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O sistema eleitoral das Autarquias Locais em Angola e a inclusão do Poder Tradicional

Rui Verde

Nota prévia:

Tendo sido convidado e aceite participar no 1.º Congresso Angolano de Direito Eleitoral, realizado a 7 e 8 de Dezembro de 2023, por motivos técnicos não consegui apresentar a minha comunicação online. Fica aqui o texto da apresentação.

Especificidade da eleição local

Um sistema eleitoral local não tem necessariamente de replicar o sistema nacional. Apesar de em ambos os casos estarmos perante a escolha de representantes em processos democráticos, a natureza das eleições e dos órgãos é algo diferenciada.

Em muitos países, a taxa de abstenção nas eleições autárquicas é maior do que em eleições nacionais[1], além disso a governação local está dedicada a questões muitas vezes diferentes dos temas nacionais. Até certo ponto, embora isso seja disputável, sobretudo em países politicamente polarizados como Angola, entende-se que a política local será essencialmente não-ideológica. Nos Estados Unidos, durante muitos anos, os académicos argumentaram que havia pouca diferença entre as políticas dos responsáveis eleitos localmente pelos partidos Democrata ou Republicano porque a maioria das questões políticas locais eram técnicas e não políticas. Como escreveu Adrian, “não existe uma forma republicana de pavimentar uma rua e nenhuma forma democrática de instalar um esgoto.”[2] Há que referir, também, que a questão da representação das várias minorias e interesses se coloca com especial acuidade a nível local.[3]

É esta diferenciação estruturante que serve de ponto de partida para um curto comentário acerca do presente sistema eleitoral previsto para as Autarquias Locais em Angola, abordando dois temas em concreto. Em primeiro lugar, proceder-se-á a uma descrição sumária do actual modelo constitucional-legal de eleição autárquica, em segundo lugar, a uma breve reflexão sobre o papel do poder tradicional, atendendo à pressão demográfica indesmentível em Angola.

O poder local na Constituição

A sede primeira sobre o poder local no ordenamento jurídico angolano é a Constituição (CRA) que dispõe sobre o tema nos artigos 213.º e seguintes.

Aí se determina que as “ formas organizativas do Poder Local compreendem as Autarquias Locais, as instituições do Poder Tradicional” (art.º 213, n.º 2) e que as Autarquias Locais “ têm, de entre outras e nos termos da lei, atribuições nos domínios da educação, saúde, energias, águas, equipamento rural e urbano, património, cultura e ciência, transportes e comunicações, tempos livres e desportos, habitação, acção social, protecção civil, ambiente e saneamento básico, defesa do consumidor, promoção do desenvolvimento económico e social, ordenamento do território, polícia municipal, cooperação descentralizada e geminação.” (art.º 219.º), prevendo-se vários órgãos como uma “Assembleia dotada de poderes deliberativos, um Órgão Executivo Colegial e um Presidente da Autarquia” (art.º 220.º, n.º 1).

Em termos de sistema eleitoral, a Constituição estabelece que a “Assembleia é composta por representantes locais, eleitos por sufrágio universal, igual, livre, directo, secreto e periódico dos cidadãos eleitores na área da respectiva autarquia, segundo o sistema de representação proporcional.” (art.º 220,n.º 2), o “Órgão Executivo Colegial é constituído pelo seu Presidente e por Secretários por si nomeados, todos responsáveis perante a Assembleia da Autarquia.” (art.º 220, n.º 3) e o Presidente do Órgão Executivo da Autarquia é o cabeça da lista mais votada para a Assembleia. (art.º 220, n.º 4). Finalmente, no artigo 220, n.º 5 é definido que as “candidaturas para as eleições dos Órgãos das Autarquias podem ser apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, ou por grupos de cidadãos eleitores, nos termos da lei.”

Acerca das instituições do poder tradicional, a Constituição reconhece-as nos seus artigos 223.º e seguintes, remetendo para o direito consuetudinário a sua designação, e para a lei a sua articulação com as Autarquias Locais (art.º 225.º).

Consequentemente, existem, de acordo com a Constituição duas formas de Poder Local, as Autarquias Locais e o poder tradicional, cuja relação não é estabelecida na lei fundamental. Em relação às autarquias é desde logo definido o seu modo de eleição, o que não acontece, naturalmente, com o poder tradicional.

O sistema eleitoral das Autarquias Locais

Para a descrição do sistema eleitoral previsto para as Autarquias Locais, à Constituição, deve-se juntar a Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento das Autarquias Locais (Lei n.º 27/19 de 25 de Setembro), bem como a Lei Orgânica sobre as Eleições Autárquicas (Lei n.º 3/20, de 27 de Janeiro), a que nos ateremos nesta descrição.

Como mencionado, temos a considerar três órgãos nas autarquias: a assembleia, o executivo e o presidente. Atentando, ao município, a autarquia por excelência (artigo 218.º da CRA), verificamos que destes órgãos apenas dois, a assembleia e o presidente são eleitos. O executivo é designado pelo presidente da câmara. Na verdade, dispõe o artigo 29, n.º 2 da Lei de Organização e Funcionamento das Autarquias, que a Câmara Municipal (o executivo) é composta por Secretários nomeados pelo Presidente da Câmara, embora responsáveis perante a Assembleia Municipal. A exoneração de Secretários compete ao Presidente da Câmara (artigo art.º 31, n.º 1, b).

Assim, nos municípios há dois órgãos electivos e é sobre eles que nos debruçaremos. Trata-se da Assembleia Municipal e do Presidente da Câmara.

Os membros dos órgãos electivos são eleitos por sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico pelos cidadãos residentes na circunscrição local (artigo 15.º da Lei das Eleições Autárquicas-LEA). O artigo mais relevante da LEA é o artigo 40.º que define o modelo electivo em lista única para a Assembleia e a Presidência da Câmara, replicando o modelo constitucional nacional que tanta polémica tem levantado. De facto, nos termos desse normativo haverá apenas uma lista. Estabelece o artigo 40.º da LEA que as candidaturas a Presidente da Câmara são apresentadas no quadro da apresentação das listas de candidatos a membros da Assembleia da Autarquia Local (art.º 40, n.º1), sendo que o candidato a Presidente da Câmara é aquele que surgirá em primeiro lugar na lista de candidatos a membro da Assembleia (art.º 41, nº 2). Nestes termos em cada Boletim de Voto será impresso o nome quer do Partido, Coligação ou Grupo de Cidadãos concorrentes, quer o nome do candidato a Presidente da Câmara e respectiva fotografia tipo-passe, a sigla e os símbolos da candidatura (artigo 17.º da LEA). Será eleito Presidente da Câmara aquele que estiver na lista que obtiver o maior número de votos, ainda que não a maioria absoluta, ficando com o direito a nomear todo o executivo (artigo 21.º da LEA). Os membros da Assembleia Municipal são eleitos segundo o sistema de representação proporcional, seguindo-se o método de Hondt para conversão dos votos em mandatos de acordo com as regras do artigo 29.º da LEA.

Refira-se que este sistema electivo, bem como as regras atinentes ao Boletim de Voto já foram sufragadas constitucionalmente pelo Acórdão n.º 111/2010 do Tribunal Constitucional quando apreciou o texto que ficou denominado como Constituição de 2010.

Temos assim um misto de sistema maioritário de uma volta que elege o Presidente da Câmara com o sistema proporcional que determina a composição da Assembleia Municipal.

Alegar-se-á em sua defesa que ao mesmo tempo garante a eficiência do governo (sistema maioritário de uma volta) com uma ampla democracia (sistema proporcional para a constituição da Assembleia).

Mas, também se poderá dizer que mantém o “defeito” de uma eleição não totalmente directa do Presidente, que muitos criticam na CRA com referência à eleição do Presidente da República.

Também para aqueles que gostam da comparatística portuguesa, se referirá que não segue o modelo português em que a eleição do Presidente da Câmara é separada da eleição da Assembleia Municipal, podendo um partido ganhar a Presidência e perder a Assembleia como acontece neste momento em Lisboa, além de qua o executivo (Vereação) é formado de acordo com os resultados eleitorais, dependendo da vontade presidencial apenas a distribuição ou não de pelouros[4].

Neste aspecto, o modelo português poderia ser pedagógico, pois ensinaria os diversos partidos, habitualmente polarizados, a entrar em acordos de governo local, o que constituiria uma base de bom espírito democrático de diálogo e tolerância.

Como referência inovadora, há que mencionar que grupos de cidadãos eleitores podem sem qualquer autorização apresentar-se às eleições autárquicas (art. 44.º da LEA) desde que sejam em número mínimo de 150 cidadãos eleitores na respectiva circunscrição (art.º 48, n.º 1 da LEA).

Poder tradicional e expansão demográfica

É um facto que a demografia angolana tem sofrido uma explosão. “Entre 1960 e 2020, a população de Angola cresceu 6,2 vezes, chegando a mais de 30 milhões de habitantes, um aumento mais expressivo do que o que se observou nos países da África Subsaariana (5,1x) e do que noutras regiões, como o Leste Asiático (2,3x) e a América Latina (2,9x).”[5]

É evidente que este número de habitantes não é consentâneo com o actual número de municípios angolanos, 164. Basta lembrar que Portugal, com 10 milhões de habitantes, conta com 308 municípios.

Se é um facto que o número actual de municípios em Angola não corresponde às necessidades reais da população, também é facto que a ideia de aumentar o número dos 164 para 581 é absurdamente impossível, quer por razões financeiras, quer por razões administrativas e burocráticas.[6]

Há assim que procurar respostas inovadoras, possíveis e constitucionais. É neste sentido, que tem relevo a sistemática constitucional ao colocar as instituições do poder tradicional no título referente ao poder local, onde também estão inseridas as autarquias locais. Aliás, o mesmo acontece com a Lei Orgânica do Poder Local, Lei n.º 15/17 de 8 de Agosto, que versa sobre as Autarquias Locais e as Instituições do Poder Tradicional.

