natureza económico-financeira e também abolir a proibição de tribunais com competência exclusiva para julgar determinados tipos de infração.
  3. Um corpo de juízes autónomo e dedicados a esses tribunais seria outras das partes deste minissistema contra a corrupção. Especializar-se-iam determinados juízes nestas matérias que preencheriam os lugares nos tribunais.
  4. Finalmente, este sistema deveria ter uma lei processual simplificada elaborada à semelhança da norte-americana ou da francesa atual que permitisse julgamentos rápidos e justos.

Alternativamente, e para o caso de não se pretender realizar uma revisão constitucional sobre o tema, sempre se poderia em vez de se criar um sistema de tribunais exclusivos com juízes próprios, estabelecer secções especializadas para o combate à corrupção nos tribunais judiciais já existentes. Os tribunais das capitais provinciais ou somente o de Luanda, bem como as Relações e o Tribunal Supremo disporiam de secções especializadas para a corrupção. Neste caso, respeitava-se o artigo 176.º ao não se erguerem novos tribunais com competências exclusivas para julgar determinados tipos de infração, mas ao mesmo tempo teríamos seções de tribunais ordinários ou salas dedicadas ao tema. Tal já é constitucionalmente possível e o restante minissistema proposto mantinha-se como descrito.


[1] A expressão é caracterizada por Achille Mbembe, On the postcolony, 2001.

[2] Sobre o impacto da corrupção em Angola ver Rafael Marques, O espaço de liberdade entre a corrupção e a justiça, 2019,in MakaAngola (https://www.makaangola.org/2019/12/o-espaco-de-liberdade-entre-a-corrupcao-e-a-justica/), Ricardo Soares de Oliveira, Magnificent and Beggar Land: Angola Since the Civil War, 2015 e Rui Verde, Angola at the Crossroads. Between Kleptocracy and Development, 2021.

[3]https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/pgr-admite-complexidade-no-caso-isabel-dos-santos-2-2/ 

[4] Jean-Louis Mestre, « Administration, justice et droit administratif », Annales historiques de la Révolution française 328 | avril-juin 2002. http://journals.openedition.org/ahrf/608

[5] Sara Ligi, “Hans Kelsen and the Austrian Constitutional Court (1918-1929)”, June 2012, Co-herenci,a 9(16):273-295. https://www.researchgate.net/publication/262430581_Hans_Kelsen_and_the_Austrian_Constitutional_Court_1918-1929

[6] Ver uma análise detalhada sobre os conceitos de Estado de Direito e as suas diferenças históricas e espaciais em Rui Verde, Brexit. O triunfo do caos? 2019

O sector económico e financeiro na revisão constitucional angolana – Em especial, a consagração da independência do banco central

1-Introdução. Revisão constitucional em Angola

A presente Constituição angolana (CRA) data de 2010 e nunca tinha sido revista. Recentemente, o Presidente João Lourenço anunciou ter tomado a iniciativa de propor uma revisão constitucional.

Um primeiro comentário que esta ação suscita é que o presidente angolano tem uma política corajosa enfrentando os vários desafios que lhe têm sido colocados: combate à corrupção, reforma económica, rapidez na reação à Covid-19. Neste momento, ainda não colhe os frutos desse enfrentamento determinado, e aí reside algum paradoxo, um presidente reformista arrisca-se a ser submerso pelas suas próprias reformas.

A presente proposta de revisão constitucional é minimalista, e assim foi assumido pelo governo. Nesse sentido, arrisca-se a criar expectativas na população que depois não serão satisfeitas. Contudo, representa um passo muito importante na discussão do modelo político angolano e o certo é que a discussão constitucional será mais importante mesmo que as efetivas alterações que no fim serão inseridas na Constituição.

O objetivo do presente texto é destacar e analisar as principais propostas de revisão constitucional na área da economia e finanças.

2-A proposta de lei de revisão constitucional na área económica e financeira

A primeira modificação proposta encontra-se no artigo 14.º da CRA, que diz respeito à propriedade privada. Introduz-se a expressão “promove[1]”, com a significação de ser função do Estado além de garantir e proteger a propriedade privada e livre iniciativa, também a promoção da iniciativa privada. É introduzido um comportamento positivo do Estado, o da promoção da livre iniciativa privada.

Mais à frente, é adicionado ao Artigo 37.º que regula o “Direito e limites da propriedade privada”, um novo número 4. Este número consagra a possibilidade de nacionalização em caso de “ponderosas razões de interesse nacional”. Também introduz o confisco enquanto medida sancionatória, sendo este permitido quando ocorra uma ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado.

