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O sistema eleitoral das Autarquias Locais em Angola e a inclusão do Poder Tradicional

Rui Verde

Nota prévia:

Tendo sido convidado e aceite participar no 1.º Congresso Angolano de Direito Eleitoral, realizado a 7 e 8 de Dezembro de 2023, por motivos técnicos não consegui apresentar a minha comunicação online. Fica aqui o texto da apresentação.

Especificidade da eleição local

Um sistema eleitoral local não tem necessariamente de replicar o sistema nacional. Apesar de em ambos os casos estarmos perante a escolha de representantes em processos democráticos, a natureza das eleições e dos órgãos é algo diferenciada.

Em muitos países, a taxa de abstenção nas eleições autárquicas é maior do que em eleições nacionais[1], além disso a governação local está dedicada a questões muitas vezes diferentes dos temas nacionais. Até certo ponto, embora isso seja disputável, sobretudo em países politicamente polarizados como Angola, entende-se que a política local será essencialmente não-ideológica. Nos Estados Unidos, durante muitos anos, os académicos argumentaram que havia pouca diferença entre as políticas dos responsáveis eleitos localmente pelos partidos Democrata ou Republicano porque a maioria das questões políticas locais eram técnicas e não políticas. Como escreveu Adrian, “não existe uma forma republicana de pavimentar uma rua e nenhuma forma democrática de instalar um esgoto.”[2] Há que referir, também, que a questão da representação das várias minorias e interesses se coloca com especial acuidade a nível local.[3]

É esta diferenciação estruturante que serve de ponto de partida para um curto comentário acerca do presente sistema eleitoral previsto para as Autarquias Locais em Angola, abordando dois temas em concreto. Em primeiro lugar, proceder-se-á a uma descrição sumária do actual modelo constitucional-legal de eleição autárquica, em segundo lugar, a uma breve reflexão sobre o papel do poder tradicional, atendendo à pressão demográfica indesmentível em Angola.

O poder local na Constituição

A sede primeira sobre o poder local no ordenamento jurídico angolano é a Constituição (CRA) que dispõe sobre o tema nos artigos 213.º e seguintes.

Aí se determina que as “ formas organizativas do Poder Local compreendem as Autarquias Locais, as instituições do Poder Tradicional” (art.º 213, n.º 2) e que as Autarquias Locais “ têm, de entre outras e nos termos da lei, atribuições nos domínios da educação, saúde, energias, águas, equipamento rural e urbano, património, cultura e ciência, transportes e comunicações, tempos livres e desportos, habitação, acção social, protecção civil, ambiente e saneamento básico, defesa do consumidor, promoção do desenvolvimento económico e social, ordenamento do território, polícia municipal, cooperação descentralizada e geminação.” (art.º 219.º), prevendo-se vários órgãos como uma “Assembleia dotada de poderes deliberativos, um Órgão Executivo Colegial e um Presidente da Autarquia” (art.º 220.º, n.º 1).

Em termos de sistema eleitoral, a Constituição estabelece que a “Assembleia é composta por representantes locais, eleitos por sufrágio universal, igual, livre, directo, secreto e periódico dos cidadãos eleitores na área da respectiva autarquia, segundo o sistema de representação proporcional.” (art.º 220,n.º 2), o “Órgão Executivo Colegial é constituído pelo seu Presidente e por Secretários por si nomeados, todos responsáveis perante a Assembleia da Autarquia.” (art.º 220, n.º 3) e o Presidente do Órgão Executivo da Autarquia é o cabeça da lista mais votada para a Assembleia. (art.º 220, n.º 4). Finalmente, no artigo 220, n.º 5 é definido que as “candidaturas para as eleições dos Órgãos das Autarquias podem ser apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, ou por grupos de cidadãos eleitores, nos termos da lei.”

Acerca das instituições do poder tradicional, a Constituição reconhece-as nos seus artigos 223.º e seguintes, remetendo para o direito consuetudinário a sua designação, e para a lei a sua articulação com as Autarquias Locais (art.º 225.º).

Consequentemente, existem, de acordo com a Constituição duas formas de Poder Local, as Autarquias Locais e o poder tradicional, cuja relação não é estabelecida na lei fundamental. Em relação às autarquias é desde logo definido o seu modo de eleição, o que não acontece, naturalmente, com o poder tradicional.