A sistemática constitucional e legal esboça um início de resposta à questão que colocámos acima. À sistemática temos de adicionar algumas considerações acerca do actual paradigma do Direito. Não podemos pensar o Direito ainda nos termos dos quadros racionais positivos dos séculos XVIII e XIX que aplicam uma única ementa a toda a regulação da vida social. Não aprofundando o tema aqui, temos de considerar o Direito como um sistema aberto[7]que permita várias intersecções materiais e contributos e não apenas um positivismo fechado, único e redutor. É neste contexto, que é importante permitir que as instituições do poder tradicional assumam a função de autarquia local onde estas não existam e sejam necessárias.

A realidade imporá que existam dois tipos de Autarquias Locais vigentes, aquelas que serão reguladas pelo direito positivo e aquelas derivadas do direito consuetudinário e reguladas pelo costume, aceitando-se uma pluralidade de regimes, legal e costumeiro[8], com vista à efectiva implantação dum poder local descentralizado e próximo da população, aceitando-se a “presença de mais do que uma ordem normativa num campo social.”[9]

Trata-se no fundo de concretizar um desiderato sistemático da Constituição que ao colocar quer as Autarquias Locais formais, quer as Instituições do Poder Local na égide do Poder Local, não comete um erro, como afirmam alguns, mas abre pistas para a consideração dum verdadeiro pluralismo jurídico em Angola que funcionará como solucionador de problemas ligados à eficácia da máquina estatal.


[1] Anzia SF. 2013. Timing and Turnout: How Off-Cycle Elections Favor Organized Groups. Chicago: Univ. Chicago Press ou Hajnal ZL. 2009. America’s Uneven Democracy: Race, Turnout, and Representation in City Politics. Cambridge, UK: Cambridge Univ. Press.

[2] Adrian CR. 1952. Some general characteristics of nonpartisan elections. Am. Political Sci. Rev. 46: 766–786, p. 766.

[3] Abott, Carolyn, and Asya Magazinnik. “At-Large Elections and Minority Representation in Local Government.” American Journal of Political Science 64, no. 3 (2020): 717–33.

[4]  Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro

[5] Grupo de Estudos Económicos (2023), Transição demográfica em Angola: ónus ou bónus? MakaAngola, https://www.makaangola.org/2023/07/transicao-demografica-em-angola-onus-ou-bonus/

[6] Verde, Rui, (2022), O “(ir)racional” dos 581 municípios, MakaAngola, https://www.makaangola.org/?s=munic%C3%ADpios

[7] Viehweg, T. Topik und Jurisprudenz, 1954; Perelman, Ch. Das Reich der Rhetorik; Rhetorik und Argumentation, 1980

[8] Cfr. Feijó, Carlos, A coexistência normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem

Jurídica Plural Angolana, Coimbra, Almedina, 2012.

[9] Fernandes, T. 2009. O poder local em Moçambique. Descentralização, pluralismo jurídico e legitimação. Porto, Edições Afrontamento, p. 40

A economia angolana e a necessidade de uma nova Constituição

As constituições não resolvem problemas, mas dão sinais poderosos. É dum desses sinais poderosos que a economia de Angola necessita, neste momento.

Se olharmos para os grandes dados macroeconómicos, deparamos com um quadro animador. A inflação desde março de 2022 desceu de 27,66% para 13,86%, em dezembro de 2022, um dado impressivo, o Kwanza, moeda nacional, oscila livremente no mercado internacional, o Orçamento Geral do Estado apresenta um excedente, a dívida pública desceu assinalavelmente, para um valor próximo dos 60% do PIB. A economia voltou a crescer na órbita dos 3% em 2022, prevendo-se um aumento de 2,7% em 2023. Entretanto, o petróleo continua em alta, a 86,27 o barril/Brent (25-01-2023).

Portanto, aqueles que se podem considerar os “fundamentais” da economia angolana encontram-se saudáveis, depois de uma longa penúria começada em 2015/2016.

No entanto, o investimento internacional que devia fluir para Angola ainda não é uma realidade, e a ameaça de instabilidade é latente, como demonstra a entrevista do líder da oposição Adalberto da Costa Júnior a um jornal português[1] na passada semana, não reconhecendo resultados eleitorais, tribunais e, pelo que se apreende qualquer instituição do Estado; na prática, assumindo como possível uma tomada de poder pela força.

Consequentemente, temos um trabalho de estabilização económica meritório que por razões políticas, e também aquelas que Keynes denominava “animal spirits” (emoções que determinam o comportamento humano), não produz os efeitos desejados e descritos habitualmente nos manuais de economia.

Ora, é precisamente esta necessidade de deslanchar do “animal spirit” que não se move na economia angolana e as ameaças de instabilidade política que originam a premência da discussão de uma nova constituição para Angola.

É sabido que a constituição angolana aprovada em 2010 não é consensual e foi desenhada numa alfaiataria jurídica tendo em conta a figura de José Eduardo dos Santos, introduzindo, aquilo que Jorge Miranda, o famoso constitucionalista português, apelidou de “sistema de governo representativo simples, a que, configurações diversas, se reconduziram a monarquia cesarista francesa de Bonaparte, a república corporativa de Salazar segundo a Constituição de 1933, o governo militar brasileiro segundo a Constituição de 1967-1969, vários regimes autoritários africanos.”[2]

Embora tendo sofrido uma revisão num sentido mais democratizante e aberto em 2021, em que se destaca a autonomização do Banco Central e a criação de um sistema constitucional de fiscalização do poder executivo por parte do legislativo, o certo é que a génese constitucional impede sempre que esta seja um símbolo duma sociedade aberta e uma economia livre e por outro lado, não contém mecanismos de proteção constitucional à semelhança dos propostos por Karl Loewenstein e adotados na Lei básica alemã do pós-guerra. Estes mecanismos protegem a constituição de ameaças internas à própria constituição e são um elemento fundamental para a estabilidade política.

Acresce que é importante reforçar os mecanismos de defesa do investimento privado e estrangeiro. Se repararmos, o investimento privado apenas é mencionado uma vez na constituição no artigo 38.º, e a história de oportunismo e verdadeiros “roubos” de investidores estrangeiros em Angola foi uma realidade que obriga a uma especial atenção normativa. Também as disposições sobre a terra (artigo 15.º) têm de ser atualizadas e racionalizadas, bem como a garantia da justiça com julgamentos rápidos e imparciais.

A justiça é reconhecidamente um dos aspetos essenciais de um bom funcionamento da economia, esperando-se decisões previsíveis e em tempo útil. Não existem dúvidas que o sistema judicial angolano necessita de um grande “aggiornamento” que seria introduzido por uma nova constituição.

Numa mera perspetiva económica, vê-se assim que uma nova constituição seria um sinal, um símbolo de um novo tempo que atrairia investidores e daria esperanças de estabilidade política e legal.

Como se mencionou no início, uma nova constituição não resolve todos os problemas, o seu papel é de anúncio de uma nova época aberta ao investimento, à economia de mercado e ao progresso e desenvolvimento do país. Seria o culminar das reformas económicas encetadas recentemente.


[1] Adalberto da Costa Júnior, 2023, Nascer do Sol, https://sol.sapo.pt/artigo/790625/houve-muita-pressao-para-tomar-as-instituicoes

[2] Jorge Miranda, A Constituição de Angola de 2010, CJP-CIDP, p. 42

Gabinete de Estudos CEDESA

Angola: nova constituição, nova república?

DOCUMENTO DE REFLEXÃO

Situação atual e anocracia

Numa situação habitual, a agitação e tensão que se sentiu nos meses que precederam as eleições gerais de agosto de 2022 em Angola, teria dado lugar à normalidade e tranquilo funcionamento das instituições até ao seguinte ato eleitoral a ocorrer em 2027. No entanto, as fortes clivagens que se sentiram e aquela espécie de contenda quase global que existiu até agosto não parece diminuir, criando uma situação de constante agressão, sem um fim à vista no presente sistema. Sintoma disso é a recente entrevista dada pelo líder da oposição a um jornal português, em que declara “Nem eu, nem o partido reconhecemos a vitória do MPLA, porque sabemos que a UNITA teve mais votos. Escutámos as pessoas em todo o país. A sociedade queria que tomássemos conta das instituições, mas não quisemos o caos.”[1]

Consequentemente, de um lado, o principal partido da oposição assumiu uma política que chamaremos de “dupla via”. Tal política contesta o governo dentro das instituições, embora não lhes reconhecendo legitimidade, desafiando também as próprias instituições. A “via dupla” aceita que a oposição se faz dentro das instituições e fora delas; de certa maneira, as instituições são vistas como mais um instrumento de um projeto mais amplo de confronto com o governo. Ora é evidente que esta postura leva a um maniqueísmo difícil de gerir e coloca em causa qualquer abertura e respeitabilidade que se pretenda com o investimento. A falta de respeito pelas instituições torna tudo demasiado dependente da vontade dos decisores políticos e da conjuntura.

Do outro lado, o partido do governo sente-se embaraçado em levar avante as suas anunciadas reformas, é como se o partido não fosse um, mas dois partidos. Uma massa partidária está insatisfeita com as mudanças propostas, queria que João Lourenço fosse apenas um gestor mais hábil do que José Eduardo dos Santos, mas não que introduzisse reformas de fundo, outro sector pretende que sejam tomadas efetivas reformas e sente-se incomodado com a eventual lentidão dessas reformas. Têm a noção que sem um profundo processo reformista, Angola se pode transformar num Estado sem futuro.