Naturalmente, é no Título acerca da Organização Económica, Financeira e Fiscal que são acrescentadas algumas modificações na área económica. O artigo 92.º conterá novos números 2 e 3. A nova redação proposta para o n.º 2, pretende “clarificar o alcance e o sentido do princípio da propriedade comunitária, enquanto tipo de propriedade consagrado no artigo 14.º da Constituição, que define a natureza do sistema económico chamando à regulação do exercício deste tipo de propriedade as normas do direito consuetudinário que não contrariem o sistema económico, o regime social de mercado e os princípios fundamentais da Constituição”. Já o n.º 3 estabelece a existência legal do sector não estruturado da economia, i.e., refere-se à economia informal, apontando para a sua institucionalização progressiva.

Depois temos o artigo 100.º sobre o Banco Nacional de Angola (BNA). No número 1 desse artigo determina-se que o BNA será o “banco central e emissor da República de Angola” e terá como funções primordiais:  garantir a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegurar a estabilidade do sistema financeiro. Portanto, as funções do BNA são delimitadas ao combate à inflação e à estabilidade do sistema financeiro.

De seguida, no número 2 “consagra-se a nova natureza jurídica do BNA, enquanto entidade administrativa independente, de feição eminentemente reguladora, e sinaliza-se o conteúdo do princípio da independência deste tipo de entidades”. Fica doravante proibida “a transmissão de recomendações ou emissão de directivas aos órgãos dirigentes do BNA sobre a sua actividade, sua estrutura, funcionamento, tomada de decisão” acerca das prioridades a adotar na prossecução das atribuições constitucional e legalmente definidas, por parte do Poder Executivo ou de qualquer outra entidade pública.

Os números subsequentes do mesmo artigo determinam que: “O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional.” E estipulam um procedimento detalhado para essa nomeação. Há um dever de audição parlamentar, mas a decisão final é do Presidente da República.

Outra alteração diz respeito ao Orçamento Geral do Estado. No artigo 104.º propõe-se uma alteração “de modo a afastar uma ideia actual de que o orçamento das autarquias locais integra o OGE”. O OGE preverá as transferências a realizar para as autarquias, mas não as receitas e despesas das mesmas.

3-Análise e comentário das alterações propostas à Constituição económica e financeira

Verifica-se que os artigos a alterar são os 14.º, 37.º, 92.º, 100.º e 104.º

ARTIGO 14.º

  • Em relação ao artigo 14.º passará a incumbir ao Estado promover a iniciativa privada. Além do aspeto retórico de tal afirmação, em termos práticos, esta norma permite que o Estado auxilie o sector privado de forma consistente, por exemplo, ampliando as zonas francas e benefícios fiscais para os privados, subsidiando empresas privadas, criando parcerias com o sector privado. O Estado deverá adoptar uma atitude positiva e activa face ao sector privado e não meramente passiva. É um bom sinal para o mercado.

ARTIGO 37.º

  • O artigo 37.º tem um carácter diferente e constitui a única modificação constitucional diretamente relacionada com o combate à corrupção. Face a uma lacuna constitucional, ficarão agora estabelecidos os princípios gerais em que se podem efetuar nacionalizações e confiscos. Esta última parte é fundamental para concretizar a recuperação de ativos que está em curso em que se torna muito difícil perceber o enquadramento legal.

Agora fica claro que o Estado pode confiscar bens quando tenha havido uma ofensa grave às leis que protegem os seus interesses económicos. Em linguagem simples, fica agora bem esclarecido que aqueles que se tenham locupletado à custa dos fundos públicos podem ficar sem esses bens, não havendo necessidade de um processo criminal transitado em julgado, mas apenas a conclusão que realizaram uma ofensa grave às leis que garantem os interesses económicos do Estado. Esta norma é de aplaudir no presente contexto de combate à corrupção.

ARTIGO 92.º

  • Se a promoção da iniciativa privada e a agilização da recuperação de ativos obtidos nas atividades corruptas são medidas que merecem elogio, mais dúvidas levanta a norma do artigo 92.º referente à economia informal. Mais do que “o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia” (redação proposta do artigo 92.º, n.º3), que significa essencialmente pagamento de impostos e taxas, o que a Constituição deveria propugnar era a adoção de políticas de apoio ao sector informal da economia, que é um verdadeiro amortecedor da falta de  trabalho e  um incubador de potenciais pequenas e médias empresas de sucesso.[2]  

Já se salientou que na África Austral, o sector económico informal constitui um elemento crucial de sobrevivência, dado que 72% de todo o emprego não agrícola reside no sector informal e a maioria dos novos postos de trabalho aparecem aí. A economia informal fornece rendimento e emprego a todas as pessoas, independentemente da sua escolaridade ou experiência. Em Angola, a maioria das pessoas empregadas está igualmente envolvida na economia informal, pois de outro modo não seria capaz de suportar todas as suas despesas. Nessa medida, há que ser muito cauteloso em estabelecer regras sobre a economia informal pois esta auxilia o governo angolano.[3]

