China e Angola: compreender uma relação complexa em tempos de polarização mundial

Rui Verde ( African Studies Centre, University of Oxford) – Palestra proferida da Fundação Rui Cunha em Macau, 22 de Maio de 2023

Este é um resumo de algumas das conclusões de um trabalho em curso sobre as relações entre Angola e a China desde o início dos anos 2000, que estou a desenvolver na Universidade de Oxford. O trabalho abordará três temas: o início das fortes relações económicas entre os dois países, as consequências perceptíveis e a situação actual.

O início

Não seria correcto começar uma análise das relações entre a China e Angola no início do século XXI sem considerar brevemente as interacções anteriores entre os dois países.

Referindo-nos apenas à República Popular da China, e não à China Imperial e aos esforços do Almirante Zheng He no século XV. É de notar que, pelo menos a partir da década de 1960, a China teve algum interesse e influência em Angola, e vice-versa. A célebre viagem de Chou En-Lai a África em 1963-1964, a que WAC Adie se referiu como “o Safari de Chou En-Lai”, resultou na primeira abordagem chinesa contemporânea intensa ao continente africano e deu origem a dois tipos de movimentos em relação a Angola, então uma colónia portuguesa em guerra de libertação.

Portugal, a potência colonial autoritária em guerra em Angola, alimentou a ideia de estabelecer relações diplomáticas com a China comunista. Os dirigentes portugueses tentaram avançar para uma espécie de avant la lettre Nixon-Kissinger, mas acabaram por ser travados pela oposição dos EUA.

Os movimentos de libertação angolanos, por sua vez, começaram a contar com o apoio da China em termos de armamento e treino. Na fase inicial, a China não tinha uma preferência forte e ajudou todos os movimentos, incluindo o MPLA, a FNLA e a UNITA.

A partir de certa altura, dado que a União Soviética tinha ‘posto todos os seus ovos no cesto do MPLA’, a China optou principalmente por apoiar a UNITA como forma de contrabalançar os soviéticos. No entanto, as acções diplomáticas da China foram sobretudo pragmáticas, e as suas tentativas de estabelecer relações com a FNLA e o MPLA continuaram ao longo dos anos.

Com a independência de Angola em 1975 e a transformação do país num campo da Guerra Fria, a diplomacia chinesa viu-se num dilema. A China não queria apoiar os Estados Unidos, mas considerava certamente os soviéticos como o seu principal inimigo. Por isso, adoptou um discurso público de paz e fraternidade e virou-se contra o MPLA, por considerar a organização demasiado pró-soviética.

As relações com o novo governo de Luanda eram pouco inspiradoras; de facto, Pequim ignorou-o durante algum tempo.

O reatamento das relações foi gradual e sem especial intensidade. O último passo no processo de normalização das relações sino-angolanas foi a visita do Presidente José Eduardo dos Santos a Pequim, em Outubro de 1988. Embora a visita tenha sido cordial, não foi recebida com entusiasmo. Durante a década de 1990, a China estava a passar por um importante processo de reforma interna e as interacções com Angola não eram uma prioridade.

Por conseguinte, não existe uma base histórica que permitisse prever que a China se tornaria o parceiro económico mais importante de Angola e que esta relação definisse um possível modelo de intervenção em África.

De muito fracas no início, as relações da China com o governo do MPLA passaram a ser mornas, embora não houvesse qualquer indício de proximidade.

No entanto, surpreendentemente, com o fim da guerra civil em Angola, em 2002, o país voltou-se para a China em busca de apoio económico, que a China forneceu, surgindo uma relação contínua.

A explicação oficial para esta relação repentina e aparentemente estreita é geralmente enquadrada no paradigma de um Estado racional que toma decisões institucionais. Alguns académicos explicam que o regime angolano recorreu ao FMI para financiar a reconstrução do país no pós-guerra; no entanto, insatisfeito com as exigências de responsabilização e transparência do FMI e com a falta de vontade do fundo para se comprometer e acomodar os desejos angolanos, Angola optou por obter financiamento da China num acordo entre Estados.

A realidade parece, no entanto, mais complexa. Quando terminou a guerra civil, Angola não tinha um Estado funcional e institucional, e uma boa parte das funções do Estado foram ‘privatizadas’ e entregues a entidades externas, permitindo aquilo a que hoje se chama ‘captura do Estado’. Por exemplo, a segurança dos diamantes era assegurada por Arkady Gaydamak (empresário franco-israelita de origem russa, e talvez espião de várias agências), o fornecimento de armas por Pierre Falcone (empresário francês) e vários aspectos imobiliários e financeiros pelo Espírito Santo Financial Group, onde se destacava a empresa ESCOM e o seu homem forte Hélder Bataglia.

A par desta “privatização” das funções do Estado, José Eduardo dos Santos, tal como outros membros da elite angolana, desconfiava do Ocidente e das suas instituições.

É neste contexto que se insere o acordo com a China.

A relação era uma espécie de empreendimento privado que ia ao encontro dos desejos de Dos Santos, que não queria estar dependente do FMI ou do Ocidente. Para ele, a aproximação à China era uma questão de segurança nacional.

Por isso, há dois pontos a salientar. O primeiro é que Dos Santos optou por não recorrer ao FMI devido a considerações de segurança nacional; ou seja, o Presidente angolano não queria estar demasiado dependente do Ocidente.

O segundo e mais crucial ponto é que Angola geriu algumas das vantagens trazidas pela China em grande medida como um feudo privado. Aparentemente, os contactos iniciais para este fim foram promovidos pelo então presidente da ESCOM, Bataglia, e pelo traficante internacional de armas Pierre Falcone, do famoso caso Angolagate.

No entanto, Angola apresentou uma fachada oficial à China. Inicialmente, foi estabelecido um acordo de financiamento entre o EximBank e o Ministério das Finanças de Angola no valor de 2 mil milhões de dólares, que foi aprovado pelo Conselho de Ministros de Angola em Março de 2004. Na mesma altura, o Ministério das Obras Públicas de Angola assinou um contrato com uma empresa chinesa, a Jinagsu International, para a construção do Palácio da Justiça em Luanda. Estas duas acções são as primeiras a serem referenciadas pelo Diário da República, no âmbito desta nova relação sino-angolana.

Do lado chinês, o seu interesse em Angola não era específico, de acordo com as fontes chinesas que entrevistámos, mas baseava-se nos três aspectos essenciais seguintes:

  • A sua política económica internacional, que foi concebida por Mao Zedong em “Sobre as Dez Principais Relações”, onde declarou: “Temos de aprender a fazer trabalho económico com todos os que sabem fazê-lo, sejam eles quem forem”. Obviamente, foi também o resultado das Quatro Modernizações que se concretizaram externamente com a política de Jiang Zemin de “Go Out” e a adesão da China à OMC em 2001.
  • A sua necessidade de petróleo e matérias-primas (que Angola possuía em abundância) para sustentar o crescimento chinês.
  • O seu excedente de pessoas e de capital que estava pronto para ser investido.

Por parte de Angola, o processo-crime lançado no Verão de 2022 contra os generais Kopelipa e Dino, antigos homens fortes de Dos Santos, tornou claros os mecanismos privados que deram origem às intensas relações entre Angola e a China. Foi explicado que, do lado angolano, Bataglia, da ESCOM, com Manuel Vicente (o CEO da Sonangol e futuro vice-presidente do país) e Eugénio Neto, outro homem da ESCOM, realizaram uma famosa primeira visita à China. Foi durante esta visita que foi delineada toda a estratégia de colaboração entre os dois países.

Foram criadas inúmeras empresas, tendo à frente os líderes angolanos Vicente, Kopelipa e Dino (este último terá sido uma figura de proa de Dos Santos). Por exemplo, o China International Fund (CIF) e a China Sonangol são entidades privadas criadas na altura por Vicente, Kopelipa e Dino, embora com designações supostamente oficiais.

A questão é que, para além dos acordos oficiais, existia uma relação paralela que se tornou substancialmente relevante porque as acções não foram conduzidas entre Estados, mas por entidades privadas entre eles.

As consequências perceptíveis

Naturalmente, as consequências do envolvimento da China em Angola foram extremamente positivas para a reconstrução do país após a guerra civil (1975-2002). As empresas chinesas construíram 2800 quilómetros de caminhos-de-ferro, 20 000 quilómetros de estradas, mais de 100 000 projectos de habitação social, mais de 100 escolas e mais de 50 hospitais em Angola. A central hidroeléctrica de Kaculo Kabaça, o aeroporto internacional Agostinho Neto, as cidades de Kilamba Kiaxi e Zango 5, o caminho-de-ferro de Benguela, o porto de Caio, a central eléctrica do Soyo e muitos outros projectos de cooperação foram implementados com êxito. Muitas empresas chinesas investiram em Angola e deram importantes contributos para a diversificação económica e a industrialização do país[1] .

No entanto, algumas obras e actividades emblemáticas que resultaram desta colaboração sino-angolana tornaram-se símbolos de corrupção desenfreada, uma vez que alguns dos altos funcionários públicos angolanos aproveitaram e desviaram vários fundos para actividades corruptas.

Dois exemplos ilustram este facto. O primeiro diz respeito, naturalmente, à compra e venda de petróleo. Segundo as apurações das actuais autoridades angolanas, entre 2004 e 2007, quando Manuel Vicente liderava a petrolífera angolana Sonangol, autorizou a venda de petróleo à China no valor de, pelo menos, 1,5 mil milhões de euros, que foram pagos pela China, mas desviados. Durante este período, a Sonangol vendeu à China um grande número de barris de petróleo bruto à Sonangol International Holding Limited, a título de venda à consignação para a constituição de um fundo de reconstrução nacional. A Sonangol entregou o petróleo à empresa, mas não recebeu qualquer pagamento após a entrega. A empresa intermediária vendeu o petróleo e ficou com o dinheiro da venda, que foi depois creditado nas suas contas no Banco da China. A empresa intermediária pertencia a Vicente e Kopelipa e a alguns outros sócios.

Documentos ainda em estudo, a que tive acesso, indicam que, entre 2005 e 2010, a venda de petróleo angolano à China gerou mais de 85 mil milhões de dólares. Desse montante, provavelmente pelo menos 25,7 mil milhões de dólares terão sido divididos entre dirigentes angolanos através de uma teia de esquemas tecida por vários intermediários.

Noutra situação, a empresa CIF Limited, que aparentemente era maioritariamente detida por ministros angolanos, apropriou-se de 24 edifícios do Estado construídos pela empresa Guangxi na centralidade do Zango. O Estado pagou a construção, mas foi a Delta Imobiliária (empresa de Vicente, Dino e Kopelipa) que vendeu os edifícios à Sonangol EP, através da Sonip Lda, sob a direcção de Vicente, por um valor total de US$475.347.200[2] .

O que é certo é que dos U$2 biliões de dólares de crédito em 2005, Angola detinha U$23 biliões de dólares de stock de dívida pública na China em 2017[3] .

Depois de Xi Jinping ter assumido a liderança da China, foram tomadas medidas para erradicar a corrupção e as autoridades chinesas neutralizaram os elementos corruptos, como Sam Pa (um magnata dos negócios que se crê ser o chefe do 88 Queensway Group) que teria ajudado os angolanos nestes esquemas. As autoridades chinesas também enviaram equipas de auditoria a Angola para fiscalizar as compras de petróleo.

Situação actual

O advento da presidência de João Lourenço englobou uma tentativa de reabertura de Angola ao Ocidente. No entanto, tal não implicou um enfraquecimento das relações com a China, como sugerem alguns estudos recentes, que expõem um certo mal-estar da perspectiva angolana em relação à China. Carvalho et al. falaram de um ‘casamento de conveniência’; Silva afirmou que ‘a lua-de-mel de Angola com a China [tinha] chegado ao fim’; e Fabri disse que ‘A lua-de-mel China-Angola acabou; será que África está a ouvir?[4]

Mais uma vez, a realidade não é tão linear. É certo que se registou um reequilíbrio das relações, mas esse reequilíbrio partiu de ambas as partes e não significou o fim das suas relações.

O acto de abertura da presidência de João Lourenço em relação à China em 2017-2018 foi aparentemente pedir mais dinheiro. Inicialmente, houve um alegado novo empréstimo da China no valor de 11 mil milhões de dólares, que mais tarde se revelou ser de 2 mil milhões de dólares, mas que apenas serviu para pagar as dívidas de Angola a empresas chinesas.

No entanto, a contenção da China não era nova em Angola e nada tinha a ver com João Lourenço, como alguns agora afirmam. Em 2016, o Banco de Desenvolvimento da China tinha suspendido fundos de linhas de crédito a Angola, nomeadamente à Sonangol, acusando a empresa e o Ministério das Finanças angolano de incumprimento dos contratos. Anteriormente, em 2015, como já foi referido, auditores chineses terão estado em Angola para averiguar a dimensão das despesas da Sinopec no país. Suspeitaram de várias irregularidades, como, por exemplo, o facto de a petrolífera chinesa ter pago quase mil milhões de dólares adicionais para financiar uma quota que Sam Pa, através da China Sonangol International, tinha adquirido em certos blocos petrolíferos angolanos que não geravam lucros.

Estas atitudes parecem indicar que houve alguma prudência ou contenção por parte da China relativamente aos negócios em Angola.

No entanto, posteriormente, a China foi generosa ao suspender o pagamento da dívida externa angolana devido à pandemia. Além disso, os bancos chineses concordaram com alguma forma de renegociação da dívida.

O comércio entre a China e Angola cresceu 42% em 2021 e continuou a bom ritmo nos primeiros seis meses de 2022, com um aumento homólogo de 33%. Desta forma, a China continuou a ser o principal parceiro económico de Angola.

Além disso, os números do banco central angolano mostram que, desde 2020, o país pagou cerca de 2 mil milhões de dólares de capital à China. Actualmente, de acordo com os números mais recentes apresentados pelo Ministro das Finanças angolano, Angola está a aproveitar a subida dos preços do petróleo para acelerar os seus planos de redução da dívida e suavizar os reembolsos à China, o seu maior credor.

Angola deve actualmente à China 18 mil milhões de dólares, ou seja, cerca de 40% da sua dívida externa total, depois de ter liquidado empréstimos no valor de 1,32 mil milhões de dólares em 2022[5] .

Todos estes dados mostram que as relações de Angola com a China estão a entrar numa nova fase – uma fase madura, mas que não está a terminar.

 Acontece que esta nova fase não depende apenas da vontade de Lourenço de se abrir ao Ocidente ou do mal-estar de Angola com a China, como alguns argumentaram; depende também dos compromissos chineses e da estratégia mundial.

É importante abordar primeiro a questão da chamada “armadilha da dívida” e depois os desenvolvimentos mais recentes na relação sino-angolana.

A verdade é que, tal como os credores ocidentais do passado em relação a África e à América Latina, a China está numa curva de aprendizagem e, dado o pragmatismo que parece guiar as suas relações, será necessário que a China evite cenários dramáticos e considere os remédios habituais de renegociação e perdão da dívida.

Não há lugar para falar de uma “armadilha da dívida”. Sabe-se que, no século XIX, a Grã-Bretanha foi confrontada com problemas de dívida de países terceiros, nomeadamente na América Latina e no Egipto. A solução passou muitas vezes pelo envio de canhoeiras ou pelo controlo da governação dos países endividados.

No final do século XX, os Estados Unidos tinham grandes problemas de endividamento com os países do chamado Terceiro Mundo. Neste caso, a solução foi mais racional, com ênfase no Plano Brady (Brady Bonds).

Obviamente, é agora a vez de a China enfrentar o mesmo problema, mas não se fala de canhoeiras ou da criação de qualquer protectorado.

Também se poderia estabelecer um paralelo com as relações da União Soviética com o Presidente Nasser do Egipto. Sabe-se que, durante o governo de Khrushchev, a União Soviética financiou largamente Nasser e a barragem de Assuão; no entanto, mais tarde, com Brezhnev, prevaleceu uma nova atitude que apelava à austeridade e negava o adiamento do pagamento das dívidas. Isto acabou por conduzir a Sadat e ao declínio da influência soviética no Egipto.

Com estes exemplos históricos em mente, a China está certamente a equilibrar as suas opções, não optando por uma desvinculação. Está a avaliar cuidadosamente a situação e a procurar os mecanismos económicos e financeiros adequados para resolver o problema, tal como os Estados Unidos fizeram na década de 1980.

Em relação a Angola, refira-se que uma das primeiras viagens do novo ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Qin Gang, foi a Angola, em Janeiro último, tendo, na mesma altura, os respectivos governos assinado um acordo segundo o qual a China despenderia 249 milhões de dólares para financiar um projecto nacional de banda larga em Angola.

Em suma, é evidente que as relações entre a China e Angola estão a evoluir, e não a terminar ou a chegar a um beco sem saída, como alguns argumentaram. Este é o momento de calibrar cuidadosamente e renovar a amizade.

Se me for permitido usar uma metáfora baseada no meu vinho português preferido, o Palácio da Brejoeira, pode dizer-se que as relações sino-angolanas tiveram uma fase inicial de pura alegria, depois veio a ressaca e agora é tempo de beber com moderação e sofisticação entre os verdadeiros conhecedores.


[1] Shang, João (2023), A parceria estratégica entre China e Angola tem perspectivas amplas, coexistindo oportunidades e riscos. Comunicação ao III Congresso Internacional de Angolanística (ainda não publicada)

[2] Resumo do processo judicial em Verde, Rui (2022), Delfins de JES acusados na hora da sua morte, https://www.makaangola.org/2022/07/delfins-de-jes-acusados-na-hora-da-sua-morte/

[3] Dados do BancoNacional de Angola, https://www.bna.ao/

[4] de Carvalho, P., Kopiński, D., & Taylor, I. (2022). Um casamento de conveniência nas rochas? Revisitando a relação sino-angolana. Africa Spectrum, 57(1), 5-29.

Silva, Cláudio (2022), How Angola’s honeymoon with China came to an end, The Africa Report, https://www.theafricareport.com/202465/how-angolas-honeymoon-with-china-came-to-an-end/.

Fabri, Valerio, (2022), The China-Angola Honeymoon is over, is Africa listening?, Geopolitica.info, https://www.geopolitica.info/china-angola-honeymoon-over/

[5][5] Idem, ver nota 3.

Condições e soluções para a retirada do subsídio aos combustíveis em Angola

Resumo da política proposta

Neste documento apresentam-se condições necessárias e soluções possíveis para a retirada do subsídio aos combustíveis em Angola.

1-As condições necessárias são:

a) Criação de Mecanismo de Transparência de fluxos financeiros orçamentais. O destino das poupanças realizadas com a retirada dos subsídios, enfatizando aspetos sociais;

b) Modificação da estrutura de mercado oligopolista. Promoção de concorrência no mercado da distribuição de combustíveis. Uma hipótese é a cisão da Sonangol Distribuição em três entidades e privatização de duas delas.

2-As soluções possíveis são:

a) Foco no sujeito

aa) Subsídio direto aos mais desfavorecidos e passe social

ab) Subsídio direto às empresas

ac)Benefício fiscal /Imposto negativo a aa) e ab)

b) Foco no objeto

ba) Preços de combustível subsidiado continua para veículos de cilindrada inferior

bb) Preços de combustível subsidiados continuam para empresas de transporte e similares

c) Sistemas compósitos

***

Eliminação subsídios aos combustíveis: FMI e Vera Daves

É uma parte integrante de qualquer intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) mandar retirar subsídios aos combustíveis, onde estes existam. Naturalmente, que a mesma cartilha foi seguida em Angola criando esse ônus ao governo angolano.

