Prospectivas de Análise Económica

Angola: A retirada dos subsídios aos combustíveis e a transformação da legitimidade política

Rui Verde

  1. A diminuição das receitas petrolíferas no OGE e a necessidade de financiamento do Estado

Seguindo as orientações do Fundo Monetário Internacional (FMI), o governo angolano está a retirar gradualmente os subsídios aos combustíveis. O FMI defende essa posição porque acredita que essa medida vai gerar poupanças significativas para o governo e melhorar a sustentabilidade fiscal do Estado, uma vez que os subsídios aos combustíveis representam um custo elevado para o Orçamento Geral do Estado (OGE), tendo chegado a 9,1 biliões de kwanzas entre 2021 e 2024. Além disso, há preocupações sobre fugas de combustível para países vizinhos e distorções no mercado interno[1].

Em recente entrevista à LUSA, a ministra das finanças angolana, Vera Daves, confirmou que serão feitos mais cortes nos subsídios aos combustíveis este ano, assumindo que esse é um “caminho que deve continuar”, embora a velocidade dependa de diversos fatores[2].

A verdade é que o OGE de Angola enfrenta desafios cada vez maiores devido à sua dependência histórica das receitas petrolíferas, um fator que compromete a estabilidade financeira do país. Durante décadas, o petróleo representou a principal fonte de arrecadação, financiando investimentos em infraestrutura, saúde, educação e outros setores fundamentais. No entanto, a volatilidade dos preços internacionais do petróleo tornou evidente a necessidade de diversificar as receitas públicas, sobretudo a partir de 2014.

Por isso, nos últimos anos, o governo angolano tem adotado medidas de reforma tributária e fiscal, buscando fortalecer a arrecadação não petrolífera. A criação de impostos específicos, a modernização dos sistemas de cobrança e os incentivos à formalização de empresas refletiram uma tentativa de reduzir a dependência do setor energético. Apesar desses esforços, o déficit orçamental e a pressão sobre as contas públicas continuam a ser desafios preocupantes, como demonstram os atrasos que por vezes acontecem no pagamento dos salários dos trabalhadores do Estado, e os atrasos generalizados no pagamento de fornecimentos e serviços[3].

O resultado prático é que o Estado necessita de cobrar impostos à população e cortar gastos irracionais do ponto de vista económico[4], como é o caso do subsídio aos combustíveis. Este facto modifica a relação pré-existente entre Estado e povo. No passado, o Estado não precisava do povo para se financiar, agora precisa.

 Na realidade, já há em Angola, cerca de 5.205.380 contribuintes individuais e 320.440 contribuintes individuais com atividade comercial, tal significando que mais de 5,5 milhões de pessoas estão registadas para pagar impostos no país[5]. Se é um número assinalável, também é verdade que considerando que existem cerca de 14 milhões de pessoas com potencial para ser contribuintes, havendo ainda uma grande margem para alargar a base tributária. Em simultâneo, em 2022, Angola arrecadou 4.638 mil milhões de kwanzas em impostos não petrolíferos. A província de Luanda foi responsável por 92,2% dessa receita. No primeiro trimestre de 2023, a arrecadação não petrolífera foi de 976 mil milhões de kwanzas, um crescimento de 13% em relação ao mesmo período do ano anterior.[6][7] O ponto essencial é que a arrecadação não petrolífera em Angola tem mostrado um crescimento significativo nos últimos anos[8].

2-A necessidade de impostos e cortes de subsídios e a mudança do paradigma da legitimidade política

A legitimidade política do sistema de governo angolano residia desde 2002 em dois fatores, a vitória na guerra civil e o acesso direto aos proventos do petróleo.[9] Em termos reais, o povo não fazia parte da equação da legitimação do poder. José Eduardo dos Santos podia governar sem o povo e sem precisar dele. Bastava-lhe a vitória militar e o dinheiro do petróleo. As legitimações formais do poder, como as eleições de 2008 ou a Constituição de 2010 eram isso mesmo, meros atos validatórios duma realidade anterior que se impunha.

Juridicamente, o governo assentava na soberania popular e na Constituição, e todos o atos jurídico-formais iam sendo tomados ao longo do tempo com válido fundamento legal: eleições, Constituição, legislação, votações no parlamento, etc. Contudo, havia a noção que o sistema constitucional e de governo estava assente num pacto anterior em que a vitória na guerra e o acesso aos fundos do petróleo davam o poder ao governo que em troca garantia o desenvolvimento do país e a evolução da sociedade. É neste contexto que se percebe a racionalidade política do subsídio aos combustíveis.

A questão é que desde 2014, quando o preço do petróleo desceu enormemente e Angola entrou em quase dez anos de crise, que esta legitimidade política foi destruída. Por um lado, a geração e as recordações da guerra foram diminuindo. A larga percentagem da população angolana nasceu depois do final da guerra civil (2002). Cerca de 65% dos angolanos (mais de 2/3) têm menos de 25 anos, o que quer dizer que 21 milhões de angolanos estão abaixo dessa faixa etária. Tal significa que a legitimidade da guerra já lhes diz pouco ou nada, não reconhecendo ao vitorioso qualquer direito ao exercício do poder.

A isto acresce que a necessidade de ir buscar receitas ao povo e retirar-lhe subsídios muda o pacto social de 2002, se o poder político precisa do povo, então o povo vai participar no poder político. Não há volta a dar a esta equação que se tem afirmado ao longo da história.

