Câmbio flutuante é grande erro em Angola


O que é o Câmbio Flutuante? Uma taxa de câmbio flutuante significa que o nível de preços da moeda nacional é determinado pelo mecanismo de oferta e procura sem interferência do banco central, quer localmente, quer no ambiente externo.

Conhecidas moedas internacionais, como o dólar norte-americano nos Estados Unidos, o euro na União Europeia, são negociadas através de bolsas de divisas internacionais num sistema flutuante. Contudo, os seus governos tentam determinar frequentemente os preços das moedas, através de mecanismos indirectos de política monetária, para obter benefícios económicos. Por exemplo, os EUA apenas através de aumento dos juros podem diminuir os lucros dos países terceiros que usam dólares americanos.

O Banco Nacional de Angola introduziu o novo regime de sistema monetário em 2018. No dia 1 de janeiro de 2018, um dólar americano trocava-se por 165.92 kwanzas, após a introdução do câmbio flutuante, no dia 30 de dezembro, um dólar americano já valia 308 kwanzas. No último ano, o Dólar Americano alcançou um máximo de 954,50 Kwanzas Angolanos por Dólar Americano em 02 Outubro de 2024. A taxa mínima para o câmbio entre USD/AOA foi 827,48 Kwanzas Angolanos por Dólar Americano em 27 Outubro de 2023. A taxa de câmbio geral entre USD/AOA subiu 10 % no último ano.

Tal quer dizer que o Dólar Americano ganhou valor em relação ao Kwanza Angolano. A Moeda kwanza não conseguiu ter capacidade para confrontar as divisas estrangeiras, por isso está continuando a desvalorizar-se.

Outro exemplo, em 2021, o Ministro das Finanças sudanês, Gabriel Ibrahim, anunciou que a libra sudanesa teria câmbio flutuante, um dólar americano poderia ser trocado por 375 libras sudanesas, enquanto antes da decisão de implementar uma taxa de câmbio flutuante, um dólar americano podia ser trocado por 55 libras sudanesas. O preço aumentou 580% na troca de libras sudanesas.

A implementação de taxas de câmbio flutuantes nas economias em desenvolvimento pode trazer riscos de consequências imprevisíveis. A seguir vou explicar o risco do câmbio flutuante.

Que tipos de flutuações monetárias incluem?

Existem dois tipos de flutuação cambial. O primeiro que referimos na definição de flutuação cambial é a flutuação absoluta, e o segundo é a flutuação gerida, ou seja, o banco central intervém para orientar a subida da taxa de câmbio ou para atingir a economia nacional.

A flutuação controlada é geralmente implementada por países economicamente mais fortes, que representam uma fatia considerável do comércio internacional, pelo que tendem a adoptar este método para aumentar ou diminuir a importação ou exportação de bens.

A fim de maximizar as exportações e reduzir as importações, a economia global tem vivido as chamadas guerras cambiais após a crise financeira internacional de 2008.

Os países com economias fracas também podem adoptar sistemas de taxas de câmbio flutuantes, mas isso custar-lhes-á enormemente. É exatamente o caso do Egipto, que depende do investimento estrangeiro para suportar a sua dívida, de forma a estabilizar a taxa de câmbio da libra egípcia.

Como definir taxas de câmbio?

Desde 1971, o mundo abandonou o padrão-ouro para definir as taxas de câmbio e estabeleceu um cabaz de moedas para determinar as taxas de câmbio. Os determinantes incluem as reservas cambiais, as reservas de ouro e o desempenho do produto interno bruto, a existência de produtos locais de maior valor acrescentado, aumentando assim enormemente o valor da sua moeda. Isto deve-se ao facto de a procura externa pelos produtos do país aumentar as reservas cambiais do país, o seu equilíbrio com o exterior.

Existem vários tipos de taxas de câmbio. A primeira é a taxa de câmbio administrativa, que não depende do mecanismo de oferta e procura, mas depende da decisão da autoridade monetária de fixar a taxa de câmbio. O segundo tipo é a taxa de câmbio livre.

A terceira é a taxa de câmbio gerida, ou seja, a autoridade monetária intervém através do mecanismo de mercado aberto para definir a taxa de câmbio. Isto significa que a autoridade monetária intervém na compra e venda de moeda para alcançar um preço que acredita ser equilibrado.

O que inclui os seus efeitos negativos?