Em termos de política fiscal, no recente Staff Report de acordo com o artigo IV o Fundo torna esta a principal medida a tomar ao nível da política fiscal, prescrevendo que: “as autoridades precisam tomar uma ação política para aumentar as receitas fiscais não petrolíferas e eliminar gradualmente os subsídios aos combustíveis, enquanto aumentam o apoio aos vulneráveis. Estas medidas devem ajudar a reduzir a dívida vulnerabilidades, criar espaço fiscal e alcançar seus objetivos fiscais e de dívida de médio prazo”.[1] (sublinhado nosso).

A ministra Vera Daves afina pelo mesmo diapasão, e em entrevista recente afirmou que a retirada dos subsídios aos combustíveis é “o elefante no meio da sala, e com sapatos de bailarina”, afirmando que que a decisão política estaria tomada e só não foi implementada porque falta é encontrar o mecanismo que diminua o impacto nos mais desfavorecidos. E explicou que: “É um subsídio cego, a que toda a gente acede, e com essa receita poderíamos ter uma política mais direcionada em vez de subvencionar quem não precisa”. Adicionando argumentos para a eliminação desta medida como “as fugas de combustível para os países vizinhos, a falta de participação no mercado e a consequente perda de receita fiscal, para além da questão da desigualdade de tratamento. São várias distorções ao mercado, mas temos consciência que o impacto, principalmente por via dos transportes, é considerável”. Reconheceu também o impacto negativo nos municípios, nas indústrias e nas fazendas e no preço dos fretes para transportar comida. E concluiu dizendo: “Temos tudo mapeado, agora o desafio está em tirar o sapato da bailarina pensando em medidas que possam mitigar a remoção” deste subsídio que custa entre 3 a 4 mil milhões de dólares, cerca de 2,8 a 3,7 mil milhões de euros, por ano. “É um valor considerável, tendo em conta que o Programa de Integração e Intervenção nos Municípios (PIIM) tem 2 mil milhões, portanto seriam dois PIIM.[2]

Parece, portanto, que o FMI e Vera Daves estão determinados a eliminar os subsídios aos combustíveis, aparentemente, não sabem ainda é como.

A questão política e o mecanismo de transparência

É evidente que estas eliminações, mesmo fazendo sentido economicamente, e já abordaremos as dúvidas nesse âmbito, têm um impacto político grande e não podem ser encaradas de “ânimo leve”. Desde o Egito, ao Irão ao Sudão, a França, as mudanças nos preços de combustíveis têm impactos na estabilidade política, pelo que a primeira avaliação a fazer é política.

O grande argumento adiantado por Vera Daves é aquele que tecnicamente se denomina crowding out. Ao gastar 2,8 a 3,7 mil milhões de euros, por ano em subsídios aos combustíveis, o governo não os gasta no setor social, em educação e saúde, por exemplo. Na realidade, argumenta, o que é colocado no abaixamento do preço da gasolina é retirado do bem-estar do povo. Aceitando o argumento, há que o sustentar e convencer a população. Nestes termos, a primeira tarefa seria criar um mecanismo de transparência (talvez em forma de site digital) que explicasse à população como seriam canalizados os fundos dos subsídios para os outros setores, clarificando os planos do governo. Mil milhões para escolas, 500 milhões para docentes, etc. Fazendo um esquema simples e divulgando-o, todos perceberiam o destino do dinheiro, e, depois ao longo dos primeiros anos, deveria haver uma apresentação anual pública desse fluxo. Explicava-se com um esquema para onde tinham ido as poupanças com a retirada dos subsídios aos combustíveis. Consequentemente, a população veria que não tinha sido invenção da ministra das Finanças, mas que estava efetivamente a acontecer.

Uma primeira medida preparatória de cariz político é a criação de um Mecanismo de Transparência por todos consultável que explique o percurso do dinheiro, quanto sai dos subsídios aos combustíveis e onde vai parar nos vários setores do orçamento. Assim, a população vê os benefícios.

Fig. n.º 1- Exemplo de Mecanismo de Transparência do fluxo dos fundos retirados do subsídio aos combustíveis, a ser apresentado anualmente à população

O problema da estrutura de mercado

Entrando na área económica há uma questão que se coloca e deveria ser confrontada. É evidente que a cessação do subsídio aos combustíveis fará aumentar os preços destes.

Em 2021, havia em Angola 951 postos de combustíveis, dos quais 432, seriam controlados por pequenos operadores sem marca. A Sonangol distribuidora é a maior do segmento de distribuição com uma quota de mercado (vendas) de 64%, a Pumangol é o segundo maior player com 24% sendo que os restantes 16% estão distribuídos pela Sonangalp e a Tomsa (Total Marketing and Services Angola[3]).

A questão que se coloca é a definição da estrutura deste mercado. Uma primeira análise poderia aparentar estarmos perante um mercado concorrencial, mas o peso da Sonangol e da Pumangol, representando um total de 78% de quota de mercado de vendas indica que estamos perante um mercado de tipo oligopolístico, em que poucas empresas dominam o setor. É sabido da teoria dos preços que os mercados oligopolistas têm preços mais altos do que os mercados em concorrência perfeita, em que ninguém domina o mercado. O preço em oligopólio é fixado pelas empresas acima do nível de preço que prevaleceria em competição e abaixo do nível de preço maximizador de lucros de monopólio. É uma estrutura de mercado que se constitui num caso intermediário, onde há poucas empresas que competem entre si[4]. Consequentemente, retirar o subsídio aos preços de combustíveis numa situação de oligopólio equivaleria a um preço mais alto do que o preço de equilíbrio de mercado e a colocar a população a financiar lucros mais elevados das empresas de distribuição de combustíveis.

É fundamental ao mesmo tempo que se começa a gradual retirada dos preços aumentar o número de operadores relevantes no mercado e colocá-los a concorrer entre si, sem que ninguém domine o mercado.

O mais aconselhável era proceder à cisão da Sonangol Distribuidora em três empresas diferentes e privatizar de imediato duas delas. Assim, teríamos, pelo menos 5 operadores relevantes em concorrência.

Fig. n.º 2- Esquema de cisão da Sonangol Distribuição para garantir concorrência no mercado

Formas de compensação/mitigação da retirada de subsídios

Descrita que foi a necessidade de criação de um Mecanismo de Transparência de Fluxo de Fundos para efeitos de consenso político, bem como a necessidade de reformar a estrutura de mercado do segmento downstream como maneira de evitar a formação de preço em oligopólio, isto é, mas altos do que o normal, é altura de fazer sugestões de compensação da retirada dos subsídios.

O ponto de partida é que não haverá uma poupança da totalidade dos valores apontados como custo, 2,8 a 3,7 mil milhões de euros, por ano, e que há setores e populações que devem ser protegidos. Falamos, naturalmente, das populações com menos rendimentos e as áreas dos transportes e distribuição alimentar e agrícola.

As medidas podem partir de vários focos:

a) Foco no sujeito

aa) Subsídio direto aos mais desfavorecidos e passe social

ab) Subsídio direto às empresas

ac) Benefício fiscal /Imposto negativo a aa) e ab)

b) Foco no objeto

ba) Preços de combustível subsidiado continua para veículos de cilindrada inferior

bb) Preços de combustível subsidiados continuam para empresas de transporte e similares

c) Sistemas compósitos

Explicitando cada um dos itens e possibilidades. Teríamos o seguinte:

a)         Foco no sujeito

aa) Subsídio direto aos mais desfavorecidos e passe social

Uma primeira hipótese seria a concessão de um subsídio de combustível a todos aqueles que tivessem um veículo e/ou utilizassem combustível em determinada atividade e apresentassem um rendimento abaixo de determinado patamar. Queria isto dizer que o cidadão que utilizasse combustível e tivesse rendimentos baixos, receberia um subsídio direto do Estado com vista a minorar os efeitos negativos da subida do preço dos combustíveis.

Além disto poderia ser criado um passe social de valor reduzido, que permitisse a qualquer cidadão utilizar os transportes sem repercussão do valor da subida dos combustíveis

ab) Subsídio direto às empresas

Outra hipótese seria a do subsídio direto às empresas de transportes e distribuição. Para que estas não fizessem repercutir a subida do preço dos combustíveis nos preços cobrados ao público, haveria uma compensação paga pelo Estado que cobriria o diferencial. As empresas receberiam fundos para não aumentar os preços.

ac) Benefício fiscal /Imposto negativo a aa) e ab)

Nesta situação, o instrumento utilizado de compensação seria o sistema fiscal, e não as transferências diretas de subsídios. Permitir-se-ia às pessoas singulares até certo patamar de rendimento e às empresas dos setores afetados apresentaram como dedução fiscal o valor do diferencial pago com a subida dos preços. Por exemplo, se antes pagavam 5 e depois passassem a pagar 10, teriam oportunidade de apresentar um valor de 5 como dedução fiscal, pagando um menor imposto.

Numa situação superficial, tal possibilidade dedutiva apenas se aplicaria a entes que pagassem imposto, ficando de fora os que não pagam ou estão isentos. Nestes casos, dever-se-ia fazer funcionar um imposto negativo, isto é, um sistema através do qual pessoas de baixo rendimento receberiam pagamentos suplementares do governo, em vez de pagar impostos. Esses pagamentos suplementares seriam iguais aos montantes adicionais gastos em combustível por estas pessoas.

b)         Foco no objeto

ba) Preços dos combustíveis subsidiado continua para veículos de cilindrada inferior

Nesta hipótese, o que aconteceria seria o estabelecimento de diferentes níveis de preços para os combustíveis de acordo com a cilindrada dos veículos. Veículos de baixa cilindrada pagariam um preço mais baixo e vice-versa. Seria uma espécie de preço progressivo.

bb) Preços dos combustíveis subsidiados continuam para empresas de transporte e similares

Neste caso, o sistema seria o mesmo que indicado acima, com a diferença que o preço benéfico seria aplicado aos veículos das empresas de transporte e similares

c) Sistema compósito

É evidente que os sistemas acima referidos, podem ser misturados ou complementados uns pelos outros, cabendo ao decisor político encontrar a melhor combinação técnica.

Fig. n.º 3- Possíveis soluções compensatórias para a retirada dos subsídios aos combustíveis

Necessidade de cálculos financeiros

Não se apresentam cálculos financeiros neste trabalho porque os números não são conhecidos. A ministra das Finanças apresenta uma ordem de grandeza de gastos atuais com o subsídio de combustíveis que é entre 2,8 a 3,7 mil milhões de euros, por ano. Facilmente, se verifica que o diferencial é demasiado grande (900 milhões de euros) para se proceder a uma aritmética mais fina da situação.


[1] IMF, STAFF REPORT FOR THE 2022 ARTICLE IV CONSULTATION, February 7, 2023, p. 7.

[2] https://angola24horas.com/component/k2/item/26418-governo-angolano-prepara-fundo-de-investimento-imobiliario-para-gerir-ativos-recuperados

[3] Dados retirados de Expansão: https://expansao.co.ao/expansao-mercados/interior/sao-951-postos-de-combustivel-e-454-de-bandeira-branca-101135.html

[4] Ver por exemplo, George J. Stigler, https://cooperative-individualism.org/stigler-george_a-theory-of-oligopoly-1964-feb.pdf

Angola: nova constituição, nova república?

DOCUMENTO DE REFLEXÃO

Situação atual e anocracia

Numa situação habitual, a agitação e tensão que se sentiu nos meses que precederam as eleições gerais de agosto de 2022 em Angola, teria dado lugar à normalidade e tranquilo funcionamento das instituições até ao seguinte ato eleitoral a ocorrer em 2027. No entanto, as fortes clivagens que se sentiram e aquela espécie de contenda quase global que existiu até agosto não parece diminuir, criando uma situação de constante agressão, sem um fim à vista no presente sistema. Sintoma disso é a recente entrevista dada pelo líder da oposição a um jornal português, em que declara “Nem eu, nem o partido reconhecemos a vitória do MPLA, porque sabemos que a UNITA teve mais votos. Escutámos as pessoas em todo o país. A sociedade queria que tomássemos conta das instituições, mas não quisemos o caos.”[1]

Consequentemente, de um lado, o principal partido da oposição assumiu uma política que chamaremos de “dupla via”. Tal política contesta o governo dentro das instituições, embora não lhes reconhecendo legitimidade, desafiando também as próprias instituições. A “via dupla” aceita que a oposição se faz dentro das instituições e fora delas; de certa maneira, as instituições são vistas como mais um instrumento de um projeto mais amplo de confronto com o governo. Ora é evidente que esta postura leva a um maniqueísmo difícil de gerir e coloca em causa qualquer abertura e respeitabilidade que se pretenda com o investimento. A falta de respeito pelas instituições torna tudo demasiado dependente da vontade dos decisores políticos e da conjuntura.

Do outro lado, o partido do governo sente-se embaraçado em levar avante as suas anunciadas reformas, é como se o partido não fosse um, mas dois partidos. Uma massa partidária está insatisfeita com as mudanças propostas, queria que João Lourenço fosse apenas um gestor mais hábil do que José Eduardo dos Santos, mas não que introduzisse reformas de fundo, outro sector pretende que sejam tomadas efetivas reformas e sente-se incomodado com a eventual lentidão dessas reformas. Têm a noção que sem um profundo processo reformista, Angola se pode transformar num Estado sem futuro.

Há assim uma forte instabilidade, por razões diversas, nos partidos que formam a sustentação do sistema político. A Assembleia Nacional não parece ser uma câmara deliberativa do sentir da nação, mas um mero palco duma disputa mais alargada, tornando-se num meio e não num fim, retirando-lhe o peso soberano que lhe seria inerente. Com um registo mais atemorizador surge a justiça. Aquele que é o pilar básico de um Estado Democrático de Direito, oferece mais dúvidas do que certezas. No combate à corrupção, com honrosas exceções, o sistema judicial tem-se pautado pela ineficiência e lentidão, não se percebendo já para onde caminha esse programa estruturante do Estado.  Como já escrevemos: “É verdade que o desenho do Tribunal Supremo contido na Constituição de 2010 ajuda à sua disfuncionalidade. Na verdade, o legislador constitucional angolano quis fazer um tribunal seguindo o modelo da Supreme Court norte-americana enxertado num sistema judicial de tipo romano-germânico, isto é, português. Ora um tribunal de topo no sistema judicial português, alemão ou francês, nada tem a ver com um tribunal de topo num sistema anglo-americano. São conceitos e estruturas judiciais diferentes. O que se pede a um tribunal supremo norte-americano não é o que se pede a um supremo tribunal português. No primeiro caso, apenas grandes e inovadoras questões de direito lá chegam. É já uma espécie de tribunal de reflexão, enquanto, no segundo caso-romano-germânico- o supremo funciona como última instância de recurso para quase todos os casos judiciais. Todavia em Angola, pensou-se um tribunal à americana para funcionar à portuguesa. Portanto, uma estrutura leve e que apenas se dedicava a um pequeno número de processos teve de se defrontar com a tarefa de ser um tribunal habitual de recurso para uma miríade de casos. Isso só podia dar mau resultado, como deu. Além da disfuncionalidade do desenho constitucional, tem-se entendido que os juízes do Tribunal Supremo não têm a preparação adequada para lidar com as complexidades do crime económico-financeiro, não tendo ao longo da sua carreira deparado com essas questões ao nível sofisticado a que têm estado a aparecer, o que tem levado a algumas decisões muito criticadas e a grande mora processual. Iniciando o país simultaneamente uma fase de grande apelo ao investimento estrangeiro, bem como apostando na luta contra a corrupção, é bem de ver que um tribunal mal desenhado e pensado para outros tempos tem de ser reformado e remodelado.”[2]

No seu geral, a justiça não tem oferecido garantias de celeridade e imparcialidade técnica, e os seus atores têm tido uma tendência surpreendente para se envolverem em escândalos consecutivos.

Por parte da população começa a haver uma ideia tímida, mas discutida em vários fora, que as atuais instituições e partidos políticos foram concebidos para um ambiente de guerra e confronto, estando essas características no seu âmago, e, por isso, não estão aptos a lidar com uma nova Angola, em que os objetivos centrais sejam o desenvolvimento e o bem-estar da população. Quer isto dizer que se considera que os “velhos” partidos já não correspondem aos desejos e interesses da população, não oferecendo soluções consistentes e apelativas. A taxa de abstenção das últimas eleições gerais (54%) é espelho dessa situação.

Uma Assembleia Nacional que se transformou em mero instrumento-eco de poder e contrapoder, uma justiça inepta e um sistema partidário anacrónico, definem o presente sistema institucional angolano.

Toda esta situação, um pouco difusa, mas cujos sinais abundam, podem tornar o país numa anocracia. O que é uma anocracia? A anocracia vem sendo definida como um regime instável que combina elementos de autoritarismo e democracia. A anocracia tem um desenvolvimento incompleto de mecanismos de dissensão e consensualização e associa-se a uma permanente agitação ou ingovernabilidade, que dificultam o processo político[3]. A existência duma situação anocrática aumenta a probabilidade [4] de uma guerra civil. Colocando o tema de outra forma, o que procura interrogar é se a situação angolana se apresenta inerentemente instável e pode redundar numa guerra civil?

A resposta é simples, embora tendo duas partes. Não, Angola não vive ainda uma situação de anocracia. Contudo, são exigíveis medidas estruturantes que ultrapassem os presentes bloqueios e insatisfações.

Nova Constituição e Nova República

É necessário criar um Estado ágil, com instituições respeitadas, uma administração pública funcional e uma economia de mercado com atores livres e competitivos, tudo contribuindo para o progresso e bem-estar da população. As estruturas herdadas do colonialismo e das guerras têm de ser transformadas e trocadas por estruturas da modernidade e desenvolvimento, tendo em conta a cultura e história de Angola.

É fundamental um novo ciclo histórico com uma nova estrutura.

A primeira medida é estabelecer uma nova constituição. A atual constituição de 2010 não é consensual e, até certo ponto, é um equívoco jurídico desenhado para agradar aos desejos pessoais de José Eduardo dos Santos. Fundamental será propor uma nova constituição mais angolana e mais protetora das instituições, que marque um recomeço. Entende-se que essa nova Constituição deveria abordar aspetos tão diferentes como a possibilidade de eleição separada (direta ou indireta) do Presidente da República, conferindo-lhe uma legitimidade própria e garantindo que o Presidente se apresente como um líder nacional e não um líder partidário, a criação de uma segunda câmara legislativa composta pelas autoridades tradicionais (permitindo a introdução de vozes diferentes e plurais no processo legislativo, recuperando a cultura africana), a introdução de mecanismos de democracia militante como tem a lei fundamental alemã (como  Karl Loewenstein[5] escreveu a democracia deveria ser capaz de resistir àqueles agentes políticos que utilizam instrumentos democráticos para assegurar o triunfo de projetos totalitários ou autoritários de poder, isto significando, que a constituição tem de conter mecanismos de defesa e repressão das tentativas de derrube do regime constitucional, o que agora não existe com força suficiente na constituição angolana). Obviamente, que a reformulação do poder judicial, a mudança da simbologia da república, seriam outros aspetos desta nova constituição.

Não basta uma mudança constitucional sem se tratar da organização e administração do Estado.  Também aqui o projeto de transformação tem de ser abrangente e procurar-se a libertação dos modelos coloniais e marxistas, introduzindo uma administração pública adequada aos novos tempos. Exemplos podem vir da Ásia, como a China e Singapura[6], ou dos países vizinhos como o Botswana ou a África do Sul. O paradigma tem de ser uma administração baseada no mérito, assente na eficácia e no serviço à população. Naturalmente, que tal implica o fim da influência clientelista na administração, a desconcentração com autonomia e capacidade de tomada de decisão, uma forma completamente nova de ver o procedimento administrativo, não como um conjunto de regras, mas um conjunto de boas práticas e objetivos vocacionados para o bem comum e eficácia.