O pagamento de impostos tem sido historicamente um fator determinante na formação de sistemas políticos e na consolidação de direitos democráticos. Na Inglaterra medieval, a necessidade de arrecadação fiscal levou à criação de instituições como o Parlamento, onde os representantes da nobreza e dos burgueses discutiam os pedidos do rei de dinheiro para pagar casamentos reais ou guerras. A Magna Carta de 1215 foi um marco ao estabelecer que a tributação deveria contar com algum nível de consentimento dos súbditos, reforçando a ideia de que a autoridade governamental não poderia impor impostos arbitrários sem representação. Esse princípio evoluiu ao longo dos séculos, influenciando diretamente o desenvolvimento do parlamentarismo moderno[10].

No contexto da democracia, o conceito de “sem representação não há tributação”, sem representação” tornou-se central. A Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra consolidou o Parlamento como um órgão fundamental na governação, restringindo os poderes absolutos do monarca e reforçando o papel dos cidadãos na tomada de decisões fiscais. A ideia de que os impostos deveriam ser debatidos e legitimados por representantes eleitos ajudou a moldar sistemas democráticos na Europa e na América do Norte. À medida que as nações buscavam maior participação popular, o controlo sobre tributos tornou-se um mecanismo crucial para definir os direitos dos cidadãos e fortalecer a democracia representativa.

A relação entre tributação e independência tornou-se especialmente evidente na Revolução Americana (1775-1783). Os colonos britânicos na América rejeitaram os impostos sem sua participação direta nas decisões do Parlamento britânico. Legislação como o Stamp Act de 1765 e o Tea Act de 1773 foram vistos como violações da autonomia colonial, levando a protestos como a Boston Tea Party. A recusa em aceitar a tributação sem representação resultou no movimento revolucionário que culminou na independência dos Estados Unidos, consagrando a ideia de que a legitimidade de um governo depende da participação dos cidadãos na definição das políticas fiscais.

Assim, ao longo da história, o pagamento de impostos não foi apenas um meio de financiar Estados e governos, mas também um catalisador para transformações políticas significativas. O parlamentarismo, a democracia e a independência de diversos países foram moldados por debates sobre quem deveria ter o poder de definir e arrecadar tributos. A luta pelo direito de influenciar políticas fiscais contribuiu para a criação de instituições que garantiram a participação popular efetiva no governo e base da sua legitimidade.

3-Conclusão: a transformação do paradigma da legitimidade política em Angola

A legitimidade política em Angola encontra-se num momento de transformação significativa. O conceito de “direito a governar”, anteriormente associado ao MPLA, perdeu a sua validade. Esta mudança reflete a crescente consciência da população angolana pagante de impostos (e não recipiente de subsídios de combustíveis) sobre o seu papel na sustentação do Estado, especialmente através do pagamento de impostos. A relação entre a contribuição fiscal dos cidadãos e a capacidade do Estado de funcionar tornou-se um elemento central na dinâmica política do país, ultrapassando ideologias e manifestações públicas.

Essa transformação marca uma nova fase na política angolana, onde o poder da população se manifesta de forma mais concreta. A voz dos cidadãos, fundamentada na sua contribuição económica, vai redefinir os arranjos políticos e a estrutura de governança. Este fenómeno destaca a importância de uma legitimidade que vai além da mera legalidade, exigindo uma conexão mais profunda entre os governantes e os governados.

As eleições de 2027 representarão um marco histórico nesse contexto. Pela primeira vez, a legitimidade política será debatida nas urnas, transcendendo a esfera jurídica. Este evento promete ser um ponto de inflexão na história política de Angola, onde o peso da transformação social e económica terá um impacto direto na escolha dos líderes e na definição do futuro do país.


[1] https://www.msn.com/pt-pt/pol%C3%ADtica/governo/governo-angolano-confirma-mais-cortes-nos-subs%C3%ADdios-aos-combust%C3%ADveis-este-ano/ar-AA1DGdmi

[2] https://www.angola24horas.com/sociedade/item/31715-governo-angolano-confirma-mais-cortes-nos-subsidios-aos-combustiveis

[3] https://observador.pt/2024/08/02/governo-angolano-diz-que-salarios-de-julho-dos-funcionarios-publicos-ja-foram-pagos/

[4] Temos dúvidas sobre este corte antes da reforma da estrutura de mercado dos combustíveis tornando-o num mercado concorrencial, mas é assunto que não discutimos aqui. Ver:  https://www.makaangola.org/2025/03/a-obsessao-do-fmi-cortar-subsidios-dos-combustiveis/

[5]https://www.ucm.minfin.gov.ao/cs/groups/public/documents/document/aw4x/mju4/~edisp/minfin1258130.pdf

[6] https://expansao.co.ao/angola/detalhe/luanda-arrecadou-922-do-total-da-receita-fiscal-nao-petrolifera-em-2022-60224.html

[7] https://forbesafricalusofona.com/impostos-arrecadados-pela-agt-em-angola-atingem-os-13-bilioes-kz-em-2022/

[8] https://www.opais.ao/economia/arrecadacao-nao-petrolifera-acima-dos-4-bilioes-de-kwanzas/

[9] Rui Verde, 2021, Angola at the Crossroads. Between Development and Kleptocracy, IB.Tauris. London.

[10] Rui Verde, 2000, The Harmonious Constitution. Judges and the Protection of Liberty. Newcastle upon Tyne.

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Quais as razões para a economia estar estagnada e a pobreza continuar?

Poderíamos começar a explicação utilizando um jargão académico, afirmando que estamos perante um ciclo de recessão e estagnação da economia que já vem desde 2014, e que estes ciclos têm explicação difícil e resolução ainda mais complicada, podendo-se prolongar duradouramente no tempo. Também, é possível afirmar algo de básico na economia, que é que as políticas económicas têm uma dilação acentuada, querendo isto dizer que demoram tempo a surtir efeito, pelo que medidas que João Lourenço tenha tomado recentemente, só daqui a um ano ou dois terão resultados práticos.