O sistema eleitoral das Autarquias Locais

Para a descrição do sistema eleitoral previsto para as Autarquias Locais, à Constituição, deve-se juntar a Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento das Autarquias Locais (Lei n.º 27/19 de 25 de Setembro), bem como a Lei Orgânica sobre as Eleições Autárquicas (Lei n.º 3/20, de 27 de Janeiro), a que nos ateremos nesta descrição.

Como mencionado, temos a considerar três órgãos nas autarquias: a assembleia, o executivo e o presidente. Atentando, ao município, a autarquia por excelência (artigo 218.º da CRA), verificamos que destes órgãos apenas dois, a assembleia e o presidente são eleitos. O executivo é designado pelo presidente da câmara. Na verdade, dispõe o artigo 29, n.º 2 da Lei de Organização e Funcionamento das Autarquias, que a Câmara Municipal (o executivo) é composta por Secretários nomeados pelo Presidente da Câmara, embora responsáveis perante a Assembleia Municipal. A exoneração de Secretários compete ao Presidente da Câmara (artigo art.º 31, n.º 1, b).

Assim, nos municípios há dois órgãos electivos e é sobre eles que nos debruçaremos. Trata-se da Assembleia Municipal e do Presidente da Câmara.

Os membros dos órgãos electivos são eleitos por sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico pelos cidadãos residentes na circunscrição local (artigo 15.º da Lei das Eleições Autárquicas-LEA). O artigo mais relevante da LEA é o artigo 40.º que define o modelo electivo em lista única para a Assembleia e a Presidência da Câmara, replicando o modelo constitucional nacional que tanta polémica tem levantado. De facto, nos termos desse normativo haverá apenas uma lista. Estabelece o artigo 40.º da LEA que as candidaturas a Presidente da Câmara são apresentadas no quadro da apresentação das listas de candidatos a membros da Assembleia da Autarquia Local (art.º 40, n.º1), sendo que o candidato a Presidente da Câmara é aquele que surgirá em primeiro lugar na lista de candidatos a membro da Assembleia (art.º 41, nº 2). Nestes termos em cada Boletim de Voto será impresso o nome quer do Partido, Coligação ou Grupo de Cidadãos concorrentes, quer o nome do candidato a Presidente da Câmara e respectiva fotografia tipo-passe, a sigla e os símbolos da candidatura (artigo 17.º da LEA). Será eleito Presidente da Câmara aquele que estiver na lista que obtiver o maior número de votos, ainda que não a maioria absoluta, ficando com o direito a nomear todo o executivo (artigo 21.º da LEA). Os membros da Assembleia Municipal são eleitos segundo o sistema de representação proporcional, seguindo-se o método de Hondt para conversão dos votos em mandatos de acordo com as regras do artigo 29.º da LEA.

Refira-se que este sistema electivo, bem como as regras atinentes ao Boletim de Voto já foram sufragadas constitucionalmente pelo Acórdão n.º 111/2010 do Tribunal Constitucional quando apreciou o texto que ficou denominado como Constituição de 2010.

Temos assim um misto de sistema maioritário de uma volta que elege o Presidente da Câmara com o sistema proporcional que determina a composição da Assembleia Municipal.

Alegar-se-á em sua defesa que ao mesmo tempo garante a eficiência do governo (sistema maioritário de uma volta) com uma ampla democracia (sistema proporcional para a constituição da Assembleia).

Mas, também se poderá dizer que mantém o “defeito” de uma eleição não totalmente directa do Presidente, que muitos criticam na CRA com referência à eleição do Presidente da República.

Também para aqueles que gostam da comparatística portuguesa, se referirá que não segue o modelo português em que a eleição do Presidente da Câmara é separada da eleição da Assembleia Municipal, podendo um partido ganhar a Presidência e perder a Assembleia como acontece neste momento em Lisboa, além de qua o executivo (Vereação) é formado de acordo com os resultados eleitorais, dependendo da vontade presidencial apenas a distribuição ou não de pelouros[4].

Neste aspecto, o modelo português poderia ser pedagógico, pois ensinaria os diversos partidos, habitualmente polarizados, a entrar em acordos de governo local, o que constituiria uma base de bom espírito democrático de diálogo e tolerância.