É evidente que apenas se deixam aqui alguns tópicos sobre as mudanças estruturais aconselháveis, segundo a nossa perspetiva, para transformar Angola num Estado moderno e próspero.


[1] Adalberto da Costa Júnior, entrevista ao Nascer do Sol, 20-01-23

[2] CEDESA (2022). A necessária reforma do Tribunal Supremo em Angola, https://www.cedesa.pt/2022/11/24/a-necessaria-reforma-do-tribunal-supremo-em-angola/

[3]  Jennifer Gandhi e James Vreeland (2008). “Political Institutions and Civil War: Unpacking Anocracy”. Journal of Conflict Solutions. 52 (3): 401–425; Patrick Regan and Sam Bell, Sam (2010). “Changing Lanes or Stuck in the Middle: Why Are Anocracies More Prone to Civil Wars?”. Political Science Quarterly. 63 (4): 747–759.

[4] Patrick Regan and Sam Bell, Sam (2010). “Changing Lanes or Stuck in the Middle: Why Are Anocracies More Prone to Civil Wars?”. Political Science Quarterly. 63 (4): 747–759.

[5] Karl Loewenstein (1937) Militant Democracy and Fundamental Rights, in: American Political Science Review 31.

[6] M. Shamsul Haque (2009), Public Administration and Public Governance in Singapore in Pan Suk Kim, ed., Public Administration and Public Governance in ASEAN Member Countries and Korea. Seoul: Daeyoung Moonhwasa Publishing Company, 2009. pp.246-271.

A necessária reforma do Tribunal Supremo em Angola

1-Razões que fundamentam a reforma do Tribunal Supremo em Angola

A justiça angolana tornou-se, algo repentinamente, um dos temas quotidianos da discussão no espaço público. Isso aconteceu, essencialmente, devido ao facto da denominada “luta contra a corrupção” ser realizada através dos tribunais comuns. Parece óbvio que assim seja, mas, na realidade, não é tão habitual. Cada país tem escolhido os métodos que considera mais adequados para essa tarefa. Na China, onde debaixo da presidência de Xi Jinping se desenvolve um poderoso esforço contra a corrupção, tal empenho tem sido feito através de mecanismos internos do Partido Comunista, só intervindo os tribunais, numa fase final[1]. Na África do Sul, optou-se por criar uma Comissão que tudo explorou e analisou, e só depois, tendo um imenso dossier pronto, enviou os resultados para o poder judicial[2]. Quer isto dizer que não é obrigatório que o combate à corrupção se centre ou comece pelos tribunais. No entanto, foi essa a opção angolana.

Essa opção fez surgir demasiado à vista algumas fragilidades do Tribunal Supremo. A discordância entre vários juízes tornou-se patente, os atrasos e falta de decisão também, e a fundamentação discutível de muitos acórdãos tem sido anotada por muitos comentadores[3].

É verdade que o desenho do Tribunal Supremo contido na Constituição de 2010 ajuda à sua disfuncionalidade. Na verdade, o legislador constitucional angolano quis fazer um tribunal seguindo o modelo da Supreme Court norte-americana enxertado num sistema judicial de tipo romano-germânico, isto é, português. Ora um tribunal de topo no sistema judicial português, alemão ou francês, nada tem a ver com um tribunal de topo num sistema anglo-americano. São conceitos e estruturas judiciais diferentes. O que se pede a um tribunal supremo norte-americano não é o que se pede a um supremo tribunal português. No primeiro caso, apenas grandes e inovadoras questões de direito lá chegam. É já uma espécie de tribunal de reflexão, enquanto, no segundo caso-romano-germânico- o supremo funciona como última instância de recurso para quase todos os casos judiciais.

Ora em Angola, pensou-se um tribunal à americana para funcionar à portuguesa. Portanto, uma estrutura leve e que apenas se dedicava a um pequeno número de processos teve de se defrontar com a tarefa de ser um tribunal habitual de recurso para uma miríade de casos. Isso só podia dar mau resultado, como deu.

Além da disfuncionalidade do desenho constitucional, tem-se entendido que os juízes do Tribunal Supremo não têm a preparação adequada para lidar com as complexidades do crime económico-financeiro, não tendo ao longo da sua carreira deparado com essas questões ao nível sofisticado a que têm estado a aparecer, o que tem levado a algumas decisões muito criticadas e a grande mora processual.

Iniciando o país simultaneamente uma fase de grande apelo ao investimento estrangeiro, bem como apostando na luta contra a corrupção, é bem de ver que um tribunal mal desenhado e pensado para outros tempos tem de ser reformado e remodelado.

Não se afigurando possível pensar, neste momento, numa revisão constitucional, qualquer reforma deve ser feita no quadro da constituição em vigor.

2- As propostas de reforma do Tribunal Supremo (TS)

a) Aumento do número de juízes: 50

A primeira medida é quantitativa, mas necessária, face aos atrasos e imperativo de renovação técnica e geracional do Tribunal Supremo. Neste momento, o TS tem um quadro de 21 juízes, que está a ser alargado para 31 juízes nos termos da presente Lei Orgânica do Tribunal Supremo (Lei n.º 2/22, de 17 de Março).

Parece insuficiente. Portugal com uma população de um terço face a angolana tem 50 juízes conselheiros no seu Supremo Tribunal de Justiça. Espanha, com uma população mais semelhante a Angola, tem 71 magistrados no seu Tribunal Supremo. Por estes números e atendendo à semelhança de competências alargadas que estes tribunais têm em Angola, Portugal ou Espanha, facilmente se vê que são necessários mais juízes no tribunal em Angola daqueles que agora estão previstos.

Acredita-se que 50 (cinquenta) será um número adequado juízes no Tribunal Supremo de Angola, que permitirá uma forte renovação, tão imperativa, deste tribunal.

b) Racionalização das Câmaras: a Câmara de Assuntos Económicos e a Secção de crimes económico-financeiros

Os objectivos da política judicial impõem uma revisão do número de Câmaras no TS e uma maior especialização. Neste momento, a lei prevê cinco Câmaras: a Câmara Criminal, a Câmara do Cível, a Câmara do Contencioso Administrativo, Fiscal e Aduaneiro e a Câmara do Trabalho e a Câmara da Família e Justiça Juvenil (art.º 17.º da Lei Orgânica). No entanto, parecem estar apenas em funcionamento as Câmaras Criminal, Civil e Administrativa e do Trabalho.

Parecia melhor proceder a uma racionalização das Câmaras de acordo com as necessidades efectivas da sociedade. Assim, haveria uma Câmara Criminal, uma Câmara Civil (que englobaria a família e menores), uma Câmara Social (trabalho, segurança social e afins), uma Câmara Administrativa e Fiscal, e uma nova Câmara intitulada Câmara de Assuntos Económicos, esta Câmara teria duas secções, uma de Contencioso Comercial para lidar com os grandes contratos com relevância para o investimento e outra de Crimes Económico-Financeiros, especializando-se apenas no julgamento de crimes como a corrupção, branqueamento, peculato, etc.

No fundo, esta nova Câmara dos Assuntos Económicos seria responsável por responder aos novos desafios de política de investimento e contra a corrupção.

c) Modelo transparente de nomeação do Presidente: audição na Assembleia Nacional

Os dois mais recentes presidentes do Tribunal Supremo (Rui Ferreira e Joel Leonardo), por razões diferentes, têm sido alvo de muita contestação. Aliás, Rui Ferreira demitiu-se devido a essa contestação enquanto Joel Leonardo tem dificuldade em gerir os seus pares.

A CRA no seu artigo 180.º, nºs 3 e 4 estabelece que o Presidente do Tribunal Supremo é nomeado pelo Presidente da República, de entre 3 candidatos seleccionados por 2/3 dos Juízes Conselheiros em efectividade de funções, sendo o seu mandato de sete anos, não renovável.

Joel Leonardo foi designado pelo Presidente da República em 2019, portanto, o seu mandato só termina em 2026. Leonardo nasceu em 1962, pelo que só fará 70 anos em 2032.Quer isto dizer que, ao contrário de muitos rumores que fluem no mundo jurídico de Luanda, em termos formais, falta muito tempo para terminar o seu mandato.

No entanto, deveria ser introduzido um mecanismo adicional na nomeação, semelhante ao adoptado na recente revisão constitucional em relação ao Governador do Banco Nacional de Angola.

Nestes termos, o Presidente do Tribunal Supremo deveria ser nomeado pelo Presidente da República após audição na Assembleia Nacional, observando-se, para o efeito, o seguinte procedimento:

a) A audição do candidato é desencadeada por solicitação do Presidente da República;

b) A audição do candidato proposto termina com a votação do relatório-parecer;

c) Cabe ao Presidente da República a decisão final em relação à nomeação do candidato proposto.

Consequentemente, o Presidente do Tribunal Supremo só seria designado depois de ouvido publicamente na Assembleia Nacional.

d) Imparcialidade e independência no TS: o modelo do Botswana, juízes visitantes

Uma das críticas que mais se ouve acerca do poder judicial em Angola é sobre a sua falta de independência ou pouca imparcialidade, seja perante o Executivo, seja perante mais fortes/poderosas. Não entramos aqui na substância dessas alegações, mas anotamos que mesmo que sendo falsas, a percepção da justiça desempenha um papel significativo. Não basta sê-lo, é preciso parecê-lo. Vem sempre à memória o dito do juiz inglês “”Não apenas a Justiça deve ser feita;  também, deve ser vista a ser feita”, proferida por  Lord Hewart CJ em R v Sussex Justices, ex parte McCarthy ([1924] 1 KB 256, [1923] All ER Rep 233). Portanto, não se trata apenas de defender que a justiça angolana não é dependente ou parcial, mas de utilizar símbolos que atestem essa mesma prática.

Um exemplo descomplexado pode ser aquele que durante muitos anos foi utilizado no Botswana, que em nada diminuiu o orgulho nacional ou soberania, e, pelo contrário, aumentou o prestígio do seu sistema de governo. Na verdade, até 1992, no Tribunal Superior (High Court) –o segundo mais importante na hierarquia dos tribunais- os juízes eram estrangeiros expatriados nomeados com contratos curtos de 2 a 3 anos[4]. No Tribunal Supremo (Court of Appeal), ainda um terço dos juízes são visiting justices (juízes visitantes)[5].

Quer isto dizer que algo de semelhante se poderia pensar para Angola, isto é, guardar algumas vagas no Tribunal Supremo (talvez um quarto) para juízes ou juristas de mérito contratados no estrangeiro com contratos suficientemente longos para lhes garantir a independência, mas não renováveis. Talvez contratos de cinco a sete anos.

Esses juízes visitantes teriam exactamente os mesmos poderes e competências que os outros juízes, apenas não poderiam ser Presidentes ou Vice-Presidentes do Tribunal, contudo, poderiam ocupar a função de Presidente de Câmara ou qualquer outra. Seriam recrutados em países da SADC[6] e da CPLP.

Alargando desta forma o Tribunal Supremo a juízes visitantes poder-se-ia abrir uma janela de renovação doutrinária e garantia de imparcialidade com juízes de outros países suficientemente próximos, mas adequadamente afastados. Eventualmente, poderia ser uma medida provisória por 10 ou 15 anos.

O que esta medida permitiria era criar um corpo alargado de debate judicial com várias visões, algumas tendencialmente independentes, que permitiria um diálogo mais frutífero na criação de um direito justo.

***

Aqui ficam várias sugestões de reforma do Tribunal Supremo de Angola de forma a torná-lo mais célere e eficaz no cumprimento das suas tarefas, bem como aumentando as suas garantias de independência.


[1] Rahul Karan Reddy, The Diplomat, 2022, China’s Anti-Corruption Campaign: Tigers, Flies, and Everything in Between, https://thediplomat.com/2022/05/chinas-anti-corruption-campaign-tigers-flies-and-everything-in-between/

[2] Zondo Comission, https://www.statecapture.org.za/

[3] Ver por exemplo, Manuel Luamba, DW, Justiça angolana está em descrédito fora do país?, https://www.dw.com/pt-002/justi%C3%A7a-angolana-est%C3%A1-em-descr%C3%A9dito-fora-do-pa%C3%ADs/a-63253282

[4] Cfr. https://www.justice.gov.bw/services/about-high-court

[5] Cfr. https://www.gov.bw/legal/hierarchy-courts

[6] SADC- África do Sul, Angola, Botsuana, Lesoto, Malavi, Maurício, Moçambique, Namíbia, República Democrática do Congo, Seicheles, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. CPLP-Angola , Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau , Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.

Eleições em Angola: sondagens e previsões de resultados

1-As sondagens eleitorais em Angola

Há um facto indesmentível. As presentes eleições angolanas marcadas para o próximo dia 24 de Agosto são as mais disputadas de sempre do pós-guerra civil (2002[1]). Nunca uma discussão foi tão renhida e a intensidade dos argumentos e incerteza tão debatida.

Apesar de alguma crispação e, por vezes, retórica incendiária, este contexto eleitoral representa um avanço significativo da luta democrática, que se espera que não extravase para outras formas de luta.

Um dos aspectos inovadores que tem surgido nestas eleições é a pluralidade de sondagens. Tanto quanto a memória e os arquivos permitem apurar, a existência de sondagens não era um facto habitual nas anteriores eleições angolanas.

Na verdade, em 2017, apenas surgiu uma referência a uma suposta sondagem efectuada pela empresa brasileira Sensus, Pesquisa e Consultoria. A existência dessa sondagem nunca foi confirmada, mas na altura fontes revelavam que essa entidade teria apurado que o MPLA ganharia apenas 38 por cento dos votos. A UNITA obteria 32 por cento das intenções de voto, enquanto a CASA-CE surgiria colada à UNITA, com 26 por cento. Daqui resultaria que a maioria na Assembleia Nacional seria da oposição.[2]

O certo é que esta sondagem nunca foi confirmada e os resultados finais foram bem diferentes. Como se sabe, o MPLA teve 61.05%, enquanto a UNITA e a CASA-CE alcançaram 26.72% e 9.49% dos votos, bem longe do que aquilo que a suposta sondagem afirmava.

2-As sondagens nas eleições de 2022

Se as eleições de 2017 giraram à volta duma sondagem-fantasma que nada teve a ver com a realidade final, em 2022, aparecem sondagens públicas não desmentidas, embora combatidas pelas forças que não gostam dos resultados.

É sobre essas sondagens e a possibilidade de se conseguir prever um resultado final com base nelas que se debruça esta análise.

Seguimos a identificação de sondagens realizada por um canal de cabo português[3] e consideramos cinco sondagens publicadas. São elas:

-Afrobarometer (https://www.afrobarometer.org/)

-Angobarometro (https://www.angobarometro.com/)

-Angopolls (https://angopolls.org/)

-Mudei (https://jikuangola.org/inqueritos/index.html)

-POBBrasil (https://pobbrasil.com/)

Todas estas entidades têm o seu site e apresentam os resultados publicamente.

Não ignoramos que existem várias polémicas à volta de algumas destas entidades, contudo, optámos por nos basear nas fichas técnicas de cada uma das sondagens e na boa-fé dos intervenientes. Vamos olhar para a mensagem e não “matar o mensageiro”.

Na realidade, com a excepção da Afrobarometer, todas as restantes entidades são razoavelmente recentes e parecem estar vocacionadas para as presentes eleições angolanas, contendo profissionais provenientes de outras empresas ou organizações. Isso é um sinal de vivacidade democrática e por isso não merece crítica. O certo é que estas entidades depois do primeiro ensaio que são estas eleições em Angola se irão aperfeiçoar a contribuir para o discurso democrático em Angola.

Olhando para as fichas técnicas de cada uma das sondagens e resultados vamos proceder a uma aferição dos resultados seguindo dois critérios, o da fiabilidade do método e da distribuição normal gaussiana.

Em primeiro lugar, o tipo de inquérito realizado. Pelas fichas técnicas e afirmações dos responsáveis concluímos que o Mudei e a Afrobarometer fazem inquéritos de rua aleatórios baseados em premissas que especificam nas suas páginas de metodologia. Por sua vez a Angopolls e POBBrasil realizam inquéritos telefónicos segundo uma selecção computadorizada aleatória. Já a Angobarometro efectua sondagens online.

Entendemos que os inquéritos online não são fiáveis pois beneficiam dum “efeito vizinhança”, isto é, há uma tendência de chamar os amigos e pessoas que pensam da mesma forma para visitar o site. Portanto, se um site é tido como mais próximo da UNITA chamará mais pessoas da UNITA, havendo um enviesamento a seu favor, o mesmo acontecendo se o site é do MPLA. Nessa medida, acreditamos que as sondagens online demostram a capacidade de mobilização de um partido, mas não as intenções de voto de uma amostra aleatória da população.

Retiramos, assim, a Angobarometro desta apreciação.

Em relação às quatro restantes, procedemos a uma distribuição gaussiana eliminando os extremos e mantendo a distribuição padrão-normal. Nesta medida não consideraremos a sondagem POBBrasil que dá uma vitória extrema ao MPLA, como a Mudei que dá uma vitória extrema à UNITA.

3-Sondagens-padrão

Ficam duas sondagens que nos parecem as mais padronizadas: Afrobarometer e Angopolls.

A ficha técnica da Afrobarometer revela que: “A equipa do Afrobarometer em Angola, liderada pela Ovilongwa – Estudos de Opinião Pública, entrevistou 1.200 Angolanos adultos, entre 9 de Fevereiro e 8 de Março de 2022. Uma amostra deste tamanho produz resultados nacionais com uma margem de erro de +/- 3 pontos percentuais e um nível de confiança de 95%. A pesquisa anterior em Angola foi realizada em 2019”.

Os resultados alcançados são apresentados no quadro abaixo:

Quadro n.º 1- Resultados Afrobarometer

A Angopolls realizou vários inquéritos desde Dezembro de 2021.Vamos focar-nos no último da sequência publicado, “VII – SONDAGEM ELEIÇÕES GERAIS. JULHO 2022”. A sua ficha técnica refere que: “A sondagem foi feita telefonicamente. Foram obtidos 5040 inquéritos válidos, sendo que 21,03% dos inquiridos eram do sexo feminino.”

Os resultados obtidos foram os seguintes:

Quadro n.º 2: Resultados Angopolls

¹Não contabilizando indecisos e abstenções.

A página da Angopolls também contém um gráfico curioso com a apresentação da evolução dos resultados ao longos dos vários meses:

Quadro n.º 3- Tendências de voto segundo Angopolls

Numa primeira análise parceria que as sondagens Afrobarometer e Angopolls dão resultados diferentes. De facto, a apresentação da Afrobarometer atribui 29% ao MPLA e 22% à UNITA, enquanto a da Angopolls refere uma percentagem de 60,15% para o MPLA e 39,85% para UNITA. Afigura-se uma diferença muito grande entre as duas sondagens.

Contudo, uma análise mais fina revela que não é assim.

No final de contas, na sua essência, as duas entidades chegaram a resultados muito semelhantes: o MPLA ganha e a UNITA reforça, e mesmo em percentagens a diferença não é muito significativa. A explicação para a aparente diferença que não existe está nos métodos de apresentação dos resultados e não nos resultados propriamente ditos.

Se repararmos a Angopolls retira da sua apresentação os Não Respondentes (abstencionistas, indecisos sobre se iriam votar, etc), enquanto a Afrobarometer não faz isso. Note-se que mantêm 46% de Não sabe, Não Vota, Recusou.