A decisão de fazer flutuar uma moeda durante um período de turbulência económica tem normalmente uma série de consequências negativas para a economia e para a sociedade, a mais comum das quais é a inflação elevada. Os mercados externos também serão afetados porque a dívida externa que o país necessita de pagar aumenta, especialmente quando têm escassez de recursos em divisas.

Taxas de câmbio flutuantes ajudam a travar crimes de branqueamento de capitaisQuem beneficia?

Os maiores beneficiários numa taxa de câmbio flutuante são aqueles que tinham poupanças em moeda estrangeira.

A segunda é para os devedores, especialmente aqueles que devem a bancos e instituições financeiras oficiais, pois poderão pagar as suas dívidas por um valor inferior ao valor real das dívidas que receberam e poderão pagar grandes dívidas vendendo alguns dos seus ativos.

O terceiro são os grandes comerciantes, os chamados grossistas, agentes ou grandes importadores.

O quarto são os produtores de matérias-primas para exportação, cuja produção depende da oferta local, mas apenas se tiverem elevada flexibilidade de produção para satisfazer a procura de produtos locais após a flutuação da taxa de câmbio. Depois de implementarem um float, podem aproveitar a desvalorização da moeda para obter maiores quantidades de produtos locais de que necessitam na produção de bens para exportação.

O quinto maior beneficiário é o governo, que reduz a carga sobre o orçamento geral do país ao desvalorizar significativamente a sua dívida interna.

Quem vai sofrer?

Nos países que adotam políticas de taxas de câmbio flutuantes, algumas pessoas também sofrerão perdas, lideradas por aqueles que detêm poupanças em moeda local – as suas poupanças irão desvalorizar devido à redução do poder de compra da moeda. Após a implementação do câmbio flutuante, este grupo de pessoas perde grande parte da sua riqueza.

O segundo são os credores denominados em moeda local, porque o valor da dívida que prestam é inferior ao valor original após a implementação da flutuação, pelo que os ganhos que recebem não podem compensar esta perda. Nestes casos, a dívida de longo prazo é considerada uma perda significativa para os credores.

O terceiro são os detentores de mercadorias que não podem aumentar o seu preço de acordo com a extensão da depreciação da moeda, como aqueles que têm bens imobiliários como ativo. É difícil que essas mercadorias aumentem os seus preços em 100% em poucos dias, o mercado enfrentaria uma recessão severa.

O quarto são os importadores, que se verão confrontados com faturas elevadas pelos bens que importam, enquanto os produtores que dependem de fornecimentos de produção importados também serão prejudicados porque são forçados a aumentar o preço dos seus produtos.

O preço da moeda estrangeira está a aumentar a um ritmo tal que os seus produtos não são competitivos no mercado local ou no mercado internacional, portanto, com a implementação da flutuação da moeda, a actividade industrial diminuirá, enquanto as actividades comerciais e de serviços aumentarão.

O quinto maior grupo a sofrer perdas são os empregados com rendimentos fixos, porque os seus salários não podem ser aumentados na mesma medida que a depreciação da moeda, os seus salários em 50% ou 100%. Então, o que devemos fazer se ocorrer uma situação como a do Sudão, em que uma taxa de câmbio flutuante provoca uma depreciação da moeda em mais de 580%?

Quais as vantagens das taxas de câmbio flutuantes?

A implementação de taxas de câmbio flutuantes nas economias em desenvolvimento pode trazer riscos de consequências imprevisíveis, especialmente em países com instituições políticas fracas, falta de transparência e Estado de direito frágil.

No entanto, no quadro da perspectiva económica, uma série de efeitos positivos podem ser obtidos através da implementação do processo de taxas de câmbio flutuantes, o mais importante dos quais é a eliminação do mercado negro, uma vez que os comerciantes receberão uma taxa única de moeda estrangeira dentro de bancos e todas as outras instituições.

Em teoria, as taxas de câmbio flutuantes podem ajudar a suprimir os crimes de branqueamento de capitais, porque os crimes de branqueamento de capitais constituem uma forma importante de cometer crimes no mercado paralelo ou no mercado negro de taxas de câmbio. No caso das taxas de câmbio flutuantes, as transações cambiais só podem ser realizadas através de canais oficiais, canais que os gangues de branqueamento de capitais não podem utilizar.

Mas na realidade, o câmbio flutuante não conseguiu evitar branqueamento de capital, por isso no dia 25 de outubro de 2024, o Grupo de Acção Financeira Internacional anunciou ter colocado Angola na lista cinzenta da instituição por motivo de lavagem de capitais, financiamento ao terrorismo e proliferação de armas.