Há assim uma forte instabilidade, por razões diversas, nos partidos que formam a sustentação do sistema político. A Assembleia Nacional não parece ser uma câmara deliberativa do sentir da nação, mas um mero palco duma disputa mais alargada, tornando-se num meio e não num fim, retirando-lhe o peso soberano que lhe seria inerente. Com um registo mais atemorizador surge a justiça. Aquele que é o pilar básico de um Estado Democrático de Direito, oferece mais dúvidas do que certezas. No combate à corrupção, com honrosas exceções, o sistema judicial tem-se pautado pela ineficiência e lentidão, não se percebendo já para onde caminha esse programa estruturante do Estado.  Como já escrevemos: “É verdade que o desenho do Tribunal Supremo contido na Constituição de 2010 ajuda à sua disfuncionalidade. Na verdade, o legislador constitucional angolano quis fazer um tribunal seguindo o modelo da Supreme Court norte-americana enxertado num sistema judicial de tipo romano-germânico, isto é, português. Ora um tribunal de topo no sistema judicial português, alemão ou francês, nada tem a ver com um tribunal de topo num sistema anglo-americano. São conceitos e estruturas judiciais diferentes. O que se pede a um tribunal supremo norte-americano não é o que se pede a um supremo tribunal português. No primeiro caso, apenas grandes e inovadoras questões de direito lá chegam. É já uma espécie de tribunal de reflexão, enquanto, no segundo caso-romano-germânico- o supremo funciona como última instância de recurso para quase todos os casos judiciais. Todavia em Angola, pensou-se um tribunal à americana para funcionar à portuguesa. Portanto, uma estrutura leve e que apenas se dedicava a um pequeno número de processos teve de se defrontar com a tarefa de ser um tribunal habitual de recurso para uma miríade de casos. Isso só podia dar mau resultado, como deu. Além da disfuncionalidade do desenho constitucional, tem-se entendido que os juízes do Tribunal Supremo não têm a preparação adequada para lidar com as complexidades do crime económico-financeiro, não tendo ao longo da sua carreira deparado com essas questões ao nível sofisticado a que têm estado a aparecer, o que tem levado a algumas decisões muito criticadas e a grande mora processual. Iniciando o país simultaneamente uma fase de grande apelo ao investimento estrangeiro, bem como apostando na luta contra a corrupção, é bem de ver que um tribunal mal desenhado e pensado para outros tempos tem de ser reformado e remodelado.”[2]

No seu geral, a justiça não tem oferecido garantias de celeridade e imparcialidade técnica, e os seus atores têm tido uma tendência surpreendente para se envolverem em escândalos consecutivos.

Por parte da população começa a haver uma ideia tímida, mas discutida em vários fora, que as atuais instituições e partidos políticos foram concebidos para um ambiente de guerra e confronto, estando essas características no seu âmago, e, por isso, não estão aptos a lidar com uma nova Angola, em que os objetivos centrais sejam o desenvolvimento e o bem-estar da população. Quer isto dizer que se considera que os “velhos” partidos já não correspondem aos desejos e interesses da população, não oferecendo soluções consistentes e apelativas. A taxa de abstenção das últimas eleições gerais (54%) é espelho dessa situação.

Uma Assembleia Nacional que se transformou em mero instrumento-eco de poder e contrapoder, uma justiça inepta e um sistema partidário anacrónico, definem o presente sistema institucional angolano.

Toda esta situação, um pouco difusa, mas cujos sinais abundam, podem tornar o país numa anocracia. O que é uma anocracia? A anocracia vem sendo definida como um regime instável que combina elementos de autoritarismo e democracia. A anocracia tem um desenvolvimento incompleto de mecanismos de dissensão e consensualização e associa-se a uma permanente agitação ou ingovernabilidade, que dificultam o processo político[3]. A existência duma situação anocrática aumenta a probabilidade [4] de uma guerra civil. Colocando o tema de outra forma, o que procura interrogar é se a situação angolana se apresenta inerentemente instável e pode redundar numa guerra civil?

A resposta é simples, embora tendo duas partes. Não, Angola não vive ainda uma situação de anocracia. Contudo, são exigíveis medidas estruturantes que ultrapassem os presentes bloqueios e insatisfações.

Nova Constituição e Nova República

É necessário criar um Estado ágil, com instituições respeitadas, uma administração pública funcional e uma economia de mercado com atores livres e competitivos, tudo contribuindo para o progresso e bem-estar da população. As estruturas herdadas do colonialismo e das guerras têm de ser transformadas e trocadas por estruturas da modernidade e desenvolvimento, tendo em conta a cultura e história de Angola.

É fundamental um novo ciclo histórico com uma nova estrutura.

A primeira medida é estabelecer uma nova constituição. A atual constituição de 2010 não é consensual e, até certo ponto, é um equívoco jurídico desenhado para agradar aos desejos pessoais de José Eduardo dos Santos. Fundamental será propor uma nova constituição mais angolana e mais protetora das instituições, que marque um recomeço. Entende-se que essa nova Constituição deveria abordar aspetos tão diferentes como a possibilidade de eleição separada (direta ou indireta) do Presidente da República, conferindo-lhe uma legitimidade própria e garantindo que o Presidente se apresente como um líder nacional e não um líder partidário, a criação de uma segunda câmara legislativa composta pelas autoridades tradicionais (permitindo a introdução de vozes diferentes e plurais no processo legislativo, recuperando a cultura africana), a introdução de mecanismos de democracia militante como tem a lei fundamental alemã (como  Karl Loewenstein[5] escreveu a democracia deveria ser capaz de resistir àqueles agentes políticos que utilizam instrumentos democráticos para assegurar o triunfo de projetos totalitários ou autoritários de poder, isto significando, que a constituição tem de conter mecanismos de defesa e repressão das tentativas de derrube do regime constitucional, o que agora não existe com força suficiente na constituição angolana). Obviamente, que a reformulação do poder judicial, a mudança da simbologia da república, seriam outros aspetos desta nova constituição.

Não basta uma mudança constitucional sem se tratar da organização e administração do Estado.  Também aqui o projeto de transformação tem de ser abrangente e procurar-se a libertação dos modelos coloniais e marxistas, introduzindo uma administração pública adequada aos novos tempos. Exemplos podem vir da Ásia, como a China e Singapura[6], ou dos países vizinhos como o Botswana ou a África do Sul. O paradigma tem de ser uma administração baseada no mérito, assente na eficácia e no serviço à população. Naturalmente, que tal implica o fim da influência clientelista na administração, a desconcentração com autonomia e capacidade de tomada de decisão, uma forma completamente nova de ver o procedimento administrativo, não como um conjunto de regras, mas um conjunto de boas práticas e objetivos vocacionados para o bem comum e eficácia.

É evidente que apenas se deixam aqui alguns tópicos sobre as mudanças estruturais aconselháveis, segundo a nossa perspetiva, para transformar Angola num Estado moderno e próspero.


[1] Adalberto da Costa Júnior, entrevista ao Nascer do Sol, 20-01-23

[2] CEDESA (2022). A necessária reforma do Tribunal Supremo em Angola, https://www.cedesa.pt/2022/11/24/a-necessaria-reforma-do-tribunal-supremo-em-angola/

[3]  Jennifer Gandhi e James Vreeland (2008). “Political Institutions and Civil War: Unpacking Anocracy”. Journal of Conflict Solutions. 52 (3): 401–425; Patrick Regan and Sam Bell, Sam (2010). “Changing Lanes or Stuck in the Middle: Why Are Anocracies More Prone to Civil Wars?”. Political Science Quarterly. 63 (4): 747–759.

[4] Patrick Regan and Sam Bell, Sam (2010). “Changing Lanes or Stuck in the Middle: Why Are Anocracies More Prone to Civil Wars?”. Political Science Quarterly. 63 (4): 747–759.

[5] Karl Loewenstein (1937) Militant Democracy and Fundamental Rights, in: American Political Science Review 31.

[6] M. Shamsul Haque (2009), Public Administration and Public Governance in Singapore in Pan Suk Kim, ed., Public Administration and Public Governance in ASEAN Member Countries and Korea. Seoul: Daeyoung Moonhwasa Publishing Company, 2009. pp.246-271.

A importância do novo artigo 37.º, n.º 4 e 5 da Constituição angolana: a questão do confisco sem condenação criminal

1-Introdução. A revisão constitucional angolana, os limites ao direito de propriedade e o combate à corrupção

Um dos temas principais da revisão constitucional angolana em curso foi a delimitação do direito de propriedade, uma das questões que se tornou polémica face aos desenvolvimentos nos processos de combate à corrupção.

Recentemente, a título meramente exemplificativo enunciámos as seguintes medidas concretas que de alguma forma colocavam o direito de propriedade de entidades privadas em causa. Naquilo que se refere a “congelamentos” de bens, foram apreendidos ou entregues bens de Manuel Vicente e generais Dino e Kopelipa, Jaoquim Sebastião, Manuel Rabelais, entre outros. No que diz respeito aos generais Dino e Kopelipa regista-se que na qualidade de representantes das empresas China International Fund Angola — CIF e Cochan, S.A., entregaram as ações que detinham na empresa Biocom-Companhia de Bionergia de Angoala, Lda., na rede de Supermercados Kero e na empresa Damer Gráficas-Sociedade Industrial de Artes Gráficas SA. Em relação a Manuel Vicente, o Presidente da República determinou a nacionalização de 60% das participações sociais da sociedade comercial Miramar Empreendimentos, SA”, o que abrange “43% das ações pertencentes à Sociedade Suninvest — Investimentos, Participações e Empreendimentos, SA” e “17% das ações pertencentes à Sommis, SGPS. Estas participações serão pertencentes a Manuel Vicente. Obviamente, há que referir, também, os arrestos de bens referentes a Isabel dos Santos e seus associados em processos cíveis em Luanda e em processos criminais em Lisboa, além da nacionalização da Efacec em Portugal[1].