Ora se aplicarmos o mesmo critério para ambas as sondagens, isto é, retirando os Não Sabe, Não Vota, Recusou, os chamados não respondentes teremos uma significativa aproximação entre as duas sondagens que se espelha no quadro abaixo:

Quadro n.º 4: Resultados comparados Afrobarometer e Angopolls seguindo o mesmo método de apresentação

 Afrobarometer[4]Angopolls
MPLA54%60,15%
UNITA41%39,85%
OUTROS  4%0%

É evidente que outro método para considerar os não respondentes é imputá-los segundo critérios históricos (isto é, considerando o sentido de voto em anteriores eleições) às forças partidárias ou então pode-se entrar em exercícios especulativos variados.

Conclusões

O que resulta da análise que fazemos das sondagens é que a previsibilidade normal aponta para uma vitória do MPLA numa percentagem que oscila entre os 54% e os 61% e um substancial reforço da UNITA para 40%, havendo uma diminuição acentuada dos outros partidos, aquilo a que se chama em ciência política uma bipolarização.

Note-se, contudo, que atendendo à percentagem de Não Respondentes, estes números não são fixos e definitivos. São uma fotografia em dado momento, mas tudo pode mudar.

Portanto, as sondagens dão algumas indicações, marcam tendências, mas não dão certezas. Como se referiu no início deste trabalho, esta é uma área da democracia que só agora começa a ser explorada, portanto, não se podem esperar respostas definitivas, mas apenas observações mutáveis.


[1] Não se inclui nesta análise qualquer referência às eleições de 1992, por terem sido conduzidas num contexto historicamente muito diferente.

[2] https://www.makaangola.org/2017/08/sondagem-eleitoral-mpla-fica-atras-da-oposicao/

[3] CNN.pt

[4] Devido aos arredondamentos não soma 100%

Teorias da fraude eleitoral, legislação e escrutínio público em Angola

As imagéticas da fraude eleitoral em Angola

O ponto de partida para este estudo é a afirmação de uma conceituada investigadora durante o II Congresso Internacional de Angolanística segundo a qual as “próximas eleições em Angola deverão ser as menos transparentes e credíveis.”[1]

Recorde-se que Angola teve as suas primeiras eleições em 1992, após o que existiu um recrudescimento da guerra civil que terminou em 2002, e apenas voltou a ter eleições em 2008, a que se seguiram atos eleitorais em 2012 e 2017. Houve, portanto, até ao momento, quatro processos eleitorais em Angola.

As próximas eleições estão previstas para 24 de Agosto de 2022.

Em todas as eleições cuja contagem chegou ao final, o MPLA, partido no governo desde a independência em 1975 saiu vencedor com os seguintes resultados: 1992- 53.74%; 2008- 81,76%; 2012-71.84%; 2017-61.05%.

Quadro n. º1- Vencedor das eleições em Angola (1992-2017)

1992MPLA53,74%
2008MPLA81,76%
2012MPLA71,84%
2017MPLA61,05%

O interessante é que em todas as eleições, mesmo as de 1992[2], que tiveram ampla cobertura internacional e contaram com mais de 400 observadores estrangeiros, o principal partido da oposição alegou fraude.

Em 1992, dessas alegações resultou a renovação da guerra civil e um massacre e violência indisfarçáveis. Na verdade, a resolução da contenda só teve lugar com a morte do líder da oposição e o fim da guerra em 2002. Nas outras eleições acabou por haver aceitação final dos resultados e integração no funcionamento constitucional-legal.

Em 2008, estiveram presentes 90 observadores da União Europeia, e a vitória do MPLA foi esmagadora. Estava-se, aliás, na época do boom petrolífero. Mesmo assim a oposição clamou fraude, e exigiu a repetição das eleições devido aos atrasos que marcaram o processo, descrito pelo líder da oposição como “um desastre”, com inúmeras demoras por todo o país. Em todo o caso, apesar destes protestos, as eleições acabaram por ser aceites e os deputados tomaram os seus lugares. Desta vez não houve guerra e iniciou-se uma certa democratização da vida pública.

2012 foi novamente ano de eleições, e novamente, houve denúncia de irregularidades, mas sem a vocalidade do passado. A oposição tomou os seus lugares no parlamento e desempenhou o seu papel.

No ano de 2017, A União Africana enviou observadores para as eleições, com o objetivo de garantir as eleições democráticas, mas a União Europeia decidiu não mandar uma grande equipa de observadores. A oposição contestou os resultados, mas acabou por os aceitar após decisões do Tribunal Constitucional que validaram as eleições.

Há padrões que se repetem. Os dois primeiros são óbvios, a vitória do MPLA e a contestação permanente do processo pela oposição. Também se verifica intervenção de observadores externos, por exemplo 400 em 1992.

Apesar das acusações repetidas de fraude por parte dos candidatos derrotados, o certo, é que com a exceção de 1992, sempre acabaram por aceitar os resultados e tomar os seus lugares na Assembleia Nacional.

Comparações: Transparência e democraticidade em 2022

A questão que vamos responder é se as presentes eleições, marcadas para 24 de agosto de 2022, representam um decréscimo das condições eleitorais do passado, como afirmam alguns investigadores, ou se pelo contrário, mesmo não sendo perfeitas, apresentam uma manifesta evolução em termos de transparência e democraticidade.

Para avaliarmos as condições iremos proceder a uma revisão da legislação em vigor, bem como às características do atual escrutínio público face ao passado, pois acreditamos que este é o mecanismo crítico realista para aferir a transparência das eleições.

Legislação

Sobre a legislação em vigor há alguns aspetos a enfatizar, muitos dos quais têm sido alvo de equívocos ou interpretações pouco literais. As eleições estão agora reguladas pela Lei n.º 30/21 de 30 de dezembro, que alterou a Lei n.º 36/11, de 21 de dezembro — lei orgânica sobre as eleições gerais (LOEG). Na atual legislação temos de destacar os seguintes tópicos que se debruçam sobre o processo eleitoral:

i) Condições básicas: manifestação, direito de antena e financiamento

No período da campanha eleitoral, a liberdade de reunião e de manifestação para fins eleitorais rege-se pelo disposto na lei geral aplicável ao exercício das liberdades de reunião e de manifestação, com as seguintes especificidades (artigo 66.º da LOEG):

a) Os cortejos e desfiles podem realizar-se em qualquer dia e hora, respeitando-se apenas os limites impostos pela liberdade de trabalho, pela manutenção da tranquilidade e ordem públicas, pela liberdade e ordenamento do trânsito, bem como pelo respeito do período de descanso dos cidadãos.

b) A presença de agentes da autoridade pública em reuniões e manifestações organizadas por qualquer candidatura apenas pode ser solicitada pelos órgãos competentes das candidaturas, ficando a entidade organizadora responsável pela manutenção da ordem quando não faça tal pedido.

c)A comunicação à autoridade administrativa competente da área sobre a intenção de se promover uma reunião ou manifestação é feita com antecedência mínima de 24 horas.

O que resulta da lei é uma ampla possibilidade de manifestação, não havendo condicionalismos nem obstáculos assinaláveis.

Note-se aliás, que no período de pré-campanha já têm ocorrido grandes manifestações sem incidentes, quer por parte do partido do governo, quer por parte da oposição.

O líder da oposição tem-se deslocado livremente no território de norte a sul, concretamente, de Cabinda a Menongue e realizado grandes atos de massas, sem qualquer impedimento ou confronto. Este aspeto fundamental para o processo eleitoral tem estado assegurado.

Em relação ao direito de antena dispõe o artigo 73.º da LOEG que determina que as candidaturas às eleições gerais têm direito à utilização do serviço público de radiodifusão e televisão, durante o período oficial da campanha eleitoral, nos termos seguintes: a) Rádio: 10 minutos diários entre as 15 e as 22 horas; b) Televisão: 5 minutos diários entre as 18 e as 22 horas.

A lei garante aquilo que poderemos denominar como mínimos de intervenção política no período de campanha eleitoral.

Também o financiamento global de todos os partidos políticos efetuado pelo Estado está previsto e é imperativo nos termos do artigo 81.º da LOEG, que dispõe que o Estado atribuirá uma verba de apoio à campanha eleitoral das candidaturas às eleições gerais, que é distribuída de forma equitativa, podendo a mesma ser utilizada para apoio aos Delegados de Lista.

A letra da lei oferece suficientes garantias que determinados mínimos de equidade e concorrência entre partidos estão sustentados para as eleições de 2022[3].

ii) Votação e contagem dos votos

Esta é uma área em que tem havido muita discussão e talvez mal-entendidos ou interpretações erróneas. Portanto, é importante sublinhar as determinações essenciais da lei.

Em primeiro lugar, as mesas de voto, ao contrário do que se poderia pensar face a algumas análises publicadas, desempenham um papel fulcral no processo. Desde logo, o Delegado de Lista presente na Mesa de Voto pode solicitar esclarecimentos e apresentar, por escrito, reclamações relativas às operações eleitorais da mesma Mesa e instruí-los com os documentos convenientes, sendo que Mesa não pode recusar-se a receber as reclamações, devendo rubricá-las e apensá-las às atas, junto com a respetiva deliberação, cujo conhecimento será dado ao reclamante. (artigo 115.º da LOEG).

Isto quer dizer, que há uma fiscalização direta por cada um dos partidos em cada uma das Mesas de Voto. Aquilo a que poderíamos chamar uma fiscalização atomista. Cada átomo da eleição está a ser verificado.

Depois, é ainda na Mesa de Voto que se procede à abertura das urnas e contagem dos votos, também ao contrário do que tem sido afirmado.

Na verdade, encerrada a votação, o Presidente da Mesa, na presença dos restantes membros, procede à abertura da urna, seguindo-se a operação de contagem por forma a verificar a correspondência entre o número de Boletins de Voto existentes na urna e o número de eleitores que votaram naquela Mesa de Voto. (artigo 120.º da LOEG).

Em seguida, o Presidente da Mesa de Voto manda proceder à contagem dos Boletins de Voto, respeitando as seguintes regras:

a) O Presidente abre o boletim, exibe-o e faz a leitura em voz alta;

b) O primeiro escrutinador aponta os votos atribuídos a cada partido numa folha de papel branco ou, caso exista, num quadro grande;

c) O segundo escrutinador coloca em separado e por lotes, depois de os exibir, os votos já lidos correspondentes a cada um dos partidos, os votos em branco e os votos nulos;

d) O primeiro e o terceiro escrutinadores procedem à contagem dos votos e o Presidente da Mesa à divulgação do número de votos que coube a cada partido.

Terminada esta operação, bem detalhada na lei, o Presidente da Mesa de Voto procede ao confronto entre o número de votos existentes na urna e a soma do número de votos por cada lote. Os Delegados de Lista têm direito a verificar os lotes sem podendo reclamar em caso de dúvida para o Presidente da Mesa que analisa a reclamação. (artigo 121.º da LOEG).

Consequentemente, temos um ato eleitoral que é fiscalizado e os votos contados localmente em cada Mesa de Voto com a presença dos delegados de cada partido.

É isto que a lei define.

Após esta operação local, é elaborada uma ata da Mesa de Voto pelo Secretário da Mesa e devidamente assinada, com letra legível, pelo Presidente, Secretário, Escrutinadores e pelos Delegados de Lista que tenham presenciado a votação, sendo depois colocada em envelope lacrado que deve ser devidamente remetido, pela via mais rápida, à Comissão Provincial Eleitoral. (artigo 123.º da LOEG). Em sequência, compete à Comissão Nacional Eleitoral a centralização de todos os resultados obtidos e a distribuição dos mandatos (artigo 131.º da LOEG). Em síntese, o apuramento nacional é realizado com base nas atas-síntese e demais documentos e informações recebidas das Assembleias de Voto (artigo 132.º da LOEG).

Verifica-se assim que a contagem dos resultados é efetuada ao nível local, não havendo centralização da abertura de urnas nem das contagens, a centralização é realizada a posteriori, tendo como base os resultados obtidos nas Mesas de Voto.

Olhando para as disposições legais mencionadas vislumbra-se um mecanismo transparente e devidamente fiscalizado ao nível local.

A este mecanismo acresce que norma do artigo 116.º da LOEG que torna obrigatório que as tecnologias a utilizar nas atividades de escrutínio atendam aos requisitos da transparência e da segurança.

A mesma norma impõe a auditoria dos programas-fontes, dos sistemas de transmissão e tratamento de dados e dos procedimentos de controlo e torna imperativo que antes do início de cada eleição, o Plenário da Comissão Nacional Eleitoral realize uma auditoria técnica independente, especializada, por concurso público, para testar e certificar a integridade dos programas- -fontes, sistemas de transmissão e tratamento de dados e dos procedimentos de controlo a utilizar nas atividades de apuramento e escrutínio, a todos os níveis.

iii) A transparência da eleição do Presidente da República

O Boletim de Voto é impresso a cores, em papel liso e não transparente, de forma retangular com as dimensões apropriadas para que nele caibam todas as candidaturas admitidas à votação e cujo espaçamento e apresentação gráfica não induzam os eleitores em erro na identificação e sinalização exatas da candidatura por si escolhida.

Em cada Boletim de Voto são impressos o número de ordem, a designação estatutária do partido político, o nome do candidato a Presidente da República e a respetiva fotografia tipo passe, a sigla e os símbolos do partido político ou coligação de partidos políticos, dispostas verticalmente, umas abaixo das outras, pela ordem do sorteio efetuado pela Comissão Nacional Eleitoral, após a aprovação das candidaturas pelo Tribunal Constitucional (artigo 17.º da LOEG).

Isto significa que apesar do método de eleição presidencial próprio escolhido pela Constituição, o eleitor sabe manifestamente em quem está a votar para Presidente da República. Tem a face e o nome indicado.

 iv) O contencioso eleitoral

A apreciação da regularidade e da validade das eleições compete, em última instância, ao Tribunal Constitucional (artigo 6.º LOEG). Esta norma comete o Tribunal Constitucional (TC) todas as decisões finais sobre eleições, não é a Comissão Nacional Eleitoral (CNE).

Ser o TC a ter a palavra final e não a CNE é uma garantia jurisdicional acrescida. No presente momento, como veremos adiante, isso tem relevo porque o TC tem sido objeto de um grande escrutínio público, sendo-lhe mais difícil, acreditamos, tomar decisões que não tenham fundamento legal.

Escrutínio Público

É natural, que sobretudo para os adeptos duma visão realista do Direito[4], em que nos incluímos, segundo a qual o importante não é o que está escrito na lei, nem sequer os princípios meta-legais em que esta assente, mas a sua aplicação e resultado prático, não se fique satisfeito com a mera enumeração legal, mesmo que esta surja bem construída e promissora, como se nos afigura acontecer com a presente Lei Orgânica das Eleições Gerais.

Torna-se necessário invocar outros fatores reais que permitam realizar uma avaliação mais objetiva do fenómeno eleitoral em Angola como esperado para 2022.

Entendemos que o fator chave é o do escrutínio público que o processo eleitoral está a ter. Escrutínio público entendido como exame minucioso e averiguação diligente de um fenómeno realizado pela sociedade em geral, e não apenas por órgãos específicos que poderão ou não estar alinhados com determinada opção política ou ideológica.

O nosso argumento é que quanto maior for o escrutínio público a que um fenómeno eleitoral esteja sujeito maior será a sua transparência e democracia e menores as probabilidades de fraude, havendo uma relação direta entre escrutínio e transparência.

Ora, o breve excurso que realizámos pelas várias eleições ocorridas em Angola, e retirando a de 1992, que pela sua especificidade e contexto histórico não tem lugar nesta comparação, e considerando que alguns dos nossos colaboradores acompanharam pessoalmente as eleições de 2012 e 2017, permite-nos avançar com algumas tendências em relação a aspetos escrutinadores por parte de integrantes da sociedade civil ou órgãos estruturantes não políticos da comunidade. Esses temas levam-nos a uma comparação qualitativa entre 2008 e 2017.

Em primeiro lugar, destaquemos a Igreja Católica. Possivelmente, fruto de certas acusações de colaboração com o poder colonial e de algum embate com a ideologia marxista pós-independência, a Igreja Católica, na sua generalidade, tinha-se remetido nas anteriores eleições a um papel discreto e pouco interventivo publicamente, não contribuindo para um forte debate acerca do processo eleitoral nas anteriores eleições (2008 a 2017).

Isso não acontece em 2022, seguindo as passadas da sua congénere na vizinha República Democrática do Congo (RDC) em que a Igreja Católica teve um papel determinante na transição eleitoral de 2018/2019 entre Kabila e Tshisekedi, a Igreja Católica angolana tem assumido um manifesto protagonismo na preparação das eleições angolanas. Os seus bispos e padres estão ativos na sua pastoral e nas homilias e têm uma atividade pública intensa, exigindo eleições adequadas[5].

É precisamente este ativismo católico, lembrando que segundo as estatísticas, cerca de 40% da população angolana é católica,[6]que permite concluir que o escrutínio que a Igreja Católica está a fazer das eleições não deixará larga parte da população indiferente e obriga por si só a uma transparência acrescida no processo. Melhor dizendo, o escrutínio católico e das suas múltiplas organizações é, em si mesmo, um fator intrínseco de transparência.

Um segundo fator que notamos diferente em relação às outras eleições angolanas é o papel das redes sociais. Estas abrangerão cerca de ¼ da população votante[7], mas talvez mais daqueles que efetivamente votam. Ora frequentando as redes sociais facilmente se vislumbra a intensidade com que falam das eleições e como discutem a sua realização e necessidade de transparência. Um candidato a deputado pelo partido da oposição e ativista constantemente presente nas redes como Hitler Samussuku tem 52.000 seguidores no Facebook e os seus posts alcançam muitas vezes mais de 1000 likes. Trata-se de um mero exemplo aleatório, mas muitos outros poderiam ser referidos.

Nunca as redes sociais em Angola estiveram tão vivas a ativas como neste período, contestando, discutindo e afirmando posições.

Tal como na situação da Igreja Católica entendemos que este escrutínio digital tem uma dupla função. Por si só é sinónimo de transparência e ao mesmo tempo aumenta a transparência ao colocar no espaço público a discussão sobre as eleições.

Temos aqui dois fatores conducentes intrinsecamente à transparência eleitoral: o ativismo da Igreja Católica e o ativismo digital.

Finalmente, convém referir a questão dos Observadores internacionais. No ano difícil de 1992 estiveram presentes, segundo informações públicas, 400 observadores internacionais[8], em 2017, terão estado mais de 1000 observadores[9],atualmente, segundo as publicações que se debruçaram sobre o assunto estão previstos 2000 observadores nacionais para 2022 e um número ainda não apurado de observadores internacionais. Convém dizer que atendendo ao ativismo acima referido da Igreja e no digital, os observadores nacionais terão um papel muito intenso ao contrário do que poderia acontecer no passado.

Conclusões

A questão que aqui estudámos não é da perfeição platónica das eleições angolanas, mas da evolução da transparência eleitoral desde 2008 com a previsão para 2022.

O que apurámos atendendo a dois índices, a legislação e o escrutínio público, é que, neste momento, existe uma lei suficientemente robusta para realizar eleições livres e justas, e que o escrutínio público, designadamente por parte da Igreja Católica e suas organizações satélite e também pelas redes sociais, nunca foi tão elevado como atualmente.

Nessa medida, mesmo com imperfeições, augura-se que estas eleições serão mais transparentes do que no passado, porque se tal não acontecer a opinião pública sentirá melhor e mais profundamente do que no passado.