ARTIGO 100.º

  • Em termos de opinião pública o cerne da modificação constitucional em termos económico-financeiros estará no artigo 100.º referente ao BNA. Este artigo contém três grandes linhas:
  • O BNA é o “garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro”. Assim, são determinadas precisamente as funções do BNA ligadas à inflação e sistema financeiro;
  • O BNA torna-se uma autoridade administrativa independente e por isso “independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos”. É a famosa independência do banco central, que atualmente, é defendida pela maior parte da doutrina económica.
  • O Governador do BNA é nomeado pelo Presidente da República, ouvida a Assembleia Nacional. Note-se que a Assembleia Nacional não tem direito de veto, mas de audição.

A consagração da independência do banco central corresponde à moderna tendência dominante na doutrina económica. Os argumentos a favor da independência do banco central resumem-se facilmente. Considera-se que os governos tendem a tomar decisões erradas sobre a política monetária. Em particular, são influenciados por considerações políticas de curto prazo. Antes de uma eleição, a tentação é o governo cortar as taxas de juros, tornando os ciclos económicos de expansão e retração mais prováveis. Assim, se um governo tem um histórico de permitir a inflação, as expectativas de inflação começam a aumentar, tornando-a mais provável.

Um banco central independente pode ter mais credibilidade e inspirar mais confiança. Ter mais confiança no banco central ajuda a reduzir as expectativas inflacionárias. Consequentemente, torna-se mais fácil manter a inflação baixa. Há assim a tentativa de introduzir credibilidade adicional na política monetária e acentuar o combate à inflação. Note-se que a inflação é um mal que perdura na economia angolana há demasiado tempo.

Esta medida está correta e deve ser considerada positiva.

ARTIGO 104.º

  • A última alteração diz respeito à explicitação da diferenciação entre o Orçamento Geral do Estado e as Autarquias, fazendo parte da preparação material para instalação das autarquias.

Conclusão

Minimalista, a proposta revisão constitucional na área da economia e finanças visa reforçar os sinais da economia de mercado e estabilidade macroeconómica, sendo de destacar como elemento essencial desta lei a consagração da independência do banco central e o seu foco no combate à inflação.

*****

Anexo: Nova redação proposta das normas referentes ao sector económico e financeiro

“Artigo 14.º

(Propriedade privada e livre iniciativa)

O Estado respeita, e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e promove a livre iniciativa económica e empresarial, exercida nos termos da Constituição e da Lei”.

“Artigo 37.º

(Direito e limites da propriedade privada)

1. […].

2. […].

3. […].

4. Lei própria define as condições em que pode ocorrer a nacionalização de bens privados por ponderosas razões de interesse nacional e do confisco por ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado”.

“Artigo 92.º

(Sectores Económicos)

1. […].

2. O Estado reconhece e protege o direito de propriedade comunitária para o uso e fruição de meios de produção pelas comunidades rurais e tradicionais, nos termos da Constituição e da lei.

3. Lei própria estabelece os princípios e regras a que fica sujeito o sector não estruturado da economia, visando o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia”.

“Artigo 100.º

(Banco Nacional de Angola)

1. O Banco Nacional de Angola, como banco central e emissor da República de Angola, garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro, nos termos da Constituição e da lei.

2. Enquanto autoridade administrativa independente, o Banco Nacional de Angola é independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos a si acometidos, nos termos da Constituição e da lei.

3. O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional, competente em razão da matéria, nos termos da Constituição e da lei, observando-se, para o efeito, o seguinte procedimento:

a) a audição é desencadeada por solicitação do Presidente da República;

b) a audição à entidade proposta termina com a votação do relatório nos termos da lei;

c) Cabe ao Presidente da República a decisão final em relação à nomeação da entidade proposta.

4. O Governador do Banco Nacional de Angola envia ao Presidente da República e à Assembleia Nacional, um relatório sobre a evolução dos indicadores de política monetária, sem prejuízo das regras de sigilo bancário, cujo tratamento, para efeitos de controlo e fiscalização da Assembleia Nacional é assegurado nos termos da Constituição e da lei”.

“Artigo 104.º

(Orçamento Geral do Estado)

1. […].

2. O orçamento Geral do Estado é unitário, estima o nível de receitas a obter e fixa os limites de despesas autorizadas, em cada ano fiscal, para todos os serviços, institutos públicos, fundos autónomos e segurança social e deve ser elaborado de modo a que todas as despesas nele previstas estejam financiadas”.

3. O Orçamento Geral do Estado apresenta o relatório sobre a previsão de verbas a transferir para as autarquias locais, nos termos da lei.