As fórmulas jurídicas de apreensão de bens foram variadas, geralmente provisórias, embora nalguns casos, definitivas e contando com a aparente aquiescência dos interessados. Aqui a exceção é a Efacec cuja nacionalização em Portugal foi igualmente definitiva, mas sem acordo da interessada, Isabel dos Santos.

De uma forma ou outra, em Angola o processo tornou-se algo confuso, não se percebendo exatamente o efeito jurídico global das entregas voluntárias de bens e a sua estabilidade jurídica, além de nos casos de provisoriedade se levantarem problemas de gestão e manutenção de bens. Sendo também fundamental não deixar prolongar essas situações provisórias por demasiado tempo, sobretudo quando estão interesses fundamentais da economia em jogo ou empregos em risco.

Face a estes acontecimentos tornava-se urgente uma definição clara do regime constitucional e legal das apreensões públicas em Angola, de forma a conferir segurança jurídica e económica aos variados movimentos de recuperação de bens descritos e em curso. É esse o sentido do texto que acabou por surgir na revisão constitucional e que vamos descrever, adicionando as possibilidades legais que esse novo texto abre em termos de legislação com vista a tornar o processo de recuperação de ativos mais célere, compreensível e estável.

2-O artigo 37.º da Constituição angolana (CRA)

A versão da CRA de 2010, ainda em vigor garantia o direito de propriedade e definia as condições de requisição e expropriação no seu Artigo 37.º. Aí se estabelecia no n.º 1 que: “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei.”. O n.º 2 determinava que “O Estado respeita e protege a propriedade e demais direitos reais das pessoas singulares, coletivas e das comunidades locais, só sendo permitida a requisição civil temporária e a expropriação por utilidade pública, mediante justa e pronta indemnização, nos termos da Constituição e da lei.” E o número 3 apertava a malha exigindo que “O pagamento da indemnização a que se refere o número anterior é condição de eficácia da expropriação.”

Este era um artigo de inspiração manifestamente enquadrada numa visão liberal e absoluta da propriedade, não prevendo sequer a possibilidade de nacionalização ou confisco, admitindo apenas a expropriação por utilidade pública sujeita ao pagamento de uma indemnização, para ser eficaz. No papel seria difícil haver garantia mais absoluta do direito de propriedade, e assim se vê que as presentes atividades do Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SNRA) de Angola poderiam roçar, muitas vezes, as margens constitucionais, acontecendo que muitas das apreensões realizadas até ao momento carecessem, eventualmente, de validade constitucional. Naturalmente que este facto deve ter sido alertado ao Presidente da República que se encarregou na sua proposta de revisão constitucional de remediar essa zona cinzenta que estava a ser criada pela atuação do SNRA. Assim, o Presidente propôs o acréscimo ao artigo 37.º da CRA do n.º 4 que teria a seguinte redação:

4. Lei própria define as condições em que pode ocorrer a nacionalização de bens privados por ponderosas razões de interesse nacional e do confisco por ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado.

Esta versão consagrava expressamente a possibilidade de nacionalização ou confisco quando existissem razões fundamentais para que tal acontecesse. Competiria à lei definir as razões. Ficava assim consagrada a regularidade constitucional das atividades de recuperação de ativos que levantavam dúvidas anteriormente.

No entanto, vários juristas angolanos levantaram o problema que esta formulação presidencial poderia assustar os potenciais investidores estrangeiros (e nacionais), tão necessários para a retoma económica ao permitir uma ampla e indeterminada fundamentação para proceder à nacionalização e confisco de bens. Essa possibilidade estaria expressa em demasia e sem salvaguardas adequadas. Deve ter sido por isso que o artigo 37.º, após análise e deliberação na Assembleia Nacional (AN) acabou por passar a contar com mais dois números, o 4.º e 5.º. Assim, ficou definida a seguinte redação:

Artigo 37.º

(Direito e limites da propriedade privada)

1. […].

2. […].

3. […].

4. Podem ser objecto de apropriação pública, no todo ou em parte, bens móveis e imóveis e participações sociais de pessoas individuais e colectivas privadas, quando, por motivos de interesse nacional, estejam em causa, nomeadamente, a segurança nacional, a segurança alimentar, a saúde pública, o sistema económico e financeiro, o fornecimento de bens ou a prestação de serviços essenciais.

5. Lei própria regula o regime da apropriação pública, nos termos do número anterior.

Não vamos entrar numa discussão doutrinária sobre o que significa “bens móveis e imóveis e participações sociais” e se engloba toda a possibilidade de ativos, embora uma formulação mais clara e que não suscitasse qualquer tipo de dúvidas tivesse sido melhor.

O que resulta claro deste artigo é que pode existir apropriação pública, i.e., uma “situação que (…) permite um acção sobre a titularidade dos meios de produção, o que levará a uma transferência coactiva destes bens para o sector público”[2] e que essa apropriação tem de se justificar por motivos de interesse nacional, que a Constituição exemplifica como segurança nacional, segurança alimentar, saúde pública, sistema económico e financeiro, fornecimento de bens ou prestação de serviços essenciais. Note- se que estes são meras ilustrações que a norma constitucional nos dá. Na verdade, qualquer motivo de interesse nacional será fundamento para a apropriação pública. A partir da entrada em vigor deste texto, haverá, sem margem para dúvida, um enquadramento constitucional genérico para a recuperação de ativos. Vamos ver em que termos e quais as perspetivas que se abrem.

3-O conceito de apropriação pública

À falta de outra referência parece que o legislador angolano se foi inspirar no artigo 83.º da Constituição Portuguesa (CRP) para introduzir o conceito de apropriação pública em vez de nacionalização e confisco. Lê-se nesse artigo 83.º da CRP: “A lei determina os meios e as formas de intervenção e de apropriação pública dos meios de produção, bem como os critérios de fixação da correspondente indemnização.”

Vislumbra-se desde logo uma manifesta diferença entre a norma angolana e portuguesa referente à apropriação pública. Em Portugal, qualquer forma de apropriação pública implica indemnização, em Angola não é assim.

Vamos detalhar o regime que se afigura estabelecido na CRA, após a revisão. Apropriação pública será toda a transferência coativa da titularidade da propriedade de um bem ou participação privado para a esfera do Estado. A apropriação pública engloba a nacionalização, o confisco, a expropriação e todas as outras possibilidades de apoderamento. No caso específico da expropriação por utilidade pública a Constituição exige que se proceda a uma indemnização. Noutros casos, não existe essa obrigatoriedade constitucional. Isto é, por razões de interesse nacional o Estado pode retirar uma propriedade da esfera privada sem a respetiva compensação. O facto da CRA admitir esta possibilidade deve obrigar o legislador ordinário a rapidamente elaborar uma lei de bases da apropriação pública para garantir a certeza jurídica destas situações, tanto quanto é possível.

4- A constitucionalização do confisco sem condenação criminal (CSCC/NCB)

Non-conviction-based (NCB) asset forfeiture ou confisco sem condenação criminal (CSCC) é uma ferramenta crítica para a recuperação de ativos decorrentes de corrupção quando uma condenação criminal não é possível[3]. Os exemplos são quando o transgressor morreu, fugiu da jurisdição, está imune a processo judicial ou se antevê que o processo criminal será demasiado longo tornando-o inefetivo. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) e a Financial Action Task Force (FATF) apoiam o seu uso.

O confisco de ativos de NCB é uma ferramenta crítica para recuperar os rendimentos e instrumentos da corrupção. É um mecanismo legal que prevê a contenção, apreensão e confisco de bens desviados sem necessidade de condenação criminal. Um número crescente de jurisdições estabeleceu regimes de confisco de ativos NCB e tais regimes têm estado a ser recomendados em nível regional e multilateral por uma série de organizações, em que se destaca o Banco Mundial através da StAR Initiative e a mencionada FATF.

Globalmente, há dois tipos de confisco usados para recuperar os ativos obtidos ilicitamente: o confisco de bens NCB e confisco criminal.  Onde o confisco criminal de ativos e o NCB diferem é no procedimento usado para confiscar ativos. A principal distinção entre os dois é que o confisco criminal requer um julgamento e condenação criminal, enquanto o confisco de ativos de NCB não. Na verdade, pode ser realizado através de um rápido procedimento cível ou mesmo administrativo. Ora é esta a possibilidade que a revisão da Constituição acaba de admitir.

5-Conclusões. O confisco sem condenação criminal e a necessidade de uma lei de bases

O que resulta essencial desta modificação constitucional prevista para o artigo 37.º da CRA é a abertura de possibilidades dinâmicas para a implementação em processo cível ou administrativo do confisco de bens obtidos de forma ilícita sem necessidade de processo criminal e sem indemnização, portanto, temos aqui um largo e positivo passo no combate contra a corrupção.

Contudo, a norma constitucional exige, de imediato, por razões de segurança jurídica e de garantia do direito de propriedade, a aprovação de uma lei de bases sobre a apropriação pública de bens, contendo, em concreto, disposições específicas sobre o confisco sem condenação criminal. Consequentemente, após a entrada em vigor da revisão constitucional, será tempo de uma lei de bases sobre o confisco de bens sem condenação criminal e indemnização.