[1] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/proximas-eleicoes-em-angola-deverao-ser-as-menos-transparentes-e-crediveis-avisa-investigadora-de-oxford_n1413623

[2] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/unita-diz-que-houve-fraude-nas-eleicoes/

[3] Não discutimos neste trabalho o problema do desequilíbrio do serviço público na época da pré-campanha. Será, possivelmente, objeto de outro estudo apontando soluções e necessidades de uma visão holística da situação englobando todas as fontes de notícias: públicas, privadas, estrangeiras e digitais.

[4] Ver por exemplo, Rui Verde, Juízes: o novo poder, 2015.

[5] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/bispos-angolanos-pedem-eleicoes-transparentes-e-participacao-responsavel-dos-cidadaos_n1381285; https://www.vaticannews.va/pt/africa/news/2022-06/angola-eleicoes-bispos-convidam-a-moderacao-respeito-e-sentid.html ; https://www.dw.com/pt-002/angola-bispo-de-cabinda-nega-crispa%C3%A7%C3%A3o-entre-igreja-cat%C3%B3lica-e-o-executivo/a-61651439

[6] https://observatoriodaafrica.wordpress.com/2016/04/04/maioria-da-populacao-angolana-e-catolica/

[7] https://marcasemaccao.com/utilizadores-de-redes-sociais-cresce-36-em-angola/

[8] http://www.angonoticias.com/Artigos/item/48509/primeiras-eleicoes-em-angola-realizaram-se-ha-23-anos

[9] https://www.voaportugues.com/a/mais-de-mil-observadores-as-eleicoes-em-angola/3926114.html

Acelerar o turismo em Angola

1-Enquadramento: as necessidades e os agentes da promoção do turismo em Angola

Angola procura gradualmente diversificar a sua economia escolhendo o turismo como uma das principais prioridades da ação estruturante da política económica. Como é sabido, a reconstrução encetada a partir de 2002, não se concentrou no turismo, mas sim na indústria petrolífera, mineração e construção civil. Esgotado esse modelo, a diversificação tornou-se a palavra-chave do desenvolvimento.

Sendo evidente que Angola tem uma enorme potencialidade turística, a verdade é que a sua concretização implica a remoção de diversos obstáculos e criação de condições adequadas. Referimos dois eixos essenciais para criar essas condições: o primeiro é a criação de condições propícias ao investimento no setor turístico, isto implica a revisão da lei de investimento que já ocorreu, a retirada de barreiras de entrada no mercado e a facilitação de crédito bancário para novos projetos.

O segundo eixo é de natureza infraestrutural e obriga a criar uma rede de transportes, estradas, aviões e barcos adequada, bem como um clima de segurança criminal, além da facilitação de vistos turísticos.

Figura 1:  Os 2 eixos para o desenvolvimento do potencial turístico

Além do mais, o crescimento do turismo não pode estar apenas dependente do Estado, cabe-lhe naturalmente a regulação, fiscalização e a criação de infraestruturas e de condições. No entanto, o papel fundamental é do empresariado privado que deve avançar e estabelecer parcerias para entrar nos circuitos internacionais. E, finalmente, compete também aos dirigentes provinciais, municipais e comunais, incentivarem e potenciarem os seus recursos.

Estado, empresários e dirigentes locais formam a parceria tripartida que se deve unir para lançar o turismo em Angola.

Em 2019, na abertura do Fórum Mundial do Turismo que decorreu em Luanda, o Presidente da República, deixou bem claro aquilo que o executivo almejava para o sector: no quadro da diversificação da economia, o turismo deveria assumir um papel promotor do desenvolvimento e gerador de receitas e de emprego. Para que isso se concretizasse, o governo deveria apostar no curto e médio prazo, na expansão das infraestruturas hoteleiras e na infraestruturação dos pólos turísticos de Cabo Ledo, Calandula e do Projecto Transfronteiriço de Okavango Zambeze, com o propósito de aumentar a oferta e as opções de diversidade de turistas e clientes, em geral[1]

Recentemente debateu-se uma eventual crise no turismo na Europa, admitindo-se que Grécia, Itália, França, Espanha e Portugal sejam afetados pelas sanções à Rússia decorrentes da guerra na Ucrânia (o que em relação, pelo menos a Portugal, é duvidoso, pois o país não estava dependente do turismo russo), o Egito ainda não recuperou totalmente do medo dos atentados bombistas, a Indonésia tem dificuldades em conter o fundamentalismo muçulmano, a Índia debate-se com níveis de poluição crescentes, o Quénia e Senegal podem ser invadidos por agitação islâmica, destinos de eleição como a Turquia, Israel, Tailândia e Dubai estão algo saturados. Este panorama está descrito de forma algo enfática, contudo, abre oportunidades para o turismo em Angola, pois representa uma certa tendência verificável.

O país tem no turismo potencialidades para captar turistas, tal como fizeram Cabo Verde e o Botswana; tem praias paradisíacas, deserto e florestas, rios de grandes caudais, montanhas, fauna e flora exuberantes, e, acima de tudo, um povo acolhedor e uma gastronomia rica e variada.

2-Panorama do turismo angolano

Não existe uma indústria de turismo desenvolvida em Angola. As poucas zonas que são desenvolvidas aproveitaram as belezas naturais do país, rios, cascatas e os 1.650 km de costa atlântica. Como descrevem os folhetos oficiais: “O clima tropical húmido [de Angola] criou uma flora exuberante e fauna rica espalhada por regiões com matas, savanas, serras impressionantes, rios, praias que parecem estender-se sem limites, cascatas, oásis e belas paisagens que parecem prolongar-se até o infinito e são todas imaculadas e intactas. Um verão sem fim de tardes quentes banhadas em brisas quentes para contemplar aventura e descoberta”.

Angola tem uma beleza natural extrema que se revela como um destino turístico promissor. A Ilha do Mussulo e Cabo Ledo são exemplos de locais com uma imensa capacidade de atração de turistas, assim como várias zonas das províncias como Namibe, Benguela, Malanje e Cuanza-Sul. As Cataratas de Calandula em Malanje são particularmente impressionantes.

Contudo, atualmente, a maioria dos viajantes estrangeiros que chegam a Angola não são turistas, mas sim empresários, trabalhadores e consultores. Isso significa que os hotéis estão voltados para negócios e não turismo ou lazer. Como os negócios passaram uma grave crise desde 2015, de que só agora (2022) se está verdadeiramente a sair, quer dizer que nos últimos anos existiu uma taxa de ocupação marcadamente baixa nos hotéis, que passou de 84% em 2014 para 35% em 2017 e 25% em 2018. Esta queda na ocupação refletiu a crise que ofuscou o país, e não a falta de interesse pelo turismo. A queda dos preços do petróleo que se verificou desde 2014 e até ao ano passado levou a uma diminuição da atividade económica em Angola, o que teve como consequência que menos viajantes de negócios ocupassem hotéis.

Os responsáveis reconhecem que presentemente, existem grandes fragilidades no sector turístico, designadamente “carência de medidas concretas de apoio e incentivo, difícil acesso aos lugares, potenciais recursos e atrativos turísticos, falta de valorização dos recursos turísticos, falta de flexibilidade do sistema bancário ao financiamento de projetos turísticos, défice em termos de estabelecimentos de formação hoteleira e turística, dependência excessiva das importações, por força do défice na produção interna, falta de cultura turística, falta de uma maior abertura na concessão dos vistos de entrada nos principais mercados emissores de turistas do mundo e reduzido poder de compra dos angolanos[2]”.

No entanto, esses números e factos pouco animadores não representam nenhuma tendência estrutural. Entre 2009-2014 Angola registara um forte crescimento do sector hoteleiro com receitas superiores a 45 mil milhões de kwanzas (100 milhões de euros ao câmbio da altura), criando cerca de 223 mil postos de trabalho. Assim, há um claro potencial para o negócio do turismo.

3-Localizações turísticas e mercados potenciais

Angola tem inúmeros pontos turísticos, entre os quais podem-se destacar os parques nacionais da Kissama e Iona, Quedas de Calandula, do Ruacaná, Mussulo, Miradouro da Lua ou o Rio Zambeze.

É possível promover o desenvolvimento de hotéis e estâncias balneares turísticas destinadas a veraneantes em algumas das áreas especificamente destinadas ao turismo de sol, mar e areia como Cabo Ledo a 120km de Luanda no concelho da Quiçama, que tem 2.000 hectares de enorme beleza e é um local potencial para o surf mundial, assim que os processos de vistos sejam facilitados.

Outra alternativa voltada para o turismo de natureza é Calandula, Malange que possui as cascatas mais impressionantes de Angola e é o segundo maior da África com 150 metros de altura e 401 metros de largura. Uma área de 1.978 hectares de vegetação infinita e cascatas a perder de vista e que tem um enorme potencial de investimento turístico: alojamento turístico, restauração, animação, golfe e casinos.

Surgiu também a ideia duma rota dos museus. A iniciativa desta rota é despertar e aumentar a cultura de visitas a museus, a fim de se criar identidade patrimonial. Esta rota contempla o Palácio de Ferro, Museu Nacional de História Militar (Fortaleza São Miguel), Museu Nacional de História Natural e o Museu Nacional da Escravatura, passando por várias unidades hoteleiras. Esta rota deverá servir de modelo para implementação em todas as províncias do país.

Os mercados-alvo do turismo angolano deveriam ser a Rússia (após a resolução pacífica da guerra) e a China, que são hoje os países de onde são oriundos mais de 50% dos turistas internacionais, Angola tem tudo para absorver uma fatia substancial desses mercados. Além disso, como se referiu acima, poderia absorver alguma procura europeia, sobretudo na área da aventura e experiências ecológicas novas.

4-Eixos estratégicos e zonas especiais de turismo (ZET)

Como mencionámos acima a estratégia para o turismo deve assentar em dois eixos: o fomento do investimento e a criação de infraestruturas.

Reconhecemos que existe um novo clima favorável ao investimento e também um esforço, sobretudo no âmbito da CPLP, de flexibilização do processo burocrático de emissão de vistos de turismo, ou seja, estão a ser desenvolvidas as condições para uma nova estratégia de captação de turistas.

Segundo um responsável angolano, os documentos necessários para o licenciamento dos empreendimentos turísticos foram reduzidos, passando de 11 documentos antes exigidos para três. Foi alterada a validade dos alvarás de três para cinco anos, está em curso o processo de descentralização do sistema de emissão dos alvarás. Todas essas ações visam a melhoria do ambiente de negócios na área do Turismo. Em relação aos vistos, o mesmo responsável salienta que o processo já foi mais difícil. Fez saber que houve avanços significativos, que precisam de ser melhorados, para atrair mais turistas[3].

Os mesmos responsáveis defendem que em termos de infraestruturas existem lacunas fáceis de resolver; o aeroporto da Catumbela (Benguela) poderá ser dotado de mecanismos para receber voos internacionais diretos, os transportes fazem parte do investimento que cabe aos privados, a linha férrea do Caminho de Ferro de Benguela passa a centenas de metros do aeroporto, liga à Zâmbia e à República Democrática do Congo e vai até à Tanzânia no Índico, o Lobito tem um Porto de grande capacidade, e a própria expansão vai proporcionando investimentos paralelos na saúde, na formação, nos serviços, e na capacidade de produção de mão de obra qualificada e competitiva.

Ao nível do governo, há o reconhecimento do Turismo como sector estratégico no Plano Desenvolvimento Nacional 2018-2022, como garantia de mão-de-obra intensiva, a par da agricultura, das indústrias diversas e das pescas. Constam do Plano de Desenvolvimento Nacional algumas ações pontuais, tais como a melhoria na comunicação com os Polos de desenvolvimento Turísticos, a elaboração de projetos de construção e reabilitação de infraestruturas hoteleiras e turísticas, estatais e mistas, a identificação de zonas de desenvolvimento prioritário, com o intuito de recuperar e desenvolver todo o património da rede hoteleira e turística.

Outro responsável governativo, que, entretanto, cessou funções, sublinhou que além de Angola começar agora a reduzir as restrições e a burocracia, como parte da estratégia para relançar o turismo e promover a atração de investimento para o setor, queria passar a chamar a atenção internacional para o país, contando com a colaboração da supermodelo internacional Maria Borges, que iria ajudar a promover as potencialidades. A estratégia passaria por chamar um nome internacional, Maria Borges, para ajudar a promover a cultura, a história e os principais destinos turísticos do país.[4]

Com a nova estratégia para a promoção do turismo, Angola espera integrar a lista dos principais destinos turísticos em África até 2025[5].

***

No entanto, não se consegue no curto-prazo criar uma infraestrutura nacional completa para o turismo. Há que haver pragmatismo e realismo nas abordagens políticas de promoção do turismo num país em que este tem sido quase inexistente. É nesse sentido que a melhor solução deve ser dupla e com prazos diferentes.

A médio-prazo deve ser desenvolvida uma estratégia nacional de turismo. Contudo, a curto-prazo deve existir uma aposta focada naquilo que denominaremos Zonas Especiais de Turismo (ZET). As ZET seriam cinco áreas do país em que o Estado em parceria com os privados e as autoridades locais se focaria para criar infraestruturas e condições específicas para o turismo. Zonas com fácil acesso, hotéis, restaurantes, segurança garantida e talvez vistos livre-trânsito para se ir visitar essas zonas. Zonas preferenciais eleitas para testar as ZET poderiam ser Malanje, uma área de praia com animação urbana, uma área de praia de estilo paradisíaco, e uma cidade com muita história ou uma zona com interesse ecológico vocacionada para os turistas europeus.

Figura 2: Zonas Especiais de Turismo (ZET)

Estas zonas teriam tratamento fiscal privilegiado e devia-se contemplar a eliminação de vistos para quem fosse para lá até 15 dias. Esta proposta implicaria eliminação de vistos para turistas estrangeiros dos mercado-alvo que se deslocassem para as ZETs por um prazo máximo de 15 dias em turismo. Bastar-lhes-ia apresentar bilhete de avião de volta e comprovativo da reserva em alojamento turístico.

Haveria assim a criação de circunscrições-piloto dedicadas ao turismo, pequenas cápsulas do que poderia ser o turismo global em Angola no futuro.

Conclusões

O turismo pode ser uma das áreas de excelência da diversificação da economia angolana em curso, pois é um sector onde o país tem um enorme potencial. A aposta no turismo deve ser um trabalho tripartido do Estado, empresariado privado e comunidades locais. Os mercados-alvo serão a Ásia e a Rússia (após a solução da Guerra da Ucrânia), bem como os turistas ecológicos ou aventureiros europeus.

Para existir turismo em Angola devem ser proporcionadas condições de investimento (o que está em curso) bem como infraestruturas adequadas em termos físicos e de fácil deslocação.

É aconselhável proceder no curto-prazo à criação de Zonas Especiais de Turismo que funcionem como experiências-piloto da promoção de turismo. Zonas que congregarão hotéis, restaurantes, animação local, segurança e fáceis acessos, e eliminação de vistos para turismo nas ZETs. E depois com os resultados dessas ZET estender a todo o país.


[1] https://e-global.pt/noticias/lusofonia/angola/angola-joao-lourenco-aposta-em-turismo-para-diversificar-economia-do-pais/

[2] https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/os-resultados-da-estrategia-para-o-turismo-ainda-sao-incipientes/ – entrevista à Angop do diretor geral do Infotur – 31-08-2021

[3] https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/o-futuro-de-angola-repousa-no-turismo-e-nao-no-petroleo/

[4] https://pt.euronews.com/2021/06/28/as-apostas-de-angola-para-relancar-o-turismo

[5] https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/o-futuro-de-angola-repousa-no-turismo-e-nao-no-petroleo/

Obras estruturantes de combate aos efeitos da seca no Sul de Angola

1-Introdução: caracterização do projeto de construções de captação de águas no rio Cunene

Tem sido uma preocupação desta entidade procurar respostas concretas relativamente aos problemas específicos, para além da retórica intensa em períodos pré-eleitorais. Neste caso, um dos temas que nos interessa é o da Seca no Sul de Angola. Como já referimos em relatório do passado mês de novembro[1], acompanhamos as obras em curso referentes à Seca. Uma delas está quase pronta a ser inaugurada e ficar operacional. É sobre ela que damos conta neste documento.

O presente relatório debruça-se sobre a execução das Obras Estruturantes de Combate à Seca, especificamente o projeto e construção de captação no rio Cunene e construção de canais adutores até às localidades de Cuamato, Namacunde e Ndombondola.

Este projeto compreende 2 Lotes:

  • LOTE 1 – Projeto e Construção de Captação no rio Cunene, Sistema de Bombagem, Conduta Pressurizada, Canal Aberto a partir de Cafú até Cuamato e 10 Chimpacas;
  • LOTE 2 – Projeto e Construção de Canal Adutor a partir de Ombala – Cuamato até Ndombondola, Canal Adutor a partir de Cuamato até Namacunde e 20 Chimpacas

Relativamente ao Lote 1, o Empreiteiro Geral é a SINOHYDRO Corporation Limitada, uma sociedade anónima constituída em 2011 em Luanda cuja propriedade é detida por empresas chinesas. A fiscalização é do Consórcio GWIC – Angola, S.A / SINTEC – Consultoria de Engenharia, Lda. No que diz respeito ao Lote 2, a entidade responsável é a mesma, exceto na fiscalização; neste caso a entidade responsável é a TRIEDE Angola, Lda. Uma empresa prestigiada de origem portuguesa.

O prazo previsto para a conclusão da empreitada aponta para o final do mês de março de 2022. Portanto, espera-se uma inauguração para muito breve.

O valor das duas obras atinge os 140 milhões de dólares norte-americanos.

Figura 1: Lotes 1 e 2 do Projeto (Província do Cunene, Angola)

2-Explicitação dos projetos

O Lote 1 compreende as obras de Transferência de Água do Rio Cunene, na secção do Cafu, para a localidades de Cuamato, e assenta na construção da tomada de água, estação de bombagem, condutas pressurizadas, canais adutores e instalações associadas.

O Projeto é composto pelos seguintes elementos principais:

  • Captação no leito do rio Cunene, incluindo a estrutura da tomada de água, comportas, grelhas e outros equipamentos associados;
  • Estação de Bombagem com capacidade de 2 m3/s;
  • A Estação de Bombagem estará equipada com duas bombas ativas e uma de reserva na primeira fase. As bombas serão do tipo turbina, verticais, com capacidade nominal de 1 m3/s;
  • Canal gravítico revestido para receber 6 m3/s. O comprimento do canal é de 46,54 quilómetros com ligação ao reservatório, considerando-se o alinhamento que minimize movimentos de terras;
  • Um alinhamento Norte-Sul foi estabelecido de Cafu até a região de Ombala-Io-Mungo. No final, o canal gravítico será dividido em dois ramais, servindo as localidades de Namacunde e Ndombondola.

Figura 2: Canal condutor geral | Revestimento manual com betão da classe C20/25, 35 km, 1 frentes km (45.954)

Figura 3: Chimpacas | Estados da Chimpaca

Por sua vez, o Lote 2 compreende as obras dos seguintes canais, que derivam da Estrutura de Derivação (ED) de caudais do Canal Condutor Geral (CCG):

  • Canal Condutor Oeste – CCO (Cuamato / Ndombondola), com a extensão de cerca de 53,04 quilómetros;
  • Canal Condutor Este – CCE (Cuamato / Namacunde), com a extensão de cerca de 53,11 quilómetros.

Figura 4: canal adutor Este (CCE)

Figura 5: Colocação de vedação nas Chimpacas dos canais Este e Oeste

3-Atrasos, avanços e recursos utilizados

Devido a vários constrangimentos ocorridos em 2021, como falta de gasóleo no Sul de Angola, água para produção de betão e respetiva cura, cimento em obra, e precipitações, a conclusão da obra deslizou um pouco, uma vez que a conclusão estava prevista inicialmente para fevereiro. Agora a data de conclusão é para o final do mês de março (talvez início de abril).