Como referência inovadora, há que mencionar que grupos de cidadãos eleitores podem sem qualquer autorização apresentar-se às eleições autárquicas (art. 44.º da LEA) desde que sejam em número mínimo de 150 cidadãos eleitores na respectiva circunscrição (art.º 48, n.º 1 da LEA).

Poder tradicional e expansão demográfica

É um facto que a demografia angolana tem sofrido uma explosão. “Entre 1960 e 2020, a população de Angola cresceu 6,2 vezes, chegando a mais de 30 milhões de habitantes, um aumento mais expressivo do que o que se observou nos países da África Subsaariana (5,1x) e do que noutras regiões, como o Leste Asiático (2,3x) e a América Latina (2,9x).”[5]

É evidente que este número de habitantes não é consentâneo com o actual número de municípios angolanos, 164. Basta lembrar que Portugal, com 10 milhões de habitantes, conta com 308 municípios.

Se é um facto que o número actual de municípios em Angola não corresponde às necessidades reais da população, também é facto que a ideia de aumentar o número dos 164 para 581 é absurdamente impossível, quer por razões financeiras, quer por razões administrativas e burocráticas.[6]

Há assim que procurar respostas inovadoras, possíveis e constitucionais. É neste sentido, que tem relevo a sistemática constitucional ao colocar as instituições do poder tradicional no título referente ao poder local, onde também estão inseridas as autarquias locais. Aliás, o mesmo acontece com a Lei Orgânica do Poder Local, Lei n.º 15/17 de 8 de Agosto, que versa sobre as Autarquias Locais e as Instituições do Poder Tradicional.

A sistemática constitucional e legal esboça um início de resposta à questão que colocámos acima. À sistemática temos de adicionar algumas considerações acerca do actual paradigma do Direito. Não podemos pensar o Direito ainda nos termos dos quadros racionais positivos dos séculos XVIII e XIX que aplicam uma única ementa a toda a regulação da vida social. Não aprofundando o tema aqui, temos de considerar o Direito como um sistema aberto[7]que permita várias intersecções materiais e contributos e não apenas um positivismo fechado, único e redutor. É neste contexto, que é importante permitir que as instituições do poder tradicional assumam a função de autarquia local onde estas não existam e sejam necessárias.

A realidade imporá que existam dois tipos de Autarquias Locais vigentes, aquelas que serão reguladas pelo direito positivo e aquelas derivadas do direito consuetudinário e reguladas pelo costume, aceitando-se uma pluralidade de regimes, legal e costumeiro[8], com vista à efectiva implantação dum poder local descentralizado e próximo da população, aceitando-se a “presença de mais do que uma ordem normativa num campo social.”[9]

Trata-se no fundo de concretizar um desiderato sistemático da Constituição que ao colocar quer as Autarquias Locais formais, quer as Instituições do Poder Local na égide do Poder Local, não comete um erro, como afirmam alguns, mas abre pistas para a consideração dum verdadeiro pluralismo jurídico em Angola que funcionará como solucionador de problemas ligados à eficácia da máquina estatal.


[1] Anzia SF. 2013. Timing and Turnout: How Off-Cycle Elections Favor Organized Groups. Chicago: Univ. Chicago Press ou Hajnal ZL. 2009. America’s Uneven Democracy: Race, Turnout, and Representation in City Politics. Cambridge, UK: Cambridge Univ. Press.

[2] Adrian CR. 1952. Some general characteristics of nonpartisan elections. Am. Political Sci. Rev. 46: 766–786, p. 766.

[3] Abott, Carolyn, and Asya Magazinnik. “At-Large Elections and Minority Representation in Local Government.” American Journal of Political Science 64, no. 3 (2020): 717–33.

[4]  Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro

[5] Grupo de Estudos Económicos (2023), Transição demográfica em Angola: ónus ou bónus? MakaAngola, https://www.makaangola.org/2023/07/transicao-demografica-em-angola-onus-ou-bonus/

[6] Verde, Rui, (2022), O “(ir)racional” dos 581 municípios, MakaAngola, https://www.makaangola.org/?s=munic%C3%ADpios

[7] Viehweg, T. Topik und Jurisprudenz, 1954; Perelman, Ch. Das Reich der Rhetorik; Rhetorik und Argumentation, 1980

[8] Cfr. Feijó, Carlos, A coexistência normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem

Jurídica Plural Angolana, Coimbra, Almedina, 2012.