4. A lei define as regras da elaboração, apresentação, adopção, execução, fiscalização e controlo do Orçamento Geral do Estado.

5. A execução do Orçamento Geral do Estado obedece aos princípios da transparência, responsabilização e da boa governação e é fiscalizada pela Assembleia Nacional e pelo Tribunal de Contas, nos termos e condições definidos por lei”.


[1] Todas as citações sem fonte específica mencionada são do Relatório de Fundamentação da Proposta de Lei de Revisão Constitucional 2021 tornada pública pelo Governo.

[2]  Alain de Janvry e Elisabeth Sadoulet, Development Economics, 2016, p. 19

[3]  Moiani Matondo, Em defesa das zungueiras e da economia informal, MakaAngola. https://www.makaangola.org/2020/04/em-defesa-das-zungueiras-e-da-economia-informal/

Proposta de um esquema-piloto de garantia de emprego em Angola

Introdução: a magnitude do problema do desemprego e a necessidade de uma resposta governamental sistemática

Em Angola, no terceiro trimestre de 2020, a taxa de desemprego situou-se nos 34%[1]. Este número corresponde a um aumento em cadeia (i.e., em relação ao trimestre anterior) de 9,9% e homólogo (referente ao mesmo período de 2019) na ordem dos 22%[2]. Face a estes dados, qualquer que seja a perspetiva adotada, é fácil verificar que o desemprego é um problema fundamental e grave com que se deparam a economia e sociedades angolanas.

Fig. n.º 1- Evolução recente da taxa de desemprego em Angola (2017-2020). Fonte: INE-Angola

Até ao momento, o governo reconhece esse problema, mas aposta na retoma da economia ao nível do setor privado, para resolver a questão, acreditando que o Estado pouco pode fazer para enfrentar a situação. A solução está no crescimento económico e no dinamismo empresarial, afirma o executivo. O Presidente da República, João Lourenço, foi claro no último discurso do Estado da Nação quando afirmou: “prioridade da nossa agenda é: trabalhar para a reanimação e diversificação da economia, aumentar a produção nacional de bens e de serviços básicos, aumentar o leque de produtos exportáveis e aumentar a oferta de postos de trabalho.” João Lourenço realiza uma ligação indelével entre a diversificação da economia e o aumento da produção nacional e a descida do desemprego.

No fundo, o governo estriba-se no tradicional postulado enunciado pelo economista norte-americano Arthur Okun, segundo o qual existiria uma relação linear entre as mudanças na taxa de desemprego e o crescimento do produto nacional bruto: a cada crescimento real do PIB em dois por cento corresponderia uma diminuição do desemprego em um por cento[3]. A verdade é que vários estudos empíricos não confirmam em absoluto esta relação empírica, e nos anos mais recentes em vários países do mundo, um aumento do PIB não tem levado a um decréscimo acentuado do desemprego, enquanto, noutros casos tem, portanto, é difícil estabelecer uma relação permanente entre desemprego e PIB. A isto acresce que a magnitude do desemprego em Angola implicaria que para diminuir a taxa para os, ainda assustadores, 24%, o PIB teria de crescer 15%…

A questão fundamental é que o problema do desemprego em Angola não é conjuntural, mas estrutural, isto quer dizer que está intimamente conectado às deficiências permanentes da economia angolana e não tem uma mera dependência do ciclo económico.

O facto de o problema do desemprego ser estrutural e duma retoma económica para os anos 2021 e seguintes apenas se situar entre os 2 a 4% do PIB[4], de acordo com as presentes projeções do FMI, implicam que tal animação da economia venha a ter pouco impacto no emprego.

Neste sentido, é fundamental entender-se que a solução do problema do desemprego não depende apenas do mercado e da retoma económica, exige, pelo menos no curto prazo, a intervenção musculada do Estado. É neste contexto que surge esta proposta de experiência piloto.

Fig. n.º 2- Projeções de crescimento do PIB Angola (2021-2024). Fonte: FMI

Uma experiência-piloto de garantia de emprego em Angola

Partindo da primeira experiência de garantia universal de emprego do mundo, projetada por investigadores da Universidade de Oxford e administrada pelo Serviço Público de Emprego Austríaco, que tem lugar na cidade austríaca de Marienthal[5], aplicar-se-ia a mesma metodologia a uma localidade específica em Angola, possivelmente, a um município concreto em Luanda.

Segundo este regime a implementar a título experimental num município de Luanda seria oferecida uma garantia universal de um emprego devidamente remunerado a todos os residentes que estão desempregados há mais de 12 meses.

Além de receber formação e assistência para conseguir trabalho, os participantes teriam garantido o trabalho remunerado, devendo o Estado subsidiar 100% do salário numa empresa privada ou empregar participantes no setor público ou ainda apoiar a criação de uma microempresa. Todos os participantes receberiam pelo menos um salário mínimo fixado de acordo com o Decreto Presidencial que regula a matéria adequado a uma vida com dignidade.