Foram afetos às obras um total de 1250 trabalhadores (Lote 1 – 417; Lote – 833), sendo 162 (Lote 1 – 70; Lote 2 – 92) de nacionalidade chinesa e 1088 (Lote 1 – 347; Lote 2 – 741) de nacionalidade angolana. Estão alocados às obras os equipamentos, num total de 388 unidades das quais 135 no Lote 1 e 243 unidades no Lote 2.

4-Benefícios para as populações

         O projeto, como foi apresentado acima, consiste a construção do sistema de transferência de água do Rio Cunene, da localidade de Cafu para a região das Chanas na província do Cunene, em Angola. As intervenções estão incluídas num investimento total superior a 140 milhões de euros realizado pelo governo para fazer face aos longos períodos de seca que afetam de modo dramático pessoas e animais.

            Pretende-se criar as condições propícias para o desenvolvimento da agricultura e pecuária, aumento da resiliência às alterações climáticas nesta região praticamente deserta do Sul de Angola, sujeita a frequentes secas prolongadas, beneficiando centenas de milhares de habitantes e cabeças de gado, bem como fornecendo água para irrigação numa área estimada em 5.000 hectares.

Existe a expectativa que o projeto venha a beneficiar aproximadamente 200.000 habitantes e 250.000 cabeças de gado. Refira-se que o Cunene tem cerca de 900 mil habitantes, pelo que mais de 20% da população é abrangida por esta obra.


[1] https://www.cedesa.pt/2021/11/16/o-combate-estrutural-a-seca-no-sul-de-angola-o-caso-do-cunene/

As novas ameaças e o reforço das Forças Armadas Angolanas

Novas ameaças a Angola

A história de Angola tem sido uma constante de desafios e superações, tendo estado a sua sobrevivência como entidade única ameaçada desde a independência em 1975. Nunca é demais lembrar que a própria independência foi declarada em diferentes horas e vários locais por entidades diversas, com maior ou menor legitimidade. Agostinho Neto proclamou a independência da República Popular de Angola às 23h de 11 de novembro de 1975, em Luanda. Holden Roberto, líder da FNLA, anunciava a Independência da República Popular e Democrática de Angola à meia-noite do dia 11 de novembro, no Ambriz e Jonas Savimbi fazia o mesmo pela UNITA na então Nova Lisboa no mesmo dia, declarando o nascimento da República Social Democrática de Angola.

Imediatamente, seguiu-se uma guerra civil que mais ou menos esporadicamente, abrangendo maiores ou menores áreas, durou até 2002. As tentativas de invasão externa também foram frequentes, a África do Sul ainda antes da independência entrou pela Namíbia e o Zaire de Mobutu fez o mesmo a norte. Depois foi a vez de Cuba, a convite do governo de Luanda também entrar no país para contrapor as outras invasões.[1]As intervenções indiretas das então superpotências, também abundaram, sendo desnecessário recordar as ameaças de desintegração que o país viveu até ao final da guerra civil em 2002.

Depois dessa data as ameaças que se colocaram a Angola diminuíram, embora muitas permanecessem latentes e outras surgissem como as ligadas à captura do Estado e corrupção.[2]

Na atualidade, há um incremento das ameaças externas pós 2002, não assumindo os contornos dramáticos dos anos a seguir à independência, mas colocando exigentes desafios às forças de defesa da soberania, integridade territorial e ordem pública nacional.

Separatismo

A nível interno, vislumbra-se o reacender das tentativas separatistas, quer nas Lundas, quer em Cabinda, que poderão ser rastilho para outras iniciativas. Relativamente a Cabinda surgiram recentemente relatos nas redes sociais, replicados nalguns órgãos de comunicação social de confrontos entre o braço-armado da Frente de Libertação do Estado de Cabinda (FLEC) e as Forças Armadas Angolanas (FAA).[3] Esses ataques, reais ou virtuais, sucedem-se a várias queixas da República Democrática do Congo (RDC) acerca de incursões angolanas no seu território em aparente hot pursuit de membros da FLEC. Em agosto passado, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da RDC, Célestin Mbala Musense, criticava supostas incursões da Marinha angolana em águas territoriais do país em operações contra rebeldes de Cabinda e afirmava que os soldados das FAA estariam a multiplicar as incursões na perseguição aos rebeldes da FLEC. [4]

A par deste eventual recrudescimento militar, que não é certo e sobre o qual não existe informação fidedigna, surge uma corrente de opinião devidamente publicitada que invoca a necessidade de uma solução, embora não se perceba qual seja, ou se apresenta cansada de um confronto.

A verdade é que a Constituição de Angola (CRA) no seu artigo 5.º, n.º 6 é determinante ao prescrever que: “O território angolano é indivisível, inviolável e inalienável, sendo energicamente combatida qualquer acção de desmembramento ou de separação de suas parcelas, não podendo ser alienada parte alguma do território nacional ou dos direitos de soberania que sobre ele o Estado exerce.” Note-se que esta formulação implica que qualquer território permaneça sempre como parte integrante do Estado, mas não proíbe diferentes estatutos e aproximações, como o estabelecimento de autonomias sempre integradas no todo nacional e de autarquias locais, mais ou menos descentralizadas.

Há, portanto, um dever constitucional de combater qualquer tentativa de secessão territorial, admitindo a CRA o uso da força para que tal aconteça (“energicamente combatida”). Neste âmbito as FAA desempenharão um papel crucial em evitar qualquer desmembramento. Além do direito constitucional, também é fácil de perceber que qualquer separação ou “desligamento” de Cabinda face a Angola teria um efeito desagregador do país, que como se sabe, historicamente, é uma construção recente e em progresso.

Isso leva à segunda ameaça do mesmo tipo separatista existente nas Lundas. Em janeiro de 2021, houve um confronto sangrento, cujos contornos foram devidamente descritos no texto de Rafael Marques, “”Miséria & Magia.”[5]Além de aspetos socioeconómicos, o evento tem sido visto como ligado às tentativas independentistas de um autodesignado Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT).

É evidente que, em primeiro lugar é dever do Estado e do governo tratar os agravos das populações locais atendendo às suas reivindicações de cariz desenvolvimentista, económico e social. Trata-se primordialmente duma questão política e de progresso. Contudo, não vale a pena ignorar que no final haverá sempre que garantir a integridade e soberania nacionais e as FAA poderão ter um papel determinante para assegurar a coesão do território.

É por isso que se considera que uma ameaça real à soberania de Angola são as pulsões ou intenções separatistas de parte do seu território, cabendo às FAA como esteio do Estado garantir a integridade e unidade do Estado.

Captura do Estado e corrupção

A segunda ameaça existente a nível interno liga-se com a referida captura do Estado e combate à corrupção. A opção do poder político foi entregar o combate à corrupção aos meios judiciais comuns, portanto, tal não é uma função das FAA, mas das forças policiais, de investigação criminal e magistraturas. As FAA apenas entram naquilo que se refere à “captura do Estado”. Se porventura forças ou entidades que beneficiarem da corrupção tentem afetar o normal funcionamento do Estado de Direito e da Justiça, fragilizando o poder político, pode-se entender que as FAA terão o dever de defender a constitucionalidade e a legalidade, não intervindo nos processos judiciais concretos, mas garantindo as condições de tranquilidade e paz para que os órgãos judiciários normais façam o seu trabalho. Esta é uma linha difícil de traçar para a atuação dos militares, pelo que a postura aqui deve ser entendida como de vigilância e simbólica de suporte à atividade das forças policiais e não de intervenção direta.

Se o separatismo e a “captura de Estado” são as ameaças à soberania e paz em Angola, do ponto de vista externo existem mais e variadas ameaças que têm que ser elencadas e aumentaram nos últimos anos, obrigando a uma especial atenção das FAA. Destacam-se como ameaças externas:

  1. a instabilidade em países vizinhos, designadamente a RDC;
  2. o alastramento do terrorismo designado como islâmico;
  3. crime e pirataria marítima;
  4. o aumento da concorrência entre as potências mundiais com interesses em bens africanos.

Algumas palavras rápidas sobre cada um destes segmentos:

  1. a instabilidade em países vizinhos, designadamente a RDC

Embora pela primeira vez tenha ocorrido em 2018/2019 uma transição pacífica de poder no Congo (RDC), a verdade é que a situação nesse enorme país está longe de estar controlada. A porosidade com a fronteira de Angola é um facto, habitualmente, referido, mas o problema essencial é que Tshisekedi, o Presidente da República e o aparato estatal parecem não controlar vastas zonas do país que, segundo alguns, estão submetidas a milícias fomentadas pelo Ruanda para buscar riquezas para processamento nesse país. Recente artigo do docente angolano e membro do partido do governo angolano, Benjamim Dunda, refere que “O que alguns não sabem é que Ruanda é a porta de entrada e saída da pilhagem dos excessivos recursos minerais da RDC. Boa parte da interminável instabilidade da vizinha nação de Mobutu, tem as impressões digitais de Kagame. O Exército Patriótico Ruandês (EPR) e militares do Uganda ocupam militarmente parte do território da RDC. O Coltan (columbita e tantalita) é actualmente o minério mais cobiçado mundialmente pelas indústrias de tecnologia. 80% das reservas mundiais encontram-se na República Democrática do Congo.”[6] Sem o tom exaltado de Dunda, Laura McCreedy, do Centro de Operações de Paz do International Peace Institute afina pelo mesmo diapasão, referindo já este mês existiram relatos da retomada da violência por procuração (proxy violence) – atribuída ao Uganda, Ruanda e Burundi – bem como as recentes operações ofensivas contra as Forças Democráticas Aliadas (ADF) pelas forças de Uganda e a suposta presença da polícia ruandesa e tropas burundesas no leste da RDC, o que é particularmente alarmante[7].

O que aparenta é que existe um conflito latente na RDC que está longe de ser resolvido, a que acresce uma espécie de invasão assimétrica, utilizando as técnicas popularizadas por Vladimir Putin na Crimeia e Ucrânia, por forças do Ruanda e talvez do Uganda dentro da RDC. Isto pode provocar a breve trecho uma guerra mais intensa e não tão dissimulada no país com efeitos óbvios em Angola. Não esquecer que Angola esteve presente nas denominadas Primeira Guerra Civil do Congo (1996-1997) e Segunda Guerra Civil do Congo (1998-2003), além de ter intervindo direta ou indiretamente nos momentos relevantes subsequentes da história da RDC. Consequentemente, não será indiferente ao evoluir da situação na RDC e a esta espécie de invasão discreta ou disfarçada que ocorre, tendo as FAA, pelo menos um papel dissuasor.

2. o alastramento do terrorismo designado como islâmico

A realidade religiosa angolana não faria antever um perigo iminente proveniente do terrorismo islâmico. No entanto, existem dois fatores que devem ser tidos em conta para aumentar o grau de perigo do terrorismo islâmico em Angola.

O primeiro fator é que aquilo que muitas vezes se chama “terrorismo islâmico” não tem uma real conotação religiosa, mas representa uma espécie de franquia ou marca adotada por movimentos ou guerrilhas insurrecionais em zonas degradadas económico-socialmente. Quer isto dizer que é possível que em áreas descontentes em Angola surjam movimentos terroristas “islâmicos”, que de maometano nada tenham a não ser a designação, adotada para infundir o medo e terror nas populações e autoridades. Aliás, parece claro que os vários movimentos terroristas islâmicos que surgem em África não resultam de um comando ou planificação central, antes sendo células mais ou menos autónomas que se imitam e mutuamente inspiram, buscando elementos comuns na propaganda e metodologias. Como dizem os especialistas da Chatham House, Alex Vines e Jon Wallace, “[Em África, a] linha entre o jihadismo, o crime organizado e a política local é muitas vezes turva e ainda mais complicada por fatores globais, como mudanças climáticas, crescimento populacional e migração.[8]”Quer isto dizer que o “caldo” referido pode surgir em Angola, e de repente, a bandeira islâmica ser atrativa para grupos insurrecionais descontentes com o governo.

A este primeiro fator, junta-se o alastramento que vai percorrendo o continente africano relativamente ao terrorismo islâmico e que vai cercando paulatinamente Angola. Na vizinha RDC, embora ainda longe das fronteiras angolanas, já se fala de terrorismo islâmico a propósito da ADF (Allied Democratic Forces), fazendo-se ligações desta organização ao Estado Islâmico. Na Tanzânia referem-se pequenos ataques como os de outubro de 2020, na aldeia de Kitaya na região de Mtwara; ataque que foi reivindicado por extremistas islâmicos que operam a partir do norte de Moçambique. Obviamente, que o caso de Cabo Delgado em Moçambique é paradigmático da combinação que se pode antever para Angola, um descontentamento socioeconómico aliado ao surgimento do terrorismo islâmico. Mais a norte, seja na República Centro Africana, seja no Chade, seja na Nigéria, há uma permanente ameaça de grupos terroristas que se identificam como islâmicos.

A porosidade das fronteiras, aliada às dificuldades socioeconómicas tornam-se magnetos poderosos para a expansão do terrorismo que se pode tornar uma ameaça interna em Angola, e já é certamente uma ameaça fronteiriça e em propagação pelo continente africano.

3. crime e pirataria marítima

De Cabo Verde à costa angolana, os ataques a navios aumentaram nos últimos anos. Nesta vasta região marítima, os piratas – inicialmente concentrados em torno do Delta do Níger – estenderam as suas atividades a todas as costas nigerianas, bem como ao Benin e ao Togo. Desde 2011, não menos de 22 atos de pirataria foram registados no Benin, afetando o tráfego no porto de Cotonou, que caiu 60%. O grande impacto económico do crime marítimo – que inclui pesca ilegal, tráfico de drogas e armas – nas costas da África Ocidental aumenta todos os anos. O Golfo da Guiné é agora considerado a zona vermelha marítima do continente.[9]

A posição de Angola tem sido clara, assumindo-se como motor estratégico do combate à pirataria, apontando para a criação de uma estratégia de financiamento governamental no Golfo da Guiné e na região dos Grandes Lagos, reconhecendo que a criminalidade tem vindo a crescer nesta área, pondo em perigo a própria região do ponto de vista nacional, internacional e regional. É nesta perspetiva que Angola atribui grande importância aos espaços marítimos que têm que ser controlados. De facto, dos 90 por cento dos crimes cometidos no oceano Atlântico, 70 por cento ocorrem no Golfo da Guiné o que é preocupante.

4. o aumento da concorrência entre as potências mundiais com interesses em bens africanos

Esta situação é mais geral e talvez menos iminente em causar disrupção que as anteriores, contudo, existe e a médio-prazo pode ser a principal ameaça para Angola. Alguns autores falam de uma nova “corrida para África”, como aquelas que ocorreram no final do século XIX a propósito da Conferência de Berlim e após as independências no âmbito da Guerra Fria. Angola foi obviamente parte central de ambas as “corridas”. A primeira serviu para lhe delimitar as fronteiras e completar a intervenção colonial portuguesa, enquanto na segunda foi um dos principais palcos de batalha do confronto EUA-União Soviética. A prestigiada revista inglesa The Economist resumia em 2019 a nova, e terceira, corrida para África, escrevendo que há uma terceira onda em andamento. O continente é importante e está a tornar-se cada vez mais importante, principalmente por causa de sua crescente participação na população global (até 2025 a ONU prevê que haverá mais africanos do que chineses). Governos e empresas de todo o mundo estão a correr para fortalecer os laços diplomáticos, estratégicos e comerciais.[10] Na verdade, quem primeiro discerniu as oportunidades do continente foram os chineses que desde o início do século XXI apostam fortemente em África, sendo Angola o seu principal parceiro, pelo menos em termos de dívida. O restante mundo só agora re-acordou para África. Mas de facto, verificamos a Turquia em busca de novos mercados e aliados desde que abandonou o alinhamento com a União Europeia, os países do Golfo Pérsico na mesma linha procurando projetos de diversificação para as suas economias, e a União Europeia, liderada por Alemanha e França, com a Itália e Espanha também com intensidade retomando velhos e arranjando novos contactos, quer por motivos económicos, quer para tentar estancar a imigração clandestina que afeta os seus países e pode fazer perder eleições aos seus governos. Igualmente a Rússia, no misto de retomada imperial e procura de negócios volta a África. Apenas os Estados Unidos da América prosseguem desde Donald Trump uma política adormecida em relação ao continente, não entendendo ainda muito bem o que estão a fazer de substancial, além de alguns ruídos contra a China e/ou a propósito do terrorismo islâmico. No entanto, esta letargia pode terminar.

Neste momento, é a China que vai muito à frente na nova corrida para África. A partir do momento em que europeus e norte-americanos entendam definitivamente- estamos ainda numa fase ambivalente-que a presença chinesa em África é uma ameaça aos seus interesses geopolíticos e económicos, acentuar-se-á a competição. Recorde-se que a China atualmente absorve de África cerca de 60% das exportações de cobalto; 40% de ferro; e 25-30% de suas exportações de cromo, cobre e manganês.

Consequentemente, o papel de Angola como detentor de matérias-primas fundamentais e força estabilizadora da RDC, outro repositório imenso de recursos, será determinante.

O momento atual das FAAs

Face ao exposto, facilmente se compreende que este tempo é de grande exigência para as FAAs que podem ser novamente chamadas a desempenhar funções de sobrevivência nacional.

Neste momento, de acordo com as fontes mais credíveis, as FAAs são compostas por aproximadamente 107.000 soldados ativos (100.000 Exército; 1.000 Marinha; 6.000 Força Aérea); estima-se ainda 10.000 na Polícia de Reação Rápida (2021).[11]

A despesa militar é de cerca de 1,7% do PIB, portanto, abaixo dos 2% que os Estados Unidos pretendem como parâmetro para os países da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte de que obviamente Angola não faz parte, mas cujo parâmetro pode servir de valor ideal de dispêndio militar). Não é uma despesa exagerada, ao contrário, do que se poderia pensar.

A maioria das armas e equipamentos militares angolanos são de origem russa, soviética ou do Pacto de Varsóvia; desde 2010, a Rússia continua a ser o principal fornecedor de equipamento militar para Angola.[12]

Em relação à sua capacidade militar em 2022, Angola está classificada em 66º lugar entre 140 países considerados pela Global Fire Power. [13] As suas forças contam com 320 tanques, 1210 veículos blindados, e várias peças de artilharia. Note-se, contudo, que os tanques são essencialmente antigos, adquiridos na década de 1990 com origem na União Soviética. Da pesquisa que realizámos, apenas conseguimos encontrar um veículo tipo tanque-destroyer razoavelmente moderno (de 2016), o PTL-02 Assaulter comprado à China. Quanto às forças navais, embora possuindo uma costa alargada e responsabilidades no Golfo da Guiné, o país apenas dispõe de 37 barcos de patrulha e nenhum navio de porte médio ou maior como corvetas, fragatas ou cruzador.

Quanto à Força Aérea são contabilizados 299 aviões, dos quais 71 caças, 117 helicópteros e 15 helicópteros de ataque.