[1] https://www.cedesa.pt/2021/05/13/radiografia-do-combate-a-corrupcao-em-angola/

[2] DIOGO SARAMAGO FERREIRA, A nacionalização do Banco Português de Negócios – Análise da Lei n.° 62-A/2008, de 11 de Novembro, Revista de Direito das Sociedades, 2011-1 (169-186), 176

[3] Theodore S. Greenberg, Linda M. Samuel, Wingate Grant, Larissa Gray (2009), Stolen Asset Recovery A Good Practices Guide for Non-Conviction Based Asset Forfeiture, The World Bank, Washington DC. https://star.worldbank.org/sites/star/files/Non%20Conviction%20Based%20Asset%20Forfeiture.pdf

Estado de Direito e Corrupção em Angola: por um minissistema de justiça contra a corrupção

1-Introdução. Luta contra a corrupção em Angola. Objetivos e factos

A corrupção tornou-se um fenómeno tão alastrado em Angola que colocou em causa a sobrevivência do próprio Estado e a viabilização económica do país. A denominada luta contra a corrupção não é uma questão de polícia e de combate a uma atividade criminosa. É algo de muito maior e com muito mais importância. Na verdade, aquilo a que se chama corrupção em Angola é um fenómeno mais abrangente de apropriação em larga escala dos recursos nacionais e de “privatização da soberania[1]”. Consiste em comportamentos variados que preenchem vários tipos criminais como a burla, abuso de confiança, peculato, fraude fiscal, branqueamento de capitais, entre outros, e não apenas o crime de corrupção. O que este fenómeno acarreta é a captura do Estado e da Economia pelas forças corruptas e a utilização dos seus mecanismos de poder em proveito próprio. É uma degradação sistémica do corpo político e económico do país. Em última análise, a corrupção em Angola impede o funcionamento das instituições políticas e da economia num ambiente de mercado livre.[2]

Acreditamos que foi a perceção da gravidade da corrupção para o desenvolvimento político e económico do país que levou João Lourenço a determinar como um dos objetivos fundamentais do seu mandato presidencial a luta contra a mesma. Não vale a pena citar os inúmeros discursos e ações encetados sobre o tema, para confirmar que efetivamente a luta contra a corrupção se tornou um ponto inultrapassável do mandato presidencial.

Se este objetivo é claro e justificável, as questões colocam-se ao nível da execução. Uns criticam o que chamam a seletividade dos casos levados a tribunal, outros a morosidade e ainda outros o atropelo de formas legais.

Não vislumbramos que exista seletividade na luta contra a corrupção. Basta ater-nos apenas aos julgamentos ocorridos e veremos que são diferentes as pessoas que foram sentenciadas. Temos no caso “Burla tailandesa”, um antigo Diretor do gabinete de investimento estrangeiro, Norberto Garcia e um antigo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o general Nunda. Ambos foram absolvidos e ocupam hoje cargos de relevo, Garcia no gabinete presidencial e Nunda como Embaixador em Londres. Depois temos Augusto Tomás, antigo ministro dos Transportes, que foi condenado a prisão efetiva com trânsito em julgado, José Filomeno dos Santos, filho do antigo Presidente da República, condenado a cinco anos de prisão e que aguarda o resultado do recurso em liberdade, tal como Valter Filipe antigo Governador do Banco Nacional de Angola. Finalmente, tivemos recentemente a condenação de Manuel Rabelais a 14 anos de prisão. Rabelais era o homem-forte da comunicação social no tempo de José Eduardo dos Santos. Também aguarda o resultado do recurso em liberdade. Vê-se que não são todos, nem sequer a maioria, da família de José Eduardo dos Santos, apenas um é filho; têm situações carcerárias diferentes e resultados diversos. Não se confirma qualquer seletividade.

Diferente é a morosidade processual e alguma atrapalhação com as formas legais. Ainda recentemente, o Procurador-Geral da República em relação ao suposto processo referente a Isabel dos Santos, que vai ser, possivelmente, o processo mais importante e marcante de Angola, referia que estava atrasado porque era muito complexo.[3]E muitos outros processos se arrastam e levantam dúvidas legais. Não entrando aqui em detalhes, o que há a anotar, é que, neste momento, (16 de abril de 2021), apenas existe um processo de político muito relevante transitado em julgado e com cumprimento de pena. Os outros dois processos de pessoas muito relevantes estão em recurso, e nada mais chegou a julgamento.

Este panorama para uma situação de extrema urgência como a descrita acima é muito curto. Não havendo dúvida que a luta contra a corrupção era uma urgência e prioridade do Estado e que foi assumida como tal pelo Presidente da República, o que se verifica é que os resultados judiciais são ainda reduzidos. A nossa opinião é que esta míngua de resultados é consequência duma opção de boa-fé do poder político que não funciona. Essa opção foi a de combater a corrupção com os meios normais e habituais pré-existentes no sistema judicial angolano. O uso do sistema judicial como está para combater a corrupção não satisfaz. Veremos a razão por que tal opção não resulta e as alternativas.

2- A opção de combate à corrupção dentro do sistema judicial pré-existente

O poder político quando elegeu como objetivo principal o combate à corrupção, resolveu fazer essa luta através dos órgãos judiciais pré-existentes e com as pessoas titulares habituais. Não houve qualquer renovação orgânica ou de pessoal, apenas meros ajustes, o Vice-PGR subiu a PGR, os Presidentes do Tribunal Supremo e Tribunal Constitucional trocaram de cargo e umas leis um pouco apressadas sobre recuperação de ativos foram aprovadas. Portanto, poucas mexidas para lançar o combate à corrupção. Esta opção deve ter correspondido a uma opinião formalista dada pelos mais eminentes juristas angolanos segundo a qual, o combate à corrupção deveria ser feito dentro do Estado de Direito e com os meios legais existentes. Só assim seriam garantidos os necessários direitos de defesa e credibilidade dos processos. E face ao estrangeiro poder-se-ia sempre afirmar que não haveria qualquer abuso por parte das autoridades, pois era o sistema judicial instalado que estava a funcionar dentro das normas habituais do Estado de Direito.

Esta normalidade legal parece correta, mas na realidade, é o que impede um real, célere e efetivo combate contra a corrupção. O que estamos a assistir é a máquina e pessoas que foram capturadas no passado pelos interesses corruptos a fazer essa luta contra a corrupção. Por isso, processos perdem-se fisicamente nos tribunais, outros embrulham-se, outros surgem com decisões inaceitáveis e outros prolongam-se inexplicavelmente. Na verdade, entregar à estrutura judicial existente o combate contra a corrupção revela-se um erro. Se essa estrutura também era corrupta, não pode, por razões de lógica elementar, estar a julgar a corrupção, as relações clientelares do passado, os favores devidos, a venalidade habitual, são demasiado fortes, para de repente um manto de integridade tudo afastar. O que temos estado a verificar é que o sistema judiciário e judicial se mostra incapaz de combater a corrupção. Os processos judiciais com princípio, meio e fim rareiam. É como se existisse uma disfuncionalidade entre as intenções do Poder Executivo e as concretizações do Poder Judicial.

A realidade é que se está a pedir a uma estrutura que colaborou e beneficiou da corrupção que agora a combata; no fundo, que se vire contra si própria. Salvaguardando, que nessa estrutura existem agentes de mudança, juízes, procuradores, polícias, funcionários, que devem ser elogiados pelo seu trabalho aturado, o certo é que são uma exceção-mesmo que larga- e não impedem que a estrutura judicial como um todo seja conservadora e avessa ao risco de combater os seus aliados de ontem.

Nessa medida, a luta contra a corrupção pode acabar por ser inglória e não resultar, atendendo aos vários empecilhos estruturais existentes.

3- Exemplos históricos de superações das magistraturas atávicas

Não é a primeira vez que as magistraturas, pelo seu conservadorismo e aversão ao risco, colocam em causa as intenções de novos regimes. Há exemplos históricos impressivos, que também contribuem para soluções para esse problema.

         Sumariamente, referiremos duas situações.

A primeira a referir ocorreu após a Revolução Francesa e a instauração do regime legal que se seguiu, designadamente ao nível do direito administrativo. Este direito foi considerado chave para o desenvolvimento do novo regime pois regularia a atividade do novo Estado e as suas relações com os cidadãos. Sendo o Estado revolucionário e querendo instituir um regime baseado em novos valores-Liberdade, Igualdade e Fraternidade- temia que os juízes, pertencentes às classes privilegiadas e um dos pilares do Ancien Régime impedissem esses desideratos e se tornassem obstáculos inultrapassáveis às novas medidas. Para obviar a esse perigo logo em 1790, uma lei de agosto definiria um código de relações entre o judicial e a administração, proibindo os tribunais de participarem no exercício dos poderes legislativo e executivo, em especial impedindo o juiz ordinário de intervir na atividade da administração. Um ano depois um novo Código Penal determina sanções contra os juízes que se pronunciarem sobre o funcionamento de um órgão administrativo. A lógica que presidiu ao direito administrativo a seguir à Revolução Francesa foi uma lógica de estanquicidade face ao poder judicial, para a Revolução avançar, os juízes tinham de ser afastados. Essa lógica foi evoluindo e permitiu criar um novo sistema judicial autónomo do sistema judicial ordinário. Assim, surgiram a par das leis administrativas, os tribunais administrativos e os juízes administrativos, um corpo estranho aos anteriores juízes[4].

Outra situação em que houve necessidade de contornar o conservantismo de juízes ligados a um antigo regime, ocorreu na Áustria, após o final da Primeira Guerra Mundial (1918). Aí uma República substituiu o antigo Império Habsburgo, e uma nova classe de juízes era necessária para fazer vigorar os novos valores republicanos. É nesse contexto que surge o Tribunal Constitucional e a nova concetualização de Hans Kelsen sobre o tema. É instituído um novo tribunal com juízes diversos.

Isto quer dizer que em diversas circunstâncias históricas, quando o poder político sentiu que os juízes e tribunais não correspondiam aos novos tempos e valores, tornou-se necessário criar novos sistemas judiciais paralelos, complementares ou suplementares. É uma sugestão deste género que se faz em relação ao tempo presente em Angola[5].

4-Estado de Direito para a corrupção

Muitos defendem que em Angola já existem os mecanismos adequados para combater a corrupção e que é imperativo respeitar o Estado de Direito, considerando que tal é representado pelos sistemas e leis tal como estão neste momento. Não podemos subscrever esta tese por duas razões. A primeira assenta num ponto de vista teórico, enquanto a segunda tem um caráter eminentemente prático.