[9] Fernandes, T. 2009. O poder local em Moçambique. Descentralização, pluralismo jurídico e legitimação. Porto, Edições Afrontamento, p. 40

O sector económico e financeiro na revisão constitucional angolana – Em especial, a consagração da independência do banco central

1-Introdução. Revisão constitucional em Angola

A presente Constituição angolana (CRA) data de 2010 e nunca tinha sido revista. Recentemente, o Presidente João Lourenço anunciou ter tomado a iniciativa de propor uma revisão constitucional.

Um primeiro comentário que esta ação suscita é que o presidente angolano tem uma política corajosa enfrentando os vários desafios que lhe têm sido colocados: combate à corrupção, reforma económica, rapidez na reação à Covid-19. Neste momento, ainda não colhe os frutos desse enfrentamento determinado, e aí reside algum paradoxo, um presidente reformista arrisca-se a ser submerso pelas suas próprias reformas.

A presente proposta de revisão constitucional é minimalista, e assim foi assumido pelo governo. Nesse sentido, arrisca-se a criar expectativas na população que depois não serão satisfeitas. Contudo, representa um passo muito importante na discussão do modelo político angolano e o certo é que a discussão constitucional será mais importante mesmo que as efetivas alterações que no fim serão inseridas na Constituição.

O objetivo do presente texto é destacar e analisar as principais propostas de revisão constitucional na área da economia e finanças.

2-A proposta de lei de revisão constitucional na área económica e financeira

A primeira modificação proposta encontra-se no artigo 14.º da CRA, que diz respeito à propriedade privada. Introduz-se a expressão “promove[1]”, com a significação de ser função do Estado além de garantir e proteger a propriedade privada e livre iniciativa, também a promoção da iniciativa privada. É introduzido um comportamento positivo do Estado, o da promoção da livre iniciativa privada.

Mais à frente, é adicionado ao Artigo 37.º que regula o “Direito e limites da propriedade privada”, um novo número 4. Este número consagra a possibilidade de nacionalização em caso de “ponderosas razões de interesse nacional”. Também introduz o confisco enquanto medida sancionatória, sendo este permitido quando ocorra uma ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado.

Naturalmente, é no Título acerca da Organização Económica, Financeira e Fiscal que são acrescentadas algumas modificações na área económica. O artigo 92.º conterá novos números 2 e 3. A nova redação proposta para o n.º 2, pretende “clarificar o alcance e o sentido do princípio da propriedade comunitária, enquanto tipo de propriedade consagrado no artigo 14.º da Constituição, que define a natureza do sistema económico chamando à regulação do exercício deste tipo de propriedade as normas do direito consuetudinário que não contrariem o sistema económico, o regime social de mercado e os princípios fundamentais da Constituição”. Já o n.º 3 estabelece a existência legal do sector não estruturado da economia, i.e., refere-se à economia informal, apontando para a sua institucionalização progressiva.

Depois temos o artigo 100.º sobre o Banco Nacional de Angola (BNA). No número 1 desse artigo determina-se que o BNA será o “banco central e emissor da República de Angola” e terá como funções primordiais:  garantir a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegurar a estabilidade do sistema financeiro. Portanto, as funções do BNA são delimitadas ao combate à inflação e à estabilidade do sistema financeiro.

De seguida, no número 2 “consagra-se a nova natureza jurídica do BNA, enquanto entidade administrativa independente, de feição eminentemente reguladora, e sinaliza-se o conteúdo do princípio da independência deste tipo de entidades”. Fica doravante proibida “a transmissão de recomendações ou emissão de directivas aos órgãos dirigentes do BNA sobre a sua actividade, sua estrutura, funcionamento, tomada de decisão” acerca das prioridades a adotar na prossecução das atribuições constitucional e legalmente definidas, por parte do Poder Executivo ou de qualquer outra entidade pública.

Os números subsequentes do mesmo artigo determinam que: “O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional.” E estipulam um procedimento detalhado para essa nomeação. Há um dever de audição parlamentar, mas a decisão final é do Presidente da República.