Uma recente análise do África Monitor, que, há que anotar, tem refletido uma postura crítica do governo de João Lourenço, apresenta uma suposta factualidade, que mesmo que esteja exagerada ou represente um prisma demasiado pessimista, traça um quadro pouco animador acerca da prontidão e material da Força Aérea e Marinha Angolanas. Segundo, esta publicação, a frota da marinha de guerra tem os seus níveis de operacionalidade cronicamente “prejudicados por incumprimento de exigências de manutenção e/ou impreparação das suas tripulações.”[14] Também na Força Aérea a paralisia será a palavra-chave. De acordo com o mesmo periódico, estarão paralisadas “as unidades da frota de helicópteros de transporte que ainda operavam (Mil Mi-8, de fabrico russo), quer aparelhos da década de 1980-1990, quer unidades recondicionadas posteriormente”, existe uma “incapacidade para assegurar a manutenção de helicópteros de combate (Mil Mi-24)” e  também em “situação de quase paralisia estão(…), há mais tempo, as frotas de caças MiG-21 e MiG-23, de fabrico soviético, e Sukhoi (Su-22, Su-25, Su-30, Su-27).[15]

Especialistas com quem contactámos diretamente e que preferem manter anonimato asseguram que nos últimos anos não existiu qualquer compra significativa de material militar. Assim, aparentemente, pode existir uma necessidade de reforço com estes ramos das forças armadas.

Em resumo, vislumbram-se necessidades nas Forças Armadas de três tipos: material obsoleto e não modernizado, falta de manutenção do equipamento e impreparação de alguns quadros para atividades específicas. Tal torna, obviamente, importante a intervenção nas FAAs no sentido de aumentar o seu orçamento e elevar a sua capacidade operacional face aos desafios descritos.

Vetores de modernização das FAAs

De tudo o exposto resulta dois pressupostos de base que nos levam a uma conclusão simples. Os pressupostos são que as ameaças à soberania e integridade de Angola aumentaram nos últimos anos depois de um período de alguma acalmia após 2002. Hoje o país defronta-se com uma nova “corrida para África” das grandes potências e das emergentes, a ameaça do terrorismo designado como islâmico espalha-se pelo continente e a pirataria e criminalidade no golfo da Guiné ao longo da costa são uma realidade. A isto acresce o renovar das tendências separatistas internas e a forte reação da oligarquia anteriormente dominante ao combate contra a corrupção. A estes factos correspondem, neste momento, umas FAAs com algumas lacunas ao nível de material, prontidão e treino, o que pode, eventualmente, inviabilizar uma reação adequada em caso de incremento de alguma das ameaças expostas.

Resulta da equação destes pressupostos que uma política de modernização das FAA em termos de equipamento, treino e prontidão/ manutenção é fundamental. Ao contrário, do que muitos alegariam é necessário um reforço do orçamento militar e uma reforma modernizadora das Forças Armadas.

O Orçamento Geral do Estado para 2022 ainda não reflete totalmente essas necessidades. Se reparamos, de 2021 para 2022 há um incremento nominal dos gastos de defesa de 19,7%. Basta pensar que a inflação oficial se situa na ordem dos 27% em 2021[16]para se perceber que em termos reais o dispêndio com a defesa diminui, levando provavelmente a cortes na esfera militar. Por sua vez, os gastos com a defesa equivalem a 1,4%PIB.[17]

Entendemos que a modernização das FAA tem um vetor qualitativo que deve ser definido pelos especialistas na área e envolver a prontidão das Forças Armadas, a sua capacidade de implantação e níveis de sustentabilidade, bem como a qualidade da força que pode exercer. Contudo, o vetor que nos debruçamos neste relatório é o quantitativo e apresentamos a sugestão muito simples já adotada pelos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), que é a de situar a despesas com a defesa na ordem dos 2% do PIB.[18] Este não é um número mágico e pode ser objeto de muitas críticas, mas representa um parâmetro objetivo e quantificável, e na verdade confere ao poder político um instrumento mensurável para atingir[19], o que pode ser um avanço nas políticas de boa governação e transparência que se pretendem implementar em Angola.


[1] Cfr. Pedro Pezarat Correia (1991), Descolonização de Angola: jóia da coroa do império português, Lisboa: Inquérito; Silva Cardoso (2000) Angola, anatomia de uma tragédia, Lisboa: Oficina do Livro; «Involvement in the Angolan Civil War, Zaire: A Country Study». United States Library of Congress;

 Donald S. Rothchild (1997). Managing Ethnic Conflict in Africa: Pressures and Incentives for Cooperation. Brookings Institution Press. pp. 115–116; Ndirangu Mwaura, (2005). Kenya Today: Breaking the Yoke of Colonialism in Africa. pp. 222–223; Chester A Crocke, Fen Hampson, Pamela Aall, Pamela (2005). Grasping The Nettle: Analyzing Cases Of Intractable Conflict.

[2] Para uma boa definição destes temas na África do Sul, mas com aplicação conceitual a Angola ver Judicial

Commission of Inquiry into State Capture Report: Part 1  [Zondo Report] (2022).

[3] Simão Lelo, (2022), Ataques em Cabinda: Aumentam apelos para uma solução, Deutsche Welle, https://www.dw.com/pt-002/ataques-em-cabinda-aumentam-apelos-para-uma-solu%C3%A7%C3%A3o/a-60489955

[4] Cópia de documentos na posse do CEDESA e referidos na imprensa, por exemplo, em https://e-global.pt/noticias/lusofonia/angola/chefe-do-estado-maior-congoles-protesta-contra-violacoes-do-territorio-por-angola/

[5] Morais, Rafael, (2021), Miséria & Magia, MakaAngola & UFOLO.

[6] Benjamin Dunda (2022), O que não dizem do Ruanda e de Kagame, https://camundanews.com/noticia/9593/dupla-nacionalidade-da-presidente-do-tribunal-constitucional-nao-viola-constituicao.html

[7] Laura McCreedy (2022), What Can MONUSCO Do to Better Address the Political Economy of Conflict in DRC? https://reliefweb.int/report/democratic-republic-congo/what-can-monusco-do-better-address-political-economy-conflict-drc

[8] Alex Vines e Jon Wallace, (2021), Terrorism in Africa, Chatham House, https://www.chathamhouse.org/2021/09/terrorism-africa

[9] Baudelaire Mieu (2021), Cameroon, Nigeria, Angola: Increased pirate activity along western coasts, The Africa Report, https://www.theafricareport.com/70478/cameroon-nigeria-angola-increased-pirate-activity-along-western-coasts/

[10] The Economist (2019), The new scramble for Africa, https://www.economist.com/leaders/2019/03/07/the-new-scramble-for-africa

[11] Angola. The World Factbook (2022) CIA, https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/angola/#military-and-security

[12] Idem nota supra

[13] Cfr. https://www.globalfirepower.com/country-military-strength-detail.php?country_id=angola 

[14] África Monitor, Nº 1334 |20.JAN.2022 |Ano XIX.

[15] Idem nota supra.

[16] https://www.bna.ao/#/, taxa de inflação apresentada a 28-01-2022  é de 27,03%.

[17] Ministério das Finanças, (2021), RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO

Orçamento Geral do Estado 2022, p.68.

[18] North Atlantic Treaty Organization, (2014) “Wales Summit Declaration,” press release,

September 5, www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_112964.htm

[19] Sobre as críticas e vantagens ver Jan Techau (2015), THE POLITICS OF 2 PERCENT. NATO and the Security Vacuum in Europe. Carnegie Foundation.

Os bloqueios e a reforma da justiça angolana

1-Introdução. O foco na justiça

A visão inicial do papel da justiça em Angola ficou estabelecida na lei constitucional inicial a seguir à independência em 1975, a Lei Constitucional de 11 de novembro de 1975. Esta lei fundamental considerou os tribunais como órgãos de Estado, cabendo-lhes em exclusivo o exercício da função jurisdicional com vista à realização duma justiça democrática (artigo 44.º), sendo assegurado que no exercício das suas funções os juízes são independentes (Artigo 45.º).

Curiosamente, o princípio básico referente ao poder judicial não é muito diferente do atualmente consagrado na Constituição da República de Angola de 2010 (CRA), apesar das mudanças de sistema político entretanto ocorridas. Os tribunais continuam a ser órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artigo 105.º e 174.º) e “no exercício da função jurisdicional, os tribunais são independentes e imparciais, estando apenas sujeitos à Constituição e à lei.” (artigo 175.º). Há uma continuidade estrutural na conceptualização essencial do poder judicial desde a independência, embora as suas formas e práticas tenham variado ao longo do tempo[1].

Em termos de relevância, talvez o denominado “combate à corrupção” anunciado em 2017 pelo Presidente João Lourenço tenha trazido um foco para a justiça que nunca tinha existido anteriormente, e por isso, hoje seja fundamental discutir a reforma da justiça.

Pelo que se vê pela referência sumária que se fez aos textos constitucionais, não houve ao longo do tempo especial preocupação doutrinal ou mesmo prática com os juízes e a aplicação da justiça. Aliás, em 1977, ficou famoso ao dito atribuído ao então Presidente da República Agostinho Neto, a propósito dos eventos do 27 maio, em que foi fuzilada uma multidão de pessoas: “Não vamos perder tempo com julgamentos[2]”. A justiça ocupou sempre um papel secundário nas preocupações principais dos governos angolanos e provavelmente da opinião pública.

Só após o início de processos sobre os “famosos” (Filomeno dos Santos, Augusto Tomás, Manuel Rabelais, e no cível Isabel dos Santos) e algumas acusações e julgamentos é que a justiça se tornou o palco da luta política e centrou atenções. É um facto muito interessante que João Lourenço tenha escolhido entregar o combate contra a corrupção à justiça ordinária e com isto desafiando-a a ser eficaz. Mais tarde, a luta política ainda entrou mais nos tribunais, com o famoso acórdão do Tribunal Constitucional sobre a UNITA que declarou nula a eleição de Adalberto da Costa Júnior[3].

Estes dois factos convergentes, a entrega do combate à corrupção aos tribunais ordinários e a destituição de Adalberto da Costa Júnior pelo tribunal constitucional originaram dois fenómenos inovadores no mundo judicial angolano.

Em primeiro lugar, ligou-se uma espécie de luz muito forte que passou a iluminar as atividades do poder judicial. O que antes se passava na obscuridade e ininteligibilidade do linguajar jurídico passou a estar visível para o grande público, e muitos defeitos do sistema surgiram a olho nu: a lentidão, a falta de especialização técnica ou a ausência de meios materiais.

Em segundo lugar, os tribunais tornaram-se o objeto do forte ataque de todos os que não concordavam com as decisões ou não teriam medo de ser abrangidos por elas. Assim, uma boa parte da elite angolana, que tem receio de ir parar a um tribunal, começou a criticar ferozmente os tribunais, as suas decisões, o seu funcionamento, a sua independência. O objetivo destas atitudes é muito simples: deslegitimar as decisões judiciais., desvalorizando o seu peso. A isto juntam-se as declarações bombásticas de muitos dos advogados de defesa, que não hesitam na crítica cerrada às decisões que não beneficiam os seus constituintes. Ao mesmo tempo, este desagrado e “campanha” anti- tribunais foi acelerada pelo descontentamento com a decisão do tribunal constitucional referente à UNITA.

Consequentemente, os tribunais tornaram-se um campo de luta política e legal. É falso e errado afirmar aquele velho jargão que “a justiça e a política não se misturam”. Na realidade, em Angola estão bem misturadas, como em Portugal ou nos Estados Unidos[4].

Todos estes factos levam ao questionamento do papel da justiça em Angola, sublinhando-se, sobretudo, a sua lentidão e eventual politização. Na verdade, esta discussão acaba por ser benéfica porque do questionamento, surge a discussão e a necessidade de reforma.

O que há que garantir é que esta justiça em que a política entrou, se mantém imparcial e independente, tomando as suas decisões sem influências, de forma transparente e tecnicamente fundamentada no direito. É com esse desiderato que a justiça angolana poderia ser reformada.

2-Os bloqueios: o paradigma legal, os meios materiais e orçamento, a corrupção, a questão política.

Com o intuito de se propor uma reforma adequada da justiça angolana, haverá que prioritariamente identificar os bloqueios e impedimentos ao bom funcionamento desta, pois será nestes “nós górdios” e não em declarações gerais e abstratas que se deverá centrar o processo reformista.

             Identificámos cinco bloqueios que impedem o bom funcionamento da justiça em Angola:

             1-O paradigma legal inadequado;

             2-A falta de meios materiais e gestão eficiente do orçamento;

             3- A corrupção;

             4- A questão política.

              Vamos analisar, ainda que sumariamente, cada um destes bloqueios.

2.1-O paradigma legal inadequado

O primeiro bloqueio do sistema judicial angolano é aquele que não se vê, pois envolve todo o sistema e por isso deixa de haver a perceção da sua existência. Trata-se do paradigma legal em que o direito angolano se move. É fácil entender que apesar de alguma proximidade com as fórmulas marxistas entre 1975 e 1992, o direito angolano se manteve essencialmente idêntico ao direito português, quer nos grandes corpos legislativos, quer na doutrina, quer na formação.

Em termos de legislação é um facto que durante décadas após a independência, as leis portuguesas continuaram a ser as leis angolanas. O Código Civil e o Código de Processo Civil ainda são os recebidos do Portugal na década de 1960, enquanto o Código Penal da Monarquia e o Código do Processo Penal do início do Estado Novo apenas foram substituídos em 2021, e por textos muito semelhantes, quando não cópias, dos textos entretanto aprovados em Portugal após o 25 de abril de 1974.

Se ao nível legislativo impera a influência portuguesa, ao nível doutrinal também. Os professores portugueses são os mais citados na jurisprudência angolana. Basta exemplificar com o acórdão do Tribunal Constitucional referente à UNITA (Acórdão n.º 700/2021), cuja doutrina citada é principalmente portuguesa. São referidos Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, Carvalho Fernandes, Abílio Neto, Alberto dos Reis, Ana Prata, todos portugueses, para consubstanciar a deliberação dos juízes. Apenas um angolano, Raul Araújo, é mencionado. Naturalmente, que este pequeno detalhe doutrinal revela o quanto o direito angolano ainda é subsidiário de Portugal.

O mesmo acontece em termos de formação. Uma boa parte dos Manuais utilizados no ensino ainda é de autores portugueses ou escrito em colaboração entre angolanos e portugueses o que já é uma evolução. No direito constitucional pontifica o manual do professor Bacelar Gouveia, português, ou dos professores Jónatas Machado, Nogueira da Costa e Esteves Hilário, aqui uma colaboração mista Portugal-Angola, como acontece com o manual fundamental de direito administrativo de Carlos Feijó e Diogo Freitas do Amaral. Ao mesmo tempo, ainda é tido como a graduação mais prestigiante obter um mestrado ou doutoramento em direito nas universidades de Lisboa ou Coimbra.

Não haveria aqui problema especial se o direito português correspondesse às exigências da modernidade e a sua prática se traduzisse em simultâneo em algo de justo e eficaz. O problema é que o direito português, e por absorção o direito angolano, vivem num paradigma burocrático e pouco prático. As normas e formas de agir do direito português estão desatualizadas, a interpretação da lei tornou-se exageradamente subjetiva, nunca se sabendo exatamente ao que se vem, as normas processuais implicam longos julgamentos, e a tendência, na área criminal tem sido de diminuição dos direitos dos arguidos, chegando-se a uma situação em que nem os processos terminam em tempo útil para a justiça, nem já os arguidos têm defesas e garantias adequadas. No direito criminal português caiu-se no pior dos mundos, processos lentos, inquisitórios e arguidos sem direitos, dependendo do bom-senso dos magistrados e pouco mais. É um direito injusto. Por sua vez, o direito processual foi transformado, sobretudo pelo famoso professor coimbrão Alberto dos Reis numa ciência demasiado elaborada a que poucos iniciados têm acesso, atravancando os processos, e em que os objetivos de velocidade e justiça deixaram de existir.

O sistema jurídico português, em cujo paradigma Angola se move, é lento, confuso e pouco adequado aos tempos atuais, geralmente não sendo justo, nem célere, deixando em demasia tudo nas mãos dos juízes. Ora, esse é o problema essencial com que se debate o sistema judicial angolano e o primeiro bloqueio a superar.

2.2-A falta de meios materiais e gestão eficiente do orçamento

Tem sido persistente a contenção de que a justiça angolana está depauperada e não tem meios. No, agora longínquo ano de 2017, a 26 de maio, entrara no Tribunal Provincial da Comarca de Luanda um requerimento da Associação dos Juízes de Angola, com vista ao procedimento de uma “notificação judicial avulsa” à República de Angola nas pessoas dos seus ministros da Justiça e das Finanças. Essa notificação lembrava que variados subsídios legalmente previstos e outros instrumentos necessários para realizar o trabalho dos magistrados não eram postos à disposição pelo poder político. Segundo a descrição dos juízes, não viria longe o dia em que estariam a viver em casas sem luz e sem água, e em que não poderiam dirigir-se para o tribunal, por não terem carro nem qualquer outro meio de deslocação[5]. Afirmavam os magistrados judiciais que, desde 2013, se veem na obrigação de custear as despesas com o material de trabalho. Concretamente: papel, tinteiros, fotocópias das folhas processadas (com timbre dos vários modelos usados nos tribunais), deslocações dos oficiais de justiça para efeitos de citações e notificações, compra de telefones celulares e um plano mensal de recarga para auxiliar nas citações/notificações dos advogados e utentes, combustível para os geradores (nas salas em que estes existem). Ainda na época, referiam que a sala do Julgado de Menores, sita no Zango 3, em Viana, estava sem energia elétrica regular no período diurno, em horário de expediente. Tal impossibilitava que os magistrados pudessem desempenhar cabalmente as suas funções, obrigando-os a redigir à mão as audiências, designadamente interrogatórios, julgamentos, instrução processual, inquéritos sociais… O gerador encontrava-se avariado. Acresce que, devido à distância, os funcionários que lá trabalhavam faziam-se transportar numa das viaturas da instituição, cujo combustível e manutenção era suportado a suas expensas.

A situação não melhorou significativamente desde aí, apesar do novo foco na justiça. Em julho de 2021 houve protestos públicos de juízes e magistrados do ministério público; queixavam-se da “falta de condições técnicas e até de baixos salários (…) O presidente do Sindicato Nacional dos Magistrados do Ministério Público (SNMMP), José Buengas, afirmou mesmo que a maior parte dos tribunais e das procuradorias” de Angola funcionam com dinheiro dos próprios magistrados que “tiram do seu bolso para comprar papel e tinteiro. O dia em que deixar de fazer isso e ficar à espera de que uma resma de papel para o mês todo chegue para imprimir todos os documentos, os constituintes, os advogados e a população vão ficar à espera, com todas as consequências que disso pode advir`”[6]

O Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2022 prevê uma dotação de 1,21 % das receitas para os órgãos judiciais, equivalendo a 113.777.899.457,00 Kwanzas. Tal representa uma subida em mais de 100% em relação ao ano de 2020 em que apenas 0,37% das receitas eram imputadas aos órgãos judiciais, representando 49.414.027.773,00 Kwanzas. Considerando que a inflação acumulada neste período terá andado entre os 45% a 48%, a verdade é que temos um aumento real dos gastos com a justiça superior a 50%.

Comparando, por sua vez o ano em curso (2021) e o previsto para 2022 temos um gasto monetário previsto de 133,8 mil milhões de kwanzas, contra 55,9 mil milhões de kwanzas em 2021. Tal corresponde a um aumento nominal de 103,5%. E corresponde respetivamente a 1,2%, 0,6% e 0,2% da despesa fiscal, despesa fiscal e percentagem do PIB[7].

Portanto, temos aqui um certo paradoxo que se transforma num obstáculo ao eficiente funcionamento da justiça. Por um lado, há uma persistente e constante queixa dos magistrados, que pode ser comprovada em muitos tribunais visualmente, acerca da falta de meios materiais, por outro, há um efetivo esforço do Estado em aumentar os meios disponíveis para o setor da justiça, tendo procedido a uma orçamentação que prevê a duplicação dos gastos com a justiça em dois anos (2020-2022), que aliás acelera na transição de 2021 para 2022.  