Em termos teóricos, o Estado de Direito não é mais, nem menos do que o respeito pela lei aprovada segundo critérios pré-estabelecidos, portanto, o oposto de arbítrio. O Estado de Direito implica que exista uma lei e que todos a respeitam. Vários pensadores legais acrescentam a este pressuposto formal, que o Estado de Direito também contém um elemento substantivo ligado à igualdade- todos são iguais perante a lei, e à liberdade – há uma presunção a favor da liberdade na implementação das normas jurídicas. Outros ainda vão mais longe equiparando Estado de Direito a uma série de direitos fundamentais e princípios democráticos[6]. Não seguimos esta última versão, ficando pela segunda. Contudo, tal não é importante, importante é salientar que o Estado de Direito admite que existam regras específicas para determinadas situações. Um exemplo típico são as regras constitucionais para o Estado de Emergência (cfr. artigos 58.º e 204.º da Constituição angolana), outro exemplo é o sistema de direito administrativo autónomo como existe em França ou em Portugal. Em Portugal, temos uma situação muito clara de um sistema completamente apartado do sistema judicial ordinário, com leis próprias, tribunais específicos, juízes com carreiras independentes naquilo que se refere ao direito administrativo, o direito do poder do Estado e da sua relação com os cidadãos. Portanto, do ponto de vista teórico e do Estado de Direito não é difícil conceber minissistemas jurídicos dedicados a determinadas matérias.

Se do ponto de vista teórico pode haver um Estado de Direito diferenciado para as questões de grande criminalidade económico-financeira e captura do Estado (vulgo corrupção) com regras diversas do Estado de Direito normal, do ponto de vista prático é evidente que só assim se conseguirá combater a corrupção instalada no poder soberano do Estado. Só estabelecendo um minissistema judicial estanque a influências e com regras próprias tal será viável.

A verdade é que cada sistema jurídico nacional admite vários subsistemas de acordo com as matérias ou propriedades traçadas. Tal não viola qualquer conceção de Estado de Direito, pelo contrário cria regras e obrigações para todos, transparentes e claras, em determinadas áreas. Em resumo, existirá um Estado de Direito para a normalidade e um Estado de Direito para a corrupção.

5. A proposta: criação do minissistema judicial anticorrupção

A proposta que aqui se adianta é simples: criar de raiz um minissistema judicial anticorrupção, ou mais precisamente um sistema jurídico relativo aos grandes crimes de natureza económico-financeira e de captura do Estado.

         Esse sistema jurídico funcionaria com independência dos outros órgãos judiciários e judiciais e seria composto por quatro partes:

  1. Um órgão especial com poderes judiciários para a investigação e acusação. Este órgão seria um misto de polícia judiciária e ministério público tendo poderes de investigar, apreender, realizar buscas e detenções, pedir cooperação judicial internacional e no final fazer uma acusação ou arquivar um processo de grande corrupção. Só trabalharia nestes casos e seria composto por um corpo de agentes com treino focado e dedicado.
  2. Um sistema de tribunais dedicados a estes crimes. Para julgamento e recurso dos casos de grande criminalidade económico-financeira e captura do Estado existiria um sistema de tribunais apenas dedicado a esta matéria. Este sistema de tribunais implicaria uma revisão da Constituição naquilo que se refere ao artigo 176.º n.º 3 e 5. Dever-se-ia passar a admitir uma jurisdição destinada aos grandes crimes de natureza económico-financeira e também abolir a proibição de tribunais com competência exclusiva para julgar determinados tipos de infração.
  3. Um corpo de juízes autónomo e dedicados a esses tribunais seria outras das partes deste minissistema contra a corrupção. Especializar-se-iam determinados juízes nestas matérias que preencheriam os lugares nos tribunais.
  4. Finalmente, este sistema deveria ter uma lei processual simplificada elaborada à semelhança da norte-americana ou da francesa atual que permitisse julgamentos rápidos e justos.

Alternativamente, e para o caso de não se pretender realizar uma revisão constitucional sobre o tema, sempre se poderia em vez de se criar um sistema de tribunais exclusivos com juízes próprios, estabelecer secções especializadas para o combate à corrupção nos tribunais judiciais já existentes. Os tribunais das capitais provinciais ou somente o de Luanda, bem como as Relações e o Tribunal Supremo disporiam de secções especializadas para a corrupção. Neste caso, respeitava-se o artigo 176.º ao não se erguerem novos tribunais com competências exclusivas para julgar determinados tipos de infração, mas ao mesmo tempo teríamos seções de tribunais ordinários ou salas dedicadas ao tema. Tal já é constitucionalmente possível e o restante minissistema proposto mantinha-se como descrito.


[1] A expressão é caracterizada por Achille Mbembe, On the postcolony, 2001.

[2] Sobre o impacto da corrupção em Angola ver Rafael Marques, O espaço de liberdade entre a corrupção e a justiça, 2019,in MakaAngola (https://www.makaangola.org/2019/12/o-espaco-de-liberdade-entre-a-corrupcao-e-a-justica/), Ricardo Soares de Oliveira, Magnificent and Beggar Land: Angola Since the Civil War, 2015 e Rui Verde, Angola at the Crossroads. Between Kleptocracy and Development, 2021.

[3]https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/pgr-admite-complexidade-no-caso-isabel-dos-santos-2-2/ 

[4] Jean-Louis Mestre, « Administration, justice et droit administratif », Annales historiques de la Révolution française 328 | avril-juin 2002. http://journals.openedition.org/ahrf/608

[5] Sara Ligi, “Hans Kelsen and the Austrian Constitutional Court (1918-1929)”, June 2012, Co-herenci,a 9(16):273-295. https://www.researchgate.net/publication/262430581_Hans_Kelsen_and_the_Austrian_Constitutional_Court_1918-1929

[6] Ver uma análise detalhada sobre os conceitos de Estado de Direito e as suas diferenças históricas e espaciais em Rui Verde, Brexit. O triunfo do caos? 2019

O sector económico e financeiro na revisão constitucional angolana – Em especial, a consagração da independência do banco central

1-Introdução. Revisão constitucional em Angola

A presente Constituição angolana (CRA) data de 2010 e nunca tinha sido revista. Recentemente, o Presidente João Lourenço anunciou ter tomado a iniciativa de propor uma revisão constitucional.

Um primeiro comentário que esta ação suscita é que o presidente angolano tem uma política corajosa enfrentando os vários desafios que lhe têm sido colocados: combate à corrupção, reforma económica, rapidez na reação à Covid-19. Neste momento, ainda não colhe os frutos desse enfrentamento determinado, e aí reside algum paradoxo, um presidente reformista arrisca-se a ser submerso pelas suas próprias reformas.

A presente proposta de revisão constitucional é minimalista, e assim foi assumido pelo governo. Nesse sentido, arrisca-se a criar expectativas na população que depois não serão satisfeitas. Contudo, representa um passo muito importante na discussão do modelo político angolano e o certo é que a discussão constitucional será mais importante mesmo que as efetivas alterações que no fim serão inseridas na Constituição.

O objetivo do presente texto é destacar e analisar as principais propostas de revisão constitucional na área da economia e finanças.

2-A proposta de lei de revisão constitucional na área económica e financeira

A primeira modificação proposta encontra-se no artigo 14.º da CRA, que diz respeito à propriedade privada. Introduz-se a expressão “promove[1]”, com a significação de ser função do Estado além de garantir e proteger a propriedade privada e livre iniciativa, também a promoção da iniciativa privada. É introduzido um comportamento positivo do Estado, o da promoção da livre iniciativa privada.

Mais à frente, é adicionado ao Artigo 37.º que regula o “Direito e limites da propriedade privada”, um novo número 4. Este número consagra a possibilidade de nacionalização em caso de “ponderosas razões de interesse nacional”. Também introduz o confisco enquanto medida sancionatória, sendo este permitido quando ocorra uma ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado.

Naturalmente, é no Título acerca da Organização Económica, Financeira e Fiscal que são acrescentadas algumas modificações na área económica. O artigo 92.º conterá novos números 2 e 3. A nova redação proposta para o n.º 2, pretende “clarificar o alcance e o sentido do princípio da propriedade comunitária, enquanto tipo de propriedade consagrado no artigo 14.º da Constituição, que define a natureza do sistema económico chamando à regulação do exercício deste tipo de propriedade as normas do direito consuetudinário que não contrariem o sistema económico, o regime social de mercado e os princípios fundamentais da Constituição”. Já o n.º 3 estabelece a existência legal do sector não estruturado da economia, i.e., refere-se à economia informal, apontando para a sua institucionalização progressiva.

Depois temos o artigo 100.º sobre o Banco Nacional de Angola (BNA). No número 1 desse artigo determina-se que o BNA será o “banco central e emissor da República de Angola” e terá como funções primordiais:  garantir a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegurar a estabilidade do sistema financeiro. Portanto, as funções do BNA são delimitadas ao combate à inflação e à estabilidade do sistema financeiro.

De seguida, no número 2 “consagra-se a nova natureza jurídica do BNA, enquanto entidade administrativa independente, de feição eminentemente reguladora, e sinaliza-se o conteúdo do princípio da independência deste tipo de entidades”. Fica doravante proibida “a transmissão de recomendações ou emissão de directivas aos órgãos dirigentes do BNA sobre a sua actividade, sua estrutura, funcionamento, tomada de decisão” acerca das prioridades a adotar na prossecução das atribuições constitucional e legalmente definidas, por parte do Poder Executivo ou de qualquer outra entidade pública.

Os números subsequentes do mesmo artigo determinam que: “O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional.” E estipulam um procedimento detalhado para essa nomeação. Há um dever de audição parlamentar, mas a decisão final é do Presidente da República.

Outra alteração diz respeito ao Orçamento Geral do Estado. No artigo 104.º propõe-se uma alteração “de modo a afastar uma ideia actual de que o orçamento das autarquias locais integra o OGE”. O OGE preverá as transferências a realizar para as autarquias, mas não as receitas e despesas das mesmas.