O esquema-piloto funcionaria da seguinte forma:

1) Todos os residentes do município de Luanda escolhidos, que estejam desempregados há um ano ou mais, serão convidados incondicionalmente a participar no esquema-piloto.

2) Os participantes começam com um curso preparatório de dois meses, que inclui formação individual e aconselhamento.

3) De seguida, os participantes serão ajudados a encontrar um emprego adequado e subsidiado no setor privado ou apoiados para criar um emprego com base nas suas competências e conhecimento das necessidades de sua comunidade ou ainda serão empregues pelo Estado.

4) A garantia de emprego assegura três anos de trabalho para todos os desempregados de longa duração, embora os participantes possam optar pelo trabalho a tempo parcial.

Fig. n.º 3- Descrição sumária do esquema-piloto de emprego

Além de eliminar o desemprego de longa duração na região, o programa visa oferecer a todos os participantes um trabalho útil, seja na pavimentação de ruas, em pequenas reparações comunitárias, numa creche, na criação de um café comunitário, no acesso a água e energia, saneamento básico, na reconstrução de uma casa, ou em algum outro campo.

O esquema-piloto é projetado para testar os resultados e eficácia da política e ser depois estendido a mais áreas do país.

Financiamento

“No âmbito do processo de recuperação de ativos, o Estado já recuperou bens imóveis e dinheiro no valor de USD 4.904.007.841,82, sendo USD 2.709.007.842,82 em dinheiro e USD 2.194.999.999,00 em bens imóveis, fábricas, terminais portuários, edifícios de escritório, edifícios de habitação, estações de rádio e televisão, unidades gráficas, estabelecimentos comerciais e outros.”

Assim, falou o Presidente da República no mais recente discurso do estado da Nação acima mencionado.

Ora, nada melhor do que destinar uma parte destas verbas recuperadas ao fomento do emprego. Consequentemente, utilizar-se-ia um montante daí retirado para se criar um Fundo de Desenvolvimento do Emprego que chamaríamos simplificadamente, por causa da origem dos montantes, “Fundo dos Marimbondos”. Este Fundo receberia parte dos ativos recuperados e iria usá-los para financiar iniciativas de fomento de emprego como a aqui apresentada. Dinheiro retirado no passado da economia retornaria a esta para fomentar trabalho para as novas gerações.

Com este modelo de autofinanciamento ficariam arredadas eventuais constrições impostas pelo Fundo Monetário Internacional ou a necessidades de contenção orçamental. O fomento do emprego teria fundos próprios resultantes da luta contra a corrupção. Não parece existir melhor destino do dinheiro que esse.

Fig. n.º 4- Financiamento do esquema-piloto


[1] https://www.ine.gov.ao/

[2] https://www.ine.gov.ao/images/Idndicador_IEA_III_Trimestre_2020.PNG

[3] Arthur M. Okun, The Political Economy of Prosperity (Washington, D.C.: Brookings Institution, 1970)

[4] https://www.imf.org/en/Countries/AGO#countrydata

[5] https://www.ox.ac.uk/news/2020-11-02-world-s-first-universal-jobs-guarantee-experiment-starts-austria

NACIONALIZAÇÃO: A SOLUÇÃO POLÍTICA PARA OS PROBLEMAS ECONÓMICOS GERADOS PELOS “CONGELAMENTO” DAS EMPRESAS DE ISABEL DOS SANTOS EM ANGOLA E PORTUGAL (EFACEC E CANDANDO)

Nota prévia:  
Este texto é escrito apenas com base da problemática ligada às empresas nele citadas. Não toma, nem tem de tomar, qualquer posição sobre os assuntos eventualmente criminais em causa, adotando as regras da Presunção de Inocência claramente estabelecidas na Declaração Universal dos Direitos do Homem e nas Constituições Angolana e Portuguesa. Também não é um artigo jurídico, por isso, apenas aflora algumas questões jurídicas que têm de ser aprofundadas em sede própria.

*

Resumo: Os problemas económicos criados nas empresas detidas por Isabel dos Santos, designadamente, a EFACEC (Portugal) e o CANDANDO (Angola), atendendo à normal morosidade dos procedimentos legais, devem ser rapidamente resolvidos através da nacionalização dessas empresas com uma indemnização sujeita a condição suspensiva.

*

Têm sido amplamente divulgados na comunicação social angolana e portuguesa os “congelamentos” de participações sociais de Isabel dos Santos em variadas empresas. Vamos utilizar a expressão “congelamento” que não tem precisão legal, mas traduz em linguagem simples as várias medidas cautelares no âmbito dos processos que correm contra Isabel dos Santos. De facto, em Angola o que sucedeu foi um arresto no âmbito de uma providência cautelar civil e em Portugal parece ser uma apreensão dentro dum processo criminal.