Outra alteração diz respeito ao Orçamento Geral do Estado. No artigo 104.º propõe-se uma alteração “de modo a afastar uma ideia actual de que o orçamento das autarquias locais integra o OGE”. O OGE preverá as transferências a realizar para as autarquias, mas não as receitas e despesas das mesmas.

3-Análise e comentário das alterações propostas à Constituição económica e financeira

Verifica-se que os artigos a alterar são os 14.º, 37.º, 92.º, 100.º e 104.º

ARTIGO 14.º

  • Em relação ao artigo 14.º passará a incumbir ao Estado promover a iniciativa privada. Além do aspeto retórico de tal afirmação, em termos práticos, esta norma permite que o Estado auxilie o sector privado de forma consistente, por exemplo, ampliando as zonas francas e benefícios fiscais para os privados, subsidiando empresas privadas, criando parcerias com o sector privado. O Estado deverá adoptar uma atitude positiva e activa face ao sector privado e não meramente passiva. É um bom sinal para o mercado.

ARTIGO 37.º

  • O artigo 37.º tem um carácter diferente e constitui a única modificação constitucional diretamente relacionada com o combate à corrupção. Face a uma lacuna constitucional, ficarão agora estabelecidos os princípios gerais em que se podem efetuar nacionalizações e confiscos. Esta última parte é fundamental para concretizar a recuperação de ativos que está em curso em que se torna muito difícil perceber o enquadramento legal.

Agora fica claro que o Estado pode confiscar bens quando tenha havido uma ofensa grave às leis que protegem os seus interesses económicos. Em linguagem simples, fica agora bem esclarecido que aqueles que se tenham locupletado à custa dos fundos públicos podem ficar sem esses bens, não havendo necessidade de um processo criminal transitado em julgado, mas apenas a conclusão que realizaram uma ofensa grave às leis que garantem os interesses económicos do Estado. Esta norma é de aplaudir no presente contexto de combate à corrupção.

ARTIGO 92.º

  • Se a promoção da iniciativa privada e a agilização da recuperação de ativos obtidos nas atividades corruptas são medidas que merecem elogio, mais dúvidas levanta a norma do artigo 92.º referente à economia informal. Mais do que “o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia” (redação proposta do artigo 92.º, n.º3), que significa essencialmente pagamento de impostos e taxas, o que a Constituição deveria propugnar era a adoção de políticas de apoio ao sector informal da economia, que é um verdadeiro amortecedor da falta de  trabalho e  um incubador de potenciais pequenas e médias empresas de sucesso.[2]  

Já se salientou que na África Austral, o sector económico informal constitui um elemento crucial de sobrevivência, dado que 72% de todo o emprego não agrícola reside no sector informal e a maioria dos novos postos de trabalho aparecem aí. A economia informal fornece rendimento e emprego a todas as pessoas, independentemente da sua escolaridade ou experiência. Em Angola, a maioria das pessoas empregadas está igualmente envolvida na economia informal, pois de outro modo não seria capaz de suportar todas as suas despesas. Nessa medida, há que ser muito cauteloso em estabelecer regras sobre a economia informal pois esta auxilia o governo angolano.[3]

ARTIGO 100.º

  • Em termos de opinião pública o cerne da modificação constitucional em termos económico-financeiros estará no artigo 100.º referente ao BNA. Este artigo contém três grandes linhas:
  • O BNA é o “garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro”. Assim, são determinadas precisamente as funções do BNA ligadas à inflação e sistema financeiro;
  • O BNA torna-se uma autoridade administrativa independente e por isso “independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos”. É a famosa independência do banco central, que atualmente, é defendida pela maior parte da doutrina económica.
  • O Governador do BNA é nomeado pelo Presidente da República, ouvida a Assembleia Nacional. Note-se que a Assembleia Nacional não tem direito de veto, mas de audição.

A consagração da independência do banco central corresponde à moderna tendência dominante na doutrina económica. Os argumentos a favor da independência do banco central resumem-se facilmente. Considera-se que os governos tendem a tomar decisões erradas sobre a política monetária. Em particular, são influenciados por considerações políticas de curto prazo. Antes de uma eleição, a tentação é o governo cortar as taxas de juros, tornando os ciclos económicos de expansão e retração mais prováveis. Assim, se um governo tem um histórico de permitir a inflação, as expectativas de inflação começam a aumentar, tornando-a mais provável.