3-Análise e comentário das alterações propostas à Constituição económica e financeira

Verifica-se que os artigos a alterar são os 14.º, 37.º, 92.º, 100.º e 104.º

ARTIGO 14.º

  • Em relação ao artigo 14.º passará a incumbir ao Estado promover a iniciativa privada. Além do aspeto retórico de tal afirmação, em termos práticos, esta norma permite que o Estado auxilie o sector privado de forma consistente, por exemplo, ampliando as zonas francas e benefícios fiscais para os privados, subsidiando empresas privadas, criando parcerias com o sector privado. O Estado deverá adoptar uma atitude positiva e activa face ao sector privado e não meramente passiva. É um bom sinal para o mercado.

ARTIGO 37.º

  • O artigo 37.º tem um carácter diferente e constitui a única modificação constitucional diretamente relacionada com o combate à corrupção. Face a uma lacuna constitucional, ficarão agora estabelecidos os princípios gerais em que se podem efetuar nacionalizações e confiscos. Esta última parte é fundamental para concretizar a recuperação de ativos que está em curso em que se torna muito difícil perceber o enquadramento legal.

Agora fica claro que o Estado pode confiscar bens quando tenha havido uma ofensa grave às leis que protegem os seus interesses económicos. Em linguagem simples, fica agora bem esclarecido que aqueles que se tenham locupletado à custa dos fundos públicos podem ficar sem esses bens, não havendo necessidade de um processo criminal transitado em julgado, mas apenas a conclusão que realizaram uma ofensa grave às leis que garantem os interesses económicos do Estado. Esta norma é de aplaudir no presente contexto de combate à corrupção.

ARTIGO 92.º

  • Se a promoção da iniciativa privada e a agilização da recuperação de ativos obtidos nas atividades corruptas são medidas que merecem elogio, mais dúvidas levanta a norma do artigo 92.º referente à economia informal. Mais do que “o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia” (redação proposta do artigo 92.º, n.º3), que significa essencialmente pagamento de impostos e taxas, o que a Constituição deveria propugnar era a adoção de políticas de apoio ao sector informal da economia, que é um verdadeiro amortecedor da falta de  trabalho e  um incubador de potenciais pequenas e médias empresas de sucesso.[2]  

Já se salientou que na África Austral, o sector económico informal constitui um elemento crucial de sobrevivência, dado que 72% de todo o emprego não agrícola reside no sector informal e a maioria dos novos postos de trabalho aparecem aí. A economia informal fornece rendimento e emprego a todas as pessoas, independentemente da sua escolaridade ou experiência. Em Angola, a maioria das pessoas empregadas está igualmente envolvida na economia informal, pois de outro modo não seria capaz de suportar todas as suas despesas. Nessa medida, há que ser muito cauteloso em estabelecer regras sobre a economia informal pois esta auxilia o governo angolano.[3]

ARTIGO 100.º

  • Em termos de opinião pública o cerne da modificação constitucional em termos económico-financeiros estará no artigo 100.º referente ao BNA. Este artigo contém três grandes linhas:
  • O BNA é o “garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro”. Assim, são determinadas precisamente as funções do BNA ligadas à inflação e sistema financeiro;
  • O BNA torna-se uma autoridade administrativa independente e por isso “independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos”. É a famosa independência do banco central, que atualmente, é defendida pela maior parte da doutrina económica.
  • O Governador do BNA é nomeado pelo Presidente da República, ouvida a Assembleia Nacional. Note-se que a Assembleia Nacional não tem direito de veto, mas de audição.

A consagração da independência do banco central corresponde à moderna tendência dominante na doutrina económica. Os argumentos a favor da independência do banco central resumem-se facilmente. Considera-se que os governos tendem a tomar decisões erradas sobre a política monetária. Em particular, são influenciados por considerações políticas de curto prazo. Antes de uma eleição, a tentação é o governo cortar as taxas de juros, tornando os ciclos económicos de expansão e retração mais prováveis. Assim, se um governo tem um histórico de permitir a inflação, as expectativas de inflação começam a aumentar, tornando-a mais provável.

Um banco central independente pode ter mais credibilidade e inspirar mais confiança. Ter mais confiança no banco central ajuda a reduzir as expectativas inflacionárias. Consequentemente, torna-se mais fácil manter a inflação baixa. Há assim a tentativa de introduzir credibilidade adicional na política monetária e acentuar o combate à inflação. Note-se que a inflação é um mal que perdura na economia angolana há demasiado tempo.

Esta medida está correta e deve ser considerada positiva.

ARTIGO 104.º

  • A última alteração diz respeito à explicitação da diferenciação entre o Orçamento Geral do Estado e as Autarquias, fazendo parte da preparação material para instalação das autarquias.

Conclusão

Minimalista, a proposta revisão constitucional na área da economia e finanças visa reforçar os sinais da economia de mercado e estabilidade macroeconómica, sendo de destacar como elemento essencial desta lei a consagração da independência do banco central e o seu foco no combate à inflação.

*****

Anexo: Nova redação proposta das normas referentes ao sector económico e financeiro

“Artigo 14.º

(Propriedade privada e livre iniciativa)

O Estado respeita, e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e promove a livre iniciativa económica e empresarial, exercida nos termos da Constituição e da Lei”.

“Artigo 37.º

(Direito e limites da propriedade privada)

1. […].

2. […].

3. […].

4. Lei própria define as condições em que pode ocorrer a nacionalização de bens privados por ponderosas razões de interesse nacional e do confisco por ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado”.

“Artigo 92.º

(Sectores Económicos)

1. […].

2. O Estado reconhece e protege o direito de propriedade comunitária para o uso e fruição de meios de produção pelas comunidades rurais e tradicionais, nos termos da Constituição e da lei.

3. Lei própria estabelece os princípios e regras a que fica sujeito o sector não estruturado da economia, visando o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia”.

“Artigo 100.º

(Banco Nacional de Angola)

1. O Banco Nacional de Angola, como banco central e emissor da República de Angola, garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro, nos termos da Constituição e da lei.

2. Enquanto autoridade administrativa independente, o Banco Nacional de Angola é independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos a si acometidos, nos termos da Constituição e da lei.

3. O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional, competente em razão da matéria, nos termos da Constituição e da lei, observando-se, para o efeito, o seguinte procedimento:

a) a audição é desencadeada por solicitação do Presidente da República;

b) a audição à entidade proposta termina com a votação do relatório nos termos da lei;

c) Cabe ao Presidente da República a decisão final em relação à nomeação da entidade proposta.

4. O Governador do Banco Nacional de Angola envia ao Presidente da República e à Assembleia Nacional, um relatório sobre a evolução dos indicadores de política monetária, sem prejuízo das regras de sigilo bancário, cujo tratamento, para efeitos de controlo e fiscalização da Assembleia Nacional é assegurado nos termos da Constituição e da lei”.

“Artigo 104.º

(Orçamento Geral do Estado)

1. […].

2. O orçamento Geral do Estado é unitário, estima o nível de receitas a obter e fixa os limites de despesas autorizadas, em cada ano fiscal, para todos os serviços, institutos públicos, fundos autónomos e segurança social e deve ser elaborado de modo a que todas as despesas nele previstas estejam financiadas”.

3. O Orçamento Geral do Estado apresenta o relatório sobre a previsão de verbas a transferir para as autarquias locais, nos termos da lei.

4. A lei define as regras da elaboração, apresentação, adopção, execução, fiscalização e controlo do Orçamento Geral do Estado.

5. A execução do Orçamento Geral do Estado obedece aos princípios da transparência, responsabilização e da boa governação e é fiscalizada pela Assembleia Nacional e pelo Tribunal de Contas, nos termos e condições definidos por lei”.


[1] Todas as citações sem fonte específica mencionada são do Relatório de Fundamentação da Proposta de Lei de Revisão Constitucional 2021 tornada pública pelo Governo.

[2]  Alain de Janvry e Elisabeth Sadoulet, Development Economics, 2016, p. 19

[3]  Moiani Matondo, Em defesa das zungueiras e da economia informal, MakaAngola. https://www.makaangola.org/2020/04/em-defesa-das-zungueiras-e-da-economia-informal/

O acordo inalcançável entre Angola e Isabel dos Santos

Nota prévia:
Este texto analisa apenas a problemática legal e política em causa. Não toma, nem tem de tomar, qualquer posição sobre os factos eventualmente criminais referidos, adotando as regras da Presunção de Inocência claramente estabelecidas na Declaração Universal dos Direitos do Homem e nas Constituições Angolana e Portuguesa.

Isabel dos Santos foi considerada durante muitos anos a mulher mais rica de África[1], sendo filha do antigo Presidente da República de Angola, José Eduardo dos Santos. Neste momento, correm contra ela vários processos judiciais de natureza criminal e civil em várias jurisdições. Sendo públicos as ações e inquéritos em curso em Angola[2] e Portugal[3], e havendo notícia, mais ou menos discreta, que outras iniciativas na Alemanha ou no Mónaco tiveram ou têm lugar.

Pelo menos em Angola e Portugal, quem desencadeou os processos foi o Estado angolano dentro da política anticorrupção definida pelo Presidente da República João Lourenço.

A questão que se vai tratar nesta análise é a da possibilidade de acordo entre o Governo de Angola e Isabel dos Santos pondo fim aos processos. Tal hipótese tem sido levantada em vários debates públicos, e ainda recentemente foi objeto de um artigo por um prestigiado jornalista em Portugal.[4]

Antecipando a conclusão a que chegamos: analisando os factos, a lei e o contexto político como estão neste preciso momento, acreditamos que não é possível, nem oportuno realizar qualquer acordo entre o Estado e Isabel dos Santos.