2.3- A corrupção

A corrupção na magistratura angolana é um fenómeno pouco estudado, mas muito falado. Um curto inquérito fechado levado a cabo por este centro em relação à corrupção na magistratura angolana entre operadores judiciais permitiu chegar à conclusão que a maioria acredita que os juízes se deixam influenciar por razões monetárias ou políticas (este último veremos abaixo), e nesse sentido muitas das decisões são tomadas com base nessas influências, não tendo em conta o direito aplicável. Existiram mesmo referências por parte de magistrados de tentativas variadas de ofertas de presentes ou quantias monetárias.

Este inquérito não tem uma amostra suficientemente alargada para permitir retirar conclusões científicas, apenas nos dá uma impressão das opiniões existentes entre advogados, magistrados e funcionários judiciais.

A outro nível, o portal do jornalista investigativo Rafael Marques, MakaAngola, tem contado várias histórias de decisões judiciais inexplicáveis, que possivelmente, só poderiam ter sido tomadas devido a estímulos externos[8].

O certo é que esta é uma situação de que muito se fala, mas sobre a qual existe pouca informação, mas tem criado uma imagem de insegurança jurídica junto dos operadores judiciários e investidores e por isso é fundamental ser ultrapassada.

2.4- A questão política

Na ordem do dia está a questão da politização dos tribunais angolanos. Não existe dia que não surja uma opinião publicada, geralmente, ligada à oposição, indicando a falta de credibilidade, sobretudo, dos tribunais superiores, e nestes do tribunal constitucional, devido à sua politização[9].

          A argumentação centra-se em dois eixos fundamentais.

O primeiro eixo liga-se à filiação partidária dos juízes. O caso da presente Presidente do Tribunal Constitucional, Laurinda Cardoso, tem sido invocado à sociedade, pois até ao momento da sua nomeação estava filiada no MPLA e além de ser membro do governo de João Lourenço, estava também nos órgãos superiores do partido. O facto de ter suspenso a filiação não a tem absolvido das críticas de comprometimento político, especialmente tendo em conta que um dos seus primeiros atos foi subscrever o já mencionado acórdão n.º 700 que destituiu Adalberto da Costa Júnior da liderança da UNITA.

O segundo eixo é de cariz mais institucional, e assenta na argumentação que direta ou indiretamente a larga maioria dos juízes acaba por depender da nomeação do Presidente da República ou do partido maioritário na Assembleia Nacional, o MPLA. De facto, ao nível do Tribunal Constitucional, a CRA determina que quatro juízes em onze são designados pelo Presidente da República e outros quatro por uma maioria de 2/3 na Assembleia Nacional, que o MPLA tem detido desde sempre. Nessa medida, pelo menos 8 dos 11 juízes estariam alinhados com o poder político. Já quanto ao Tribunal Supremo, o Presidente e Vice-Presidente são nomeados pelo Presidente da República de entre 3 candidatos selecionados por 2/3 dos Juízes Conselheiros em efetividade de funções.

Atendendo a estes vários fatores tem crescido nalguma opinião pública o sentimento da dependência do poder judicial face ao poder político, servindo para variados ataques deslegitimadores das decisões judiciais.

3-Os eixos da reforma judicial: mudança paradigma legal, reforço dos meios materiais e nova gestão pública, combate à corrupção, transparência na politização: o modelo alemão.

Mudança de paradigma legal: a “desberlinização” do Direito

A primeira prioridade de uma reforma do sistema judicial é a mudança do paradigma legal, ou dito de outro modo, a modificação da mentalidade jurídica e dos padrões utilizados. Defendemos que a excessiva cópia dos modelos, normas, doutrinas e professores portugueses é perniciosa para Angola, pois não dota a cultura jurídica do país de instrumentos e formas de pensar adequados aos desafios concretos em que está envolvido.

Assim, há que buscar novas inspirações noutras paragens. Uma investigação alargada deveria ser realizada em relação a casos de estabilidade e/ou sucesso na própria África, como é o caso da Namíbia e sobretudo do Botsuana. Parece ter lógica jurídica verificar o tipo de princípios e normas, bem como de organização judicial adotado no Botsuana e adaptar aquilo que se entenda para Angola. Outra ordem jurídica que poderia ser explorada de forma mais profunda, designadamente no que diz respeito à organização judiciária e processual, bem como ao direito criminal é o Brasil, especialmente, na perspetiva do combate à corrupção e dos vários instrumentos normativos que tem “importado” do direito norte-americano.

Naquilo que diz respeito ao combate à corrupção, o sistema jurídico angolano tem de se “americanizar”, investindo no direito premial, na delação premiada, nos acordos de sentença, e nas polícias específicas.

A fim de acelerar a mudança de paradigma ao nível dos juízes, estes deveriam passar a contar com assessores especializados que estudem e preparem as decisões de acordo com o novo paradigma legal.

Uma sugestão seria instituir uma comissão de reforma do direito não apenas contendo as luminárias angolanas assessoradas por portugueses, como acontece agora, mas admitindo contributos multinacionais. Assim, a comissão de reforma do direito deveria conter especialistas angolanos e portugueses, mas também do Botsuana, Namíbia, Brasil e se possível dos Estados Unidos da América e Grã-Bretanha. O mais importante de tudo é haver uma renovação da pluralidade de contributos e de fontes meta-legais para o direito angolano.

Reforço dos meios materiais e novo modelo de gestão

Em relação ao reforço dos meios materiais e de um novo modelo de gestão haverá três itens a considerar[10].

O primeiro é natural e trata-se do reforço do Orçamento Geral do Estado para a justiça. De sublinhar que o governo parece ter sido sensível a este aspeto, porquanto, como acima se referiu, em 2022 temos um gasto monetário previsto de 133,8 mil milhões de kwanzas, contra 55,9 mil milhões de kwanzas em 2021. Há, portanto, mais do que uma duplicação nas verbas destinadas à justiça, o que é de aplaudir.

Uma segunda medida já foi tomada, e também é de aplaudir, exceto num detalhe. Em causa está o Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de março, que aprova o regime de comparticipação atribuída aos órgãos de administração da justiça pelos ativos, financeiros e não financeiros, por si recuperados. A ideia subjacente é positiva. Trata-se de entregar aos órgãos de justiça alguns dos bens obtidos no combate à corrupção, criando um estímulo para atuação efetiva e eficiente na recuperação de ativos, além de dotar a justiça de meios que não teria doutra forma. Esta disposição está certa. Os órgãos de justiça devem beneficiar dos bens que apreendem, apenas deviam ter ficado de fora os magistrados judiciais que são quem decide as apreensões e perdas a favor do Estado, pois pode-se argumentar que a sua imparcialidade ficaria obstruída ao decidir que alguém perde determinado bem, sabendo que eventualmente determinado magistrado iria beneficiar direta ou indiretamente dele. Salvaguardado expressamente esse aspeto, esta ideia é de fomentar, e vem no seguimento do que temos defendido em anteriores relatórios no sentido de ser necessário colocar os fundos obtidos no combate contra a corrupção ao serviço direto do interesse público.

Em último lugar, além do reforço de verbas, seja através do Orçamento Geral do Estado, seja através dos bens recuperados nos processos da corrupção, deve ser encarado um novo modelo de gestão dos dinheiros da justiça que garanta a racionalidade e eficiência da alocação de recursos.

Não se defende a entrega da gestão aos juízes. Mas a criação de um instituto autónomo e com gestão transparente da administração da justiça, que geriria as receitas orçamentais, as receitas do combate contra a corrupção e poderia ter receitas próprias ligadas às atividades da justiça. Este instituto teria gestores profissionais e seria auditado por uma empresa internacional de auditoria. O seu funcionamento seria descentralizado com um gestor adstrito a cada tribunal de comarca e tribunal superior.

Haveria assim, a par do reforço de verbas, uma autonomização da gestão dos dinheiros da justiça que seriam administrados por um instituto com gestores profissionais constituído para o efeito e que funcionaria de forma descentralizada em cada tribunal.

Combate à corrupção no sistema judicial: uma polícia própria dependente da Assembleia Nacional

Este é um tema difícil. Como se viu acima é um tema de que muitos falam, mas não existem provas concretas. Além disso, é complicado ter um sistema de combate à corrupção dentro da magistratura que não afete de algum modo a independência dos juízes ou seja vista como uma intromissão no poder judicial. No entanto, acreditar na autorregulação em termos de combate à corrupção na magistratura judicial também não parece remediar o problema, pois haverá tendência a soluções corporativas de encapotamento.

Propendemos para uma solução radical, mas provisória. Essa solução seria a criação de uma Polícia Anticorrupção na Magistratura (PACOM) dependente da Assembleia Nacional; o poder legislativo é diretamente dependente da vontade soberana popular e por isso com legitimidade para sindicar os juízes. A PACOM seria criada por sete anos, com poderes de investigação dos magistrados judiciais limitados a situações de corrupção (teria um mandato muito restrito para evitar acusações de interferência) e seria controlada pela Assembleia Nacional e também pela sociedade civil. O controlo pela sociedade civil dar-se-ia através de um sistema estilo Grande Júri norte-americano. Qualquer investigação que a PACOM decidisse levar a cabo contra algum magistrado judicial só avançaria depois de validada por um grupo de 12 membros da sociedade civil que funcionariam como filtro e fiscalizador das intenções da Polícia anticorrupção em relação aos magistrados.

Portanto, a investigação da corrupção de determinado juiz, não seria apenas uma decisão policial, mas também da sociedade. Este sistema vigoraria provisoriamente por sete anos, após o que seriam implementados sistemas de autocontrolo dentro da própria magistratura, esperando que no final desse tempo uma nova pedagogia e prática tivessem sido adotadas.

Transparência na politização: o modelo alemão

A politização da justiça angolana, sobretudo dos tribunais superiores, é a acusação que mais frequentemente se faz ouvir atualmente. Contudo, esta questão não é típica de Angola, havendo vários países, especialmente, quando as decisões dos tribunais têm consequências políticas ou se assiste a uma certa judicialização da política em que a politização dos tribunais é tema recorrente. É o caso dos Estados Unidos, em que o Presidente Trump conduziu uma intensa campanha para criar uma maioria de direita no Supremo Tribunal e em que este tribunal está debaixo de intenso escrutínio para ver se entra numa deriva política ou não com a tal maioria de direita, notando-se um forte empenho do seu presidente, John Roberts, em procurar soluções equilibradas nas decisões e evitar essas acusações de politização[11]. A politização foi também um dos epítetos mais usados pelo antigo presidente Lula no Brasil para confrontar as decisões judiciais que lhe foram desfavoráveis a propósito da operação Lava-Jato.

Não sendo um monopólio angolano, a realidade é que a questão da influência política nas decisões judiciais tem sido trazida à colação amiúde. A solução geralmente apontada para solucionar essa suposta influência política tem sido a modificação dos modos de designação dos juízes dos tribunais superiores pelo poder político, seja o executivo, seja o legislativo. Afirma-se que o facto de ser o Presidente da República ou a maioria qualificada de dois terços dos deputados da Assembleia Nacional redunda sempre no mesmo: o MPLA a designar os dirigentes dos tribunais superiores, e no caso do tribunal constitucional, a sua larga maioria.

Como alternativa propõe-se que exista um sistema de autosseleção de escolha dos juízes, ou um modelo estilo concurso público/ comissão independente e ainda que que sejam criados mecanismos institucionais de garantia da independência dos juízes, que os autonomizem e isolem da influência política. No fundo, estas soluções acabam por ser corporativas: os juízes a escolher juízes e os juízes a controlar os juízes. E nessa medida, têm um problema de legitimidade. Não há nenhuma boa razão que justifique que sejam os juízes a escolher os seus pares ou que constituam um círculo fechado em que ninguém tenha uma palavra a dizer.

 A magistratura, como qualquer órgão soberano tem de ter uma justificação política que legitime a sua escolha. No sistema idealizado por Platão do rei-sábio[12], poder-se-ia pensar numa espécie de exames de alta qualificação em que aqueles que se mostrassem os mais sábios se tornariam juízes. Teríamos a legitimidade platónica do rei-filósofo, que de certa forma, foi também adotado pelas fórmulas confucionistas do mandarinato na China, a partir da dinastia Sui, e apenas baseado no mérito após os Song[13]. No entanto, não se vive nem no modelo idealizado por Platão, nem na China imperial, mas em estados de direito democrático. E a realidade é que a prevalência do princípio democrático impõe que os juízes assentem, em última instância, a sua legitimidade no processo democrático. E nessa medida o poder político deve sempre intervir na escolha dos juízes. Afastar o poder político da escolha judicial é retirar-lhe democraticidade, logo legitimidade. O poder político tem de estar presente no processo de escolha dos magistrados, pois é daí que deriva a sua legitimidade popular e democrática.

Por outra via, não parece que a fórmula de escolha dos juízes ou os órgãos de controlo e gestão sejam verdadeiramente determinantes da sua independência. Acaba por ser melhor existir transparência, saber-se o que pensa e defende cada juiz e aferir o seu trabalho pela análise da fundamentação das decisões que toma, do que criar inúmeros mecanismos que só servem para confundir. É melhor existir um Presidente da República ou um Parlamento a nomear um juiz, o que confere mediatamente legitimidade democrática ao juiz e saber-se a que partido o juiz pertence, do que se criarem ficções de independência que apenas tornam as nomeações e decisões opacas.

O que interessa essencialmente à sociedade é aferir da independência do juiz nas suas decisões judiciais. Por isso, essas devem ser publicadas, conhecidas e sujeitas a discussão; à parte disso, o juiz é uma mulher ou homem como outro qualquer e isso deve ser assumido e dito.

Neste sentido, o sistema em vigor na República Federal da Alemanha acaba por ser o mais honesto. Neste país, que detém uma das magistraturas mais reputadas do mundo,” é permitido aos magistrados serem filiados em partidos políticos, bem como pronunciarem-se publicamente sobre questões políticas. Os juízes com aspirações a serem nomeados para os tribunais superiores podem até considerar de alguma vantagem a filiação partidária, principalmente se for em um dos dois maiores partidos (SPD e CDU). Neste enquadramento legal também não existe qualquer impedimento para um juiz exercer um cargo num partido político[14]”. Por exemplo, a seção 36 da Deutsches Richtergesetz (Lei dos Juízes Alemães) admite que um juiz seja candidato ao parlamento, concedendo-lhe as férias necessárias para preparar sua eleição nos últimos dois meses antes da eleição, sem remuneração.

O sistema alemão, podendo parecer bizarro, tem duas vantagens. A primeira já se referiu é a da transparência. A segunda, é de cariz mais técnica e obriga a que o direito seja dito de forma universalmente aceite e compreensível, sujeito à maior discussão e publicidade crítica. O que se pretende é que os juízes sejam técnicos independentes nas suas decisões, por isso, haverá modelos de decisão e lógica jurídica que todos seguirão, adotando os mais altos critérios da ciência do direito. O que aqui interessa é que o juiz decida de acordo com a lei e de forma metodologicamente correta, daí a importância das regras de metodologia e interpretação na doutrina alemã. Quer-se aplicar uma conduta de raciocínio sindicável e que garanta a autonomia. O treino e a preparação técnica dos juízes são a garantia da sua independência.[15]

Parece-nos que este método seria mais honesto para Angola, exigência jurídica e desconsideração dos aspetos políticos que dificilmente não existirão.

Conclusões

Face ao exposto uma reforma real da justiça angolana envolverá a mudança do paradigma de cultura legal, a “desberlinização do direito”, procurando-se outras novas influências além das portuguesas, como de países vizinhos africanos com sucesso tal como o Botsuana, além do Brasil e dos Estados Unidos.

A isto acrescerá o reforço orçamental e a criação de um instituto autónomo e descentralizado para a administração financeira da justiça.

É também advogada uma polícia própria assente na Assembleia Nacional e com a participação da sociedade para combater a corrupção

E finalmente a assunção do modelo alemão de transparência e exigência técnica para garantir a não politização das decisões judiciais, admitindo que os juízes podem estar filiados em partidos políticos.


[1] Sobre a evolução dos textos constitucionais angolanos ver Adérito Correia e Bornito de Sousa, (1996), Angola. História Constitucional. Almedina.

[2] São inúmeras as referências a esta afirmação de Agostinho Neto, ver por exemplo Edgar Valles, (2020), 27 de Maio: reconciliação e perdão em Angola? PÚBLICO, https://www.publico.pt/2020/05/27/opiniao/noticia/27-maio-reconciliacao-perdao-angola-1918297

[3] Acórdão n.º 700/2021 do Tribunal Constitucional, https://jurisprudencia.tribunalconstitucional.ao/wp-content/uploads/2021/10/ACORDAO-No-700.pdf

[4] J.A.G. Griffith,(2010), The politics of the judiciary, Fontana Press; Rui Verde, (2015) Juízes: O Novo Poder

Ensaio sobre a acção e reforma do poder judicial em Portugal. RCP Edições

[5] MakaAngola (2017), A reivindicação dos juízes. https://www.makaangola.org/2017/06/a-reivindicacao-dos-juizes/

[6] Deutsche Welle, Borralho Ndomba (2021), Falta de condições para juízes põe em causa combate à corrupção em Angola, https://p.dw.com/p/3yYSJ

[7] Ministério das Finanças de Angola, https://www.minfin.gov.ao/PortalMinfin/?fbclid=IwAR1C597oUjdNas8WFrR9R4u0B_1gb_NH-82fQEVyUGl52HUBcazWITEYo4I#!/materias-de-realce/orcamento-geral-do-estado/oge2022

[8] Cfr. por exemplo, Rui Verde, (2019) Ignorância ou corrupção na justiça, MakaAngola, https://www.makaangola.org/2019/01/ignorancia-ou-corrupcao-na-justica/ ou Moiani Matondo, (2020),A droga de justiça, MakaAngola, https://www.makaangola.org/2020/07/a-droga-da-justica/

[9] A título exemplificativo, Sousa Jamba, (2021) Tribunal Constitucional. MakaAngola (2020), https://www.makaangola.org/2020/07/a-droga-da-justica/ ou Kajim Ban-Gala (2021) Laurinda Cardoso: antinomia, filiação partidária e incompatibilidade, https://www.correioangolense.co.ao/2021/12/27/laurinda-cardoso-antinomia-filiacao-partidaria-e-incompatibilidade/

[10] Ver sobre o tema Nuno Coelho (2015), Gestão dos Tribunais e Gestão Processual, CEJ, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/Gestao_Tribunais_Gestao_Processual.pdf e E B McConnell (1991), Court Management: The Judge’s Role and Responsibility, Justice System Journal Volume: 15 Issue: 2.

[11] Ver as análises contidas em SCOTUSBlog. https://www.scotusblog.com/2021/12/the-lives-they-lived-and-the-court-they-shaped-remembering-those-we-lost-in-2021/ 

[12] Eric Brown, (2017) “Plato’s Ethics and Politics in The Republic”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Edward N. Zalta (ed.), https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/plato-ethics-politics/

[13] Mark Cartwright (2019), The Civil Service Examinations of Imperial China, https://www.worldhistory.org/article/1335/the-civil-service-examinations-of-imperial-china/

[14] Vânia Gonçalves Álvares (2015), O governo da justiça: O Conselho Superior da Magistratura. Universidade Nova. P.33.

[15] Sobre o treino e preparação de juízes na Alemanha ver: Johannes Riedel, (2013). Training and Recruitment of Judges in Germany. International Journal for Court Administration, 5(2), pp.42–54. DOI: http://doi.org/10.18352/ijca.12