Um banco central independente pode ter mais credibilidade e inspirar mais confiança. Ter mais confiança no banco central ajuda a reduzir as expectativas inflacionárias. Consequentemente, torna-se mais fácil manter a inflação baixa. Há assim a tentativa de introduzir credibilidade adicional na política monetária e acentuar o combate à inflação. Note-se que a inflação é um mal que perdura na economia angolana há demasiado tempo.

Esta medida está correta e deve ser considerada positiva.

ARTIGO 104.º

  • A última alteração diz respeito à explicitação da diferenciação entre o Orçamento Geral do Estado e as Autarquias, fazendo parte da preparação material para instalação das autarquias.

Conclusão

Minimalista, a proposta revisão constitucional na área da economia e finanças visa reforçar os sinais da economia de mercado e estabilidade macroeconómica, sendo de destacar como elemento essencial desta lei a consagração da independência do banco central e o seu foco no combate à inflação.

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Anexo: Nova redação proposta das normas referentes ao sector económico e financeiro

“Artigo 14.º

(Propriedade privada e livre iniciativa)

O Estado respeita, e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e promove a livre iniciativa económica e empresarial, exercida nos termos da Constituição e da Lei”.

“Artigo 37.º

(Direito e limites da propriedade privada)

1. […].

2. […].

3. […].

4. Lei própria define as condições em que pode ocorrer a nacionalização de bens privados por ponderosas razões de interesse nacional e do confisco por ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado”.

“Artigo 92.º

(Sectores Económicos)

1. […].

2. O Estado reconhece e protege o direito de propriedade comunitária para o uso e fruição de meios de produção pelas comunidades rurais e tradicionais, nos termos da Constituição e da lei.

3. Lei própria estabelece os princípios e regras a que fica sujeito o sector não estruturado da economia, visando o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia”.

“Artigo 100.º

(Banco Nacional de Angola)

1. O Banco Nacional de Angola, como banco central e emissor da República de Angola, garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro, nos termos da Constituição e da lei.

2. Enquanto autoridade administrativa independente, o Banco Nacional de Angola é independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos a si acometidos, nos termos da Constituição e da lei.

3. O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional, competente em razão da matéria, nos termos da Constituição e da lei, observando-se, para o efeito, o seguinte procedimento:

a) a audição é desencadeada por solicitação do Presidente da República;

b) a audição à entidade proposta termina com a votação do relatório nos termos da lei;

c) Cabe ao Presidente da República a decisão final em relação à nomeação da entidade proposta.

4. O Governador do Banco Nacional de Angola envia ao Presidente da República e à Assembleia Nacional, um relatório sobre a evolução dos indicadores de política monetária, sem prejuízo das regras de sigilo bancário, cujo tratamento, para efeitos de controlo e fiscalização da Assembleia Nacional é assegurado nos termos da Constituição e da lei”.

“Artigo 104.º

(Orçamento Geral do Estado)

1. […].

2. O orçamento Geral do Estado é unitário, estima o nível de receitas a obter e fixa os limites de despesas autorizadas, em cada ano fiscal, para todos os serviços, institutos públicos, fundos autónomos e segurança social e deve ser elaborado de modo a que todas as despesas nele previstas estejam financiadas”.

3. O Orçamento Geral do Estado apresenta o relatório sobre a previsão de verbas a transferir para as autarquias locais, nos termos da lei.

4. A lei define as regras da elaboração, apresentação, adopção, execução, fiscalização e controlo do Orçamento Geral do Estado.

5. A execução do Orçamento Geral do Estado obedece aos princípios da transparência, responsabilização e da boa governação e é fiscalizada pela Assembleia Nacional e pelo Tribunal de Contas, nos termos e condições definidos por lei”.


[1] Todas as citações sem fonte específica mencionada são do Relatório de Fundamentação da Proposta de Lei de Revisão Constitucional 2021 tornada pública pelo Governo.

[2]  Alain de Janvry e Elisabeth Sadoulet, Development Economics, 2016, p. 19

[3]  Moiani Matondo, Em defesa das zungueiras e da economia informal, MakaAngola. https://www.makaangola.org/2020/04/em-defesa-das-zungueiras-e-da-economia-informal/