A lei angolana

Em primeiro lugar, para chegar a esta conclusão temos a lei. Em Angola não existe nenhuma norma jurídica de aplicação geral que permita que o Estado e uma pessoa alvo de investigação judicial cheguem a um acordo. Mesmo que essa pessoa devolva os eventuais bens de que se tenha apoderado ilegitimamente. Tal hipótese, com referência aos tipos criminais do universo económico e financeiro aqui em causa, somente existe nos termos do artigo 57.º da Lei das Infrações Subjacentes ao Branqueamento de Capitais, Lei 3/14, de 10 de Fevereiro. Nessa norma estabelece-se que a restituição dá lugar à extinção da responsabilidade criminal se acontecer nos crimes previstos nos artigos 421. º a 425.º e 453.º do Código Penal. São assim passíveis de possibilidade de acordo os crimes de Furto, Subtração, destruição, ou descaminho de coisa própria depositada, Apropriação ilícita de coisa achada, Furto, destruição ou descaminho de processos livros de registo, documentos ou objetos depositados e Furto Doméstico. O Furto qualificado, previsto e punível pelo artigo 426.º já não pode ser objeto de extinção criminal. Além destes a responsabilidade também se pode extinguir em relação ao crime de Abuso de Confiança.

Figura n.º 1- As curtas possibilidades legais de acordo: Casos em que a lei prevê a possibilidade de extinção do crime face à devolução de bens (artigo 57.º da Lei 3/14 de 10 de Fevereiro)[5]

Artigo 421.º Código PenalFurto
Artigo 422.º Código PenalSubtração, destruição, ou descaminho de coisa própria depositada
Artigo 423.º Código PenalApropriação ilícita de coisa achada
Artigo 424.º Código PenalFurto, destruição ou descaminho de processos livros de registo, documentos ou objetos depositados
Artigo 425.º Código PenalFurto doméstico
Artigo 453.º Código PenalAbuso de confiança

Por esta enumeração facilmente se vê que o âmbito de negociação legal em termos criminais é muito reduzido. Em outras situações em que haja devolução dos montantes, a lei apenas permite a redução ou atenuação da pena. Adiante-se também que o artigo 56.º da lei que temos vindo a mencionar permite a dispensa de pena em casos puníveis com pena não superior a 2 anos ou multa de 120 dias, mas somente depois de efetuado julgamento, ficando tal dispensa na disponibilidade do juiz.

Consequentemente, a lei criminal angolana não dá margem de manobra às autoridades para realizarem exaustivas negociações e muito menos concluírem acordos juridicamente válidos.

Isto é o que se pode dizer aos processos criminais em curso em Angola, que, contudo, por estarem em segredo de justiça não têm contornos publicamente definidos. No entanto, é fácil concluir que não existe amplitude jurídica para negociações, uma vez que a imputações que lhe sejam feitas não se limitarão a pequenos crimes, furtos ou abuso de confiança.

*

Curiosamente, os processos contra Isabel dos Santos que têm tido maior impacto público e onde se procedeu ao arresto dos seus bens e empresas em Angola são de natureza civil. As ações fundamentais correm no Tribunal Provincial de Luanda com os números n.º 3301/2019-C e 33/2020-A. Como é sabido, aqui a possibilidade de acordo é permanente e faz parte dos princípios básicos do processo civil.

Nos processos civis que correm em Luanda contra Isabel dos Santos, ao contrário dos criminais, é legalmente possível o acordo. No entanto, também existe um obstáculo de monta. Na decisão judicial referente ao primeiro processo foi estabelecido que Isabel dos Santos devia ao Estado 1.136.996.825,56 USD, i.e. 1,1 mil milhões de dólares. Já no segundo caso, a juíza apurou um valor de 4.920.324.358,56 USD, 4,9 mil milhões de dólares. Não se entende se os dois valores somam, e a dívida de Isabel dos Santos a Angola tal como determinada indiciariamente pelos tribunais locais é de 6,1 mil milhões de dólares ou se o segundo valor envolve o primeiro, e a dívida reclamada é de 4,9 mil milhões. No fundo, face à magnitude dos montantes e ao raciocínio que efetuámos a diferença não é relevante para a conclusão que se segue.

A fortuna avaliada de Isabel dos Santos é de 1,7 mil milhões USD, segundo os últimos dados da Forbes.[6] Facilmente se percebe que mesmo entregando toda a sua fortuna Isabel dos Santos ainda ficaria a dever uma imensidão ao Estado, de acordo com as sentenças judiciais até agora produzidas. Pelo menos mais do dobro dessa fortuna. Nesse sentido, o Estado teria de fazer um grande “desconto” a Isabel dos Santos e teria de apresentar sólidos argumentos para sustentar esse “desconto”. Por outro lado, será que Isabel dos Santos estará disposta a abdicar da integralidade da sua fortuna, que mesmo assim não pagará a totalidade dívida? É duvidoso.

Fig. n.º 2- O diferencial entre as exigências patrimoniais do Estado angolano e a fortuna estimada de Isabel dos Santos

A situação em Portugal

Além dos processos angolanos existem oito investigações em Portugal contra Isabel dos Santos.[7] Mesmo tendo sido despoletados por iniciativa angolana, estes processos adquiririam autonomia e já não dependem apenas da vontade angolana, mas também da vontade portuguesa. Referem-se a possíveis crimes cometidos em Portugal, debaixo da jurisdição portuguesa. Portanto, um acordo teria de envolver também as autoridades judiciárias portuguesas. Note-se que a lei criminal portuguesa tem uma margem maior de possibilidade de acordo. A gama de crimes em que a restituição termina o processo em determinadas condições é maior e abrange a burla, o crime financeiro típico, além de ter sido anunciada uma reforma legislativa no sentido de introduzir a colaboração premiada no sistema judicial português. Portanto, por um lado pode ser mais fácil chegar a um acordo com referência aos processos em curso em Portugal, por outro lado, temos mais uma jurisdição com autonomia e vontade própria a ter em consideração.

Para fazer face aos desafios legais dificilmente Isabel dos Santos terá capacidade para liquidar as responsabilidades que lhe são exigidas. Sublinhe-se que além destas eventuais responsabilidades que lhe são pedidas, existem ainda as responsabilidades comerciais face à banca, fornecedores, etc.

A questão política

Se o enquadramento legal impossibilita qualquer acordo, a estrutura da política contra a corrupção é definitiva nessa impossibilidade.

A política contra a corrupção tem como último fundamento a credibilidade, pois além da punição dos eventuais prevaricadores, pretende diminuir drasticamente as práticas corruptas em Angola. Nesse sentido, a população e os eventuais corruptos têm de acreditar que a política é séria, consistente e que existe. Que não é uma mera bandeira propagandística. Sem credibilidade não há política contra a corrupção. Sem a existência de processos que têm princípio, meio e fim e a que todos assistam, não existe combate à corrupção. Portanto, credibilidade e consistência são as ideias chave deste combate. Isabel dos Santos é obviamente o símbolo central desta luta.

Abra-se um parenteses para sublinhar que, o contrário do propalado, Isabel dos Santos não é a única a estar abrangida pela luta contra a corrupção, nem de longe, nem de perto. Desde vários altos funcionários nas províncias ao genro e filha do primeiro Presidente da República Agostinho Neto, passando por Manuel Vicente que já viu vários bens apreendidos no decurso de inquéritos em curso na Procuradoria Geral da República de Angola, são muitos os sujeitos a apreensões de bens, inquéritos e processos judiciais no âmbito da denominada luta contra a corrupção.

Anotado este aspeto, é evidente que Isabel dos Santos pelo seu destaque público e pelos montantes envolvidos ocupa um lugar proeminente nessa no desenrolar dessa política.

É devido à sua posição central na gramática do combate à corrupção, e à impossibilidade legal de haver um acordo entre Isabel dos Santos e o Estado, que consideramos que na perspetiva da República esse acordo também não é politicamente aceitável.

A haver um acordo seria sempre realizado à margem da lei-como vimos não existe legislação que permita um acordo global- logo, sem transparência, e um dos pilares centrais do combate à corrupção deixaria de estar dentro das preocupações judiciárias. No fundo, haveria um esvaziamento.

Naturalmente, que tal a acontecer faria perder toda a credibilidade ao processo anticorrupção. A população entenderia como uma paragem, um recuo no combate, e os eventuais futuros corruptos compreenderiam que no futuro lhes bastaria entregar alguns dos seus proventos para saírem imunes. Consequentemente, teriam de desviar ainda mais dinheiro para fazer face a esses eventuais prejuízos futuros.

Quer isto dizer que o eventual acordo com Isabel dos Santos é politicamente prejudicial ao combate à corrupção porque lhe retira credibilidade e incentiva uma maior e ainda mais alargada corrupção no futuro.

Fig. n.º 3- O problema político que inviabiliza o acordo com Isabel dos Santos

Esta é a razão essencial que impossibilita um acordo. Tal acordo seria um sinal verde e um incentivo para a futura corrupção.

Facilmente, se percebe que, nestes termos, o acordo seria o óbito da política de combate à corrupção encetada por João Lourenço, consequentemente, eliminando o principal objetivo do mandato presidencial.


[1] Forbes https://www.forbes.com/profile/isabel-dos-santos/#20964e2d523f

[2] MakaAngola https://www.makaangola.org/2020/05/os-processos-contra-isabel-dos-santos-em-angola/

[3] Sábado https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/todos-os-processos-contra-isabel-dos-santos-em-portugal

[4] Celso Filipe in https://www.jornaldenegocios.pt/economia/mundo/africa/angola/detalhe/isabel-dos-santos-e-a-vaga-que-pode-ser-de-fundo-ou-nao

[5] Por simplificação, apenas se considera o universo de crimes económico-financeiros, bem como um patamar de crimes graves.

[6] Ver nota 1

[7] Ver nota 3