O relevante destas duas medidas é que não se tratam, como muitas vezes é descrito, de um confisco ou perda a favor do Estado angolano. Na verdade, estes (arresto e apreensão) são instrumentos provisórios que só se tornarão definitivos ao fim do trânsito em julgado de qualquer decisão judicial contrária a Isabel dos Santos.

Figura n.º 1- A marcha dos processos legais. As decisões provisórias só são definitivas no final

É sabido que qualquer processo ordinário, seja cível, ou sobretudo criminal, com a complexidade daqueles que ocorrerão, demorará vários anos a ser decidido com trânsito em julgado.

Entretanto, as empresas “congeladas” ficarão numa situação periclitante. Obviamente, que a lei tem mecanismos, e pelo menos em Angola, eles foram usados, para congelar as participações sociais e manter as empresas em funcionamento[1].

Contudo, no caso das duas empresas que nos vamos referir, e possivelmente, noutros casos que ainda não vieram a público, o facto é que a sobrevivência das empresas estava ligada a determinados negócios e articulações financeiras realizados dentro do universo empresarial de Isabel dos Santos.

No caso da EFACEC, é notório que a sua aquisição obedeceu a uma estratégia de integração vertical com a construção de barragens de grande vulto em Angola, cuja adjudicação tinha sido realizada a empresas nas quais Isabel dos Santos participava, mas cuja intervenção da filha do antigo Presidente da República de Angola agora cessou.

Naquilo que diz respeito ao CANDANDO, a verdade é que se trata de um investimento ainda no seu período de arranque, não estando próximo da maturidade,  uma vez que foi inaugurado em 2017, pelo que  estará ainda numa fase muito longínqua do seu break-even point, portanto, necessitará de aportes de capital por parte dos sócios para manter o funcionamento.

Figura n.º 2- Debilidades da EFACEC e CANDANDO

Estes dois pontos implicam que a EFACEC tenha perdido interesse estratégico que estava subjacente à sua compra, e que sendo uma empresa que em 2015 se encontrava em condições financeiras difíceis, malgrado a sua grande capacidade técnica[2], poderá muito facilmente sucumbir, face à impossibilidade de ação da sua acionista maioritária. Muito provavelmente, a EFACEC não terá capacidade financeira para sobreviver a um período prolongado de “congelamento”.

A NACIONALIZAÇÃO DA EFACEC

Comecemos por analisar a situação presente da EFACEC. Desde logo, a análise da sua página corporativa [3]confronta-nos com o facto de não haver Relatório e Contas de 2019. Os últimos números disponíveis são de 2018. Obviamente, desde esse momento muitos factos supervenientes que afetaram a estabilidade da empresa ocorreram, pelo que não é relevante basear uma análise nessas contas. Talvez o melhor índice da situação sejam as declarações recentes do seu CEO Ângelo Ramalho. Este afirmou literalmente: “Não temos nem linhas de financiamento nem a trade finance [as garantias bancárias essenciais na vida de uma empresa de projetos] necessária ao desenvolvimento das nossas operações”, acrescentando que a saída de Isabel dos Santos da Efacec “é uma urgência absoluta” e que a empresa está a ser asfixiada pela banca[4].

Se estas declarações demonstram a situação de emergência na EFACEC, não clarificam o quadro todo.

Na verdade, em 2015, quando Isabel dos Santos surgiu para a compra da EFACEC, foi saudada como salvadora da empresa. Todos reconheciam a capacidade técnica e a história exigente da EFACEC, mas a realidade é que a empresa se encontrava nessa época numa situação difícil face à banca portuguesa.

Isabel dos Santos trazia uma vantagem dupla: resolvia as questões com a banca portuguesa e promoveria novos contratos generosos em Angola na implementação de barragens. De uma só vez, relançava a EFACEC. Essa imagem preponderou sobre outros aspetos controversos ligados à operação de compra e venda da companhia e fez que a banca portuguesa alinhasse com a filha do Presidente da República de Angola.

Hoje chegou-se à conclusão que a entrada de Isabel dos Santos acabou por trazer mais problemas do que resolveu e a EFACEC chegou a um impasse pior do que aquele que estava em 2015.

Portanto, na EFACEC não há apenas o problema de Isabel dos Santos, há o problema de raiz da sua reestruturação para a tornar uma empresa competitiva em qualquer situação.

Do ponto de vista prático, não é possível aguardar pela finalização dos processos judiciais referentes a Isabel dos Santos para resolver a situação acionista da EFACEC. Também não foi exequível chegar a um acordo para comprar as ações desta na empresa e deixá-la seguir o seu caminho, enquanto se assegurava a viabilização da empresa. Na verdade, a solução é complicada atendendo à participação que o Estado Angolano detém indiretamente na companhia, o que parece ser esquecido nalgumas negociações.

Nessa medida, no curto prazo, além de deixar a empresa chegar à insolvência, só há uma solução que é a nacionalização da companhia.

O Estado português deve intervir e nacionalizar a companhia, assegurando a sua reestruturação e financiamento.

Atualmente, no âmbito das várias medidas interventivas na economia que os Estados têm tomado devido à pandemia Covid-19, não se trata de uma operação irrealista, e para a qual provavelmente haverá fundos da União Europeia nos pacotes de negociação em curso.

Do ponto de vista do interesse público, uma nacionalização e reestruturação para posterior venda é a medida menos má, pois assegura a viabilização de uma empresa considerada estratégica em Portugal.

Figura n.º 3- Razões para a nacionalização da EFACEC

Não se vê que a proteção dos direitos de propriedade de Isabel dos Santos, garantidos em termos constitucionais (artigo 62.º da Constituição) seja absoluta[5]. Na verdade, os direitos de propriedade estão em concorrência com outros interesses e direitos quer do Estado, quer dos trabalhadores. Num equilíbrio proporcional é possível estabelecer uma concordância prática entre os vários direitos fundamentais em causa, bem como a relevância do interesse nacional, sendo perfeitamente enquadrável nas normas constitucionais a referida nacionalização[6]. A doutrina e jurisprudência portuguesas são bastante consensuais neste âmbito, admitindo a necessidade de restringir e estabelecer a concordância prática entre direitos fundamentais.

Naturalmente, que a nacionalização impõe, regra geral, uma indemnização ao titular privado das ações[7].

Neste caso, concreto, Isabel dos Santos não foi condenada em nenhum processo judicial, mas por outro lado, a existência dos processos criminais que são públicos e notórios não justifica estar a conceder-lhe de imediato uma indemnização.

Assim, a solução é conceder-lhe uma indemnização sujeita a condição suspensiva[8]. Isto quer dizer que na decisão de nacionalização ficaria arbitrada uma indemnização a Isabel dos Santos, mas esta ficava suspensa e só seria paga caso Isabel dos Santos não fosse condenada nos processos que deram origem ao “congelamento” das participações sociais na EFACEC.

Figura nº 4- Nacionalização e indemnização na EFACEC

Em relação à participação do Estado Angolano na EFACEC, a solução teria de ser do foro diplomático, eventualmente ficando Angola também com um interesse na empresa e voltando a fazer negócios com esta com vista às suas necessidades vastas de equipamento elétrico.

Só as dívidas de Isabel dos Santos aos bancos privados por conta da compra da EFACEC ficariam de fora deste modelo. Este assunto necessariamente tem de ser resolvido apenas e só entre as partes privadas.

A NACIONALIZAÇÃO DO CANDANDO

O CANDANDO é a rede de hipermercados que Isabel dos Santos abriu em Angola a partir de 2017. As participações de Isabel dos Santos que domina o CANDANDO foram “congeladas” pela justiça angolana num arresto decretado em Dezembro de 2019. Neste caso, não se trata de uma empresa antiga com provas dadas, mas de uma nova empresa com impacto económico e social muito grande em Angola.

Contudo, a mesma debilidade encontrada na EFACEC resultante do “congelamento” das ações de Isabel dos Santos está a acontecer. No início de junho, a empresa chegou mesmo a anunciar o despedimento de 1000 trabalhadores e o encerramento de algumas lojas[9]. No final, a administração do CANDANDO aparentemente recuou na decisão depois de uma reunião com o ministro do Comércio e Indústria de Angola, que terá prometido uma injeção de fundos do Estado nos hipermercados.

Esta solução de compromisso acaba por ser um pouco irracional do ponto de vista económico, pois, por um lado arrestam-se bens de Isabel dos Santos, mas por outro lado o mesmo Estado que vai arrestar os bens, vai financiar esses bens. De certa forma, “tira com uma mão e dá com outra”. Percebe-se naturalmente a urgência da intervenção do governo perante a decisão de enviar 1000 pessoas para o desemprego, numa economia com altos índices de desemprego e numa situação recessiva. No entanto, o governo angolano ficou refém duma situação que não controla, tornando-se efetivamente acionista/financiador do CANDANDO.

Figura n.º 5- Razões para nacionalizar o CANDANDO

Face a esta situação a solução é a nacionalização da empresa CANDANDO para posterior privatização. Sendo certo que as considerações jurídicas que se realizaram a propósito de Portugal são as mesmas que se podem realizar a propósito de Angola[10]. Note-se, contudo, que é necessário distinguir uma nacionalização de uma expropriação por utilidade pública, pois no caso desta última, em Angola, só há efeitos produzidos quando é paga a indemnização. Já quanto à nacionalização, que é implicitamente admitida pelo artigo 97.º da Constituição, não se verifica essa condição. Na verdade, a doutrina dominante no direito internacional entende que existe uma distinção material entre nacionalização e expropriação: a nacionalização é um instituto de carácter excecional, que assenta na ideia que uma determinada atividade económica deve pertencer à coletividade e, por isso, ser por ela exercida no interesse público. Daí que se afirme em regra que quanto a ela, não vale o princípio da indemnização integral. Justifica-se que por razões de “soberania”, de “alto interesse nacional”, de “independência” ou de “integridade da pátria”, se paguem indemnizações parciais ou mesmo que, nalgum caso, se nacionalize sem pagamento de indemnização. A expropriação, essa, é um instituto comum ou ordinário, que implica sempre ainda segundo a mesma doutrina – a fixação de uma indemnização total e prévia da transferência da propriedade[11].

Qualquer outra solução, que não a nacionalização, enreda o governo em negociações diretas ou indiretas com Isabel dos Santos, o que, face aos processos que apresentou contra ela, lhe retira toda a credibilidade e margem de manobra. É uma situação impossível para o governo de Angola, por consequência, a única solução é a nacionalização, ficando qualquer indemnização sujeita a condição suspensiva, só sendo paga se no final Isabel dos Santos não for condenada.

CONCLUSÕES

Do ponto de vista técnico não se vislumbra nenhuma outra forma expedita e razoável de salvar e viabilizar as empresas EFACEC e CANDANDO que não seja a sua nacionalização imediata com indemnização sujeita a condição suspensiva.


[1] Tem interesse o Comunicado da Procuradoria Geral Angolana sobre o tema: PGR de Angola diz que eventual falência de empresas de Isabel dos Santos não é responsabilidade sua. Disponível em https://executivedigest.sapo.pt/pgr-de-angola-diz-que-eventual-falencia-de-empresas-de-isabel-dos-santos-nao-e-responsabilidade-sua/

[2]https://expresso.pt/economia/2015-06-07-Com-Isabel-dos-Santos-a-Efacec-aumenta-expressivamente-a-capacidade-de-estar-nos-grandes-projetos-de-Africa

[3] https://www.efacec.pt/

[4] https://observador.pt/especiais/saida-de-isabel-dos-santos-da-efacec-e-uma-urgencia-absoluta-empresa-esta-a-ser-asfixiada-pela-banca/

[5] Artigo 62.º da Constituição Portuguesa: Direito de propriedade privada

1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.

2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.

Sobre a nacionalização ver também artigo

 162.º l) Reserva relativa de competência [Assembleia da República]

Meios e formas de intervenção, expropriação, nacionalização e privatização dos meios de produção e solos por motivo de interesse público, bem como critérios de fixação, naqueles casos, de indemnizações

[6] Sobre a concorrência e concurso de direitos fundamentais na Constituição ver

Gomes Canotilho, José Joaquim, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Coimbra, Almedina, 6.ª edição, págs. 1247, 1255, 1257 e Gomes Canotilho, J. J. e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa. Anotada.”, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 453 a 457, 463, 464, 467.

[7] Veremos mais abaixo algumas notas sobre a distinção entre expropriação e nacionalização que tem relevo prático em relação a Angola.

[8] Artigo 270.º do Código Civil:

(Noção de condição)

As partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva.

[9] https://www.jornaldenegocios.pt/economia/mundo/africa/detalhe/isabel-dos-santos-fecha-metade-dos-hipermercados-candando

[10] Artigo 14.º da Constituição: (Propriedade privada e livre iniciativa)

O Estado respeita e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e a livre iniciativa económica e empresarial exercida nos termos da Constituição e da lei.

Artigo 37.º da Constituição: (Direito de propriedade, requisição e expropriação)

1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei.

2. O Estado respeita e protege a propriedade e demais direitos reais das pessoas singulares, colectivas e das comunidades locais, só sendo permitida a requisição civil temporária e a expropriação por utilidade pública, mediante justa e pronta indemnização, nos termos da Constituição e da lei.

3. O pagamento da indemnização a que se refere o número anterior é condição de eficácia da expropriação.

Artigo 97.º da Constituição: (Irreversibilidade das nacionalizações e dos confiscos)

São considerados válidos e irreversíveis todos efeitos jurídicos dos actos de nacionalização e confisco praticados ao abrigo da lei competente, sem prejuízo do disposto em legislação específica sobre reprivatizações.

[11] Gaspar Ariño Ortiz, “La indemnizacion en las nacionalizaciones”, in Revista de Administración Pública, n.os 100-102, 1983, vol. III, pp. 2789 e seguintes.