Ao mesmo tempo, o câmbio flutuante em Angola também causou grave iliquidez cambial, os empresarios nacionais e estrangeiros não podem mandar divisas para fora comprar as mercadorias, e para manter os negócios têm de usar o mercado informal.

Quando não mandam o dinheiro para fora para comprar as mercadorias novas, os preços no consumidor interno sobem fortemente. Atualmente esta situação já perdura há muito tempo em Angola. O motivo principal é que o Kwanza é uma moeda fraca frente às moedas ocidentais, por isso desde que em 2018 introduziu o câmbio flutuante até agora o kwanza está desvalorizando e nunca para. Cancelar este sistema de câmbio flutuante é uma prioridade.

O problema da recuperação dos ativos de Isabel dos Santos em Portugal

No recente discurso perante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, o Presidente da República de Angola, João Lourenço, foi incisivo a propósito da recuperação de ativos angolanos no estrangeiro.

“No que diz respeito à recuperação de activos, tivemos dois casos de sucesso, em que contámos com a atitude bastante responsável e de respeito à nossa soberania por parte das Autoridades do Reino Unido (…) Lamentavelmente nem todos os países que aceitaram receber esses activos da corrupção sem questionar na altura as origens dos mesmos, respeitam hoje as sentenças dos nossos tribunais que são de cumprimento obrigatório. Alguns desses países se arrogam mesmo ao direito de questionar a credibilidade dos nossos tribunais, quase que querendo rever as sentenças emitidas pelos mesmos, como se de órgãos de apelação extra-territoriais se tratassem.[1]

É óbvio que esta questão se coloca, e se coloca no caso dos ativos de Isabel dos Santos em Portugal, não pela existência de decisões de tribunais portugueses que coloquem em causa os tribunais angolanos -o que não aconteceu até ao momento- mas pelo funcionamento ou não funcionamento de várias regras processuais penais. Convém analisar com o detalhe possível o que se tem passado com os ativos principais de Isabel dos Santos em Portugal, para se tentar chegar a algumas conclusões.

A VENDA DO EUROBIC

Recentemente, um facto chamou a atenção da opinião pública.  A venda da participação de Isabel dos Santos no banco português EuroBic à ABANCA, banco espanhol.

Na venda da participação de Isabel dos Santos ao banco espanhol foram identificadas algumas entidades como tendo Isabel dos Santos como beneficiária última, tratava-se da Santoro Financial Holding, SGPS, S.A. com 25% do capital social do banco e da Finisantoro Holding Limited com 17,5% do capital do banco, totalizando 42,5%[2]. Estas participações estavam sujeitas a um arresto preventivo decretado em vários processos criminais portugueses, designadamente os nº 210/20.4TELSB, nº 26310/21.5T8LSB e nº 10314/22.3T8LSB.

Aparentemente, segundo a informação pública disponível, o montante recebido por Isabel dos Santos pela venda à ABANCA, cerca de 127,5 milhões de euros, terá ficado arrestado nos termos anteriores de participação,[3]embora os termos exatos não sejam totalmente claros.

Em relação a este ativo e à sua eventual recuperação colocam-se duas questões. A primeira é a natureza do arresto preventivo realizado à ordem de processos criminais.

O arresto preventivo é uma medida de processo penal, prevista no artigo 228.º do Código de Processo Penal português que procura garantir pagamentos em que o arguido advenha no futuro quer sejam referentes a qualquer pena pecuniária, custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, quer relativos à perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente.

Assim, é uma medida provisória que pode ser revogada por um juiz ou declarada extinta. Não entrando em demasiadas considerações legais, o certo é que este arresto não garante factualmente que, no final, o Estado angolano receba qualquer destes montantes, quer por os processos criminais em Portugal não se concluírem, prescreverem ou mesmo por Isabel dos Santos ser absolvida.

Como a situação se apresenta neste momento, o montante só será retirado definitivamente de esfera de Isabel dos Santos em caso de condenação com trânsito em julgado dos processos referidos, o que provavelmente demorará dez anos ou mais.

Outras situações como a prescrição, absolvição ou arquivamento, implicam a entrega dos montantes a Isabel dos Santos.

Além do mais, mesmo em caso de condenação, a verdade é que estes processos correm em Portugal, e os custos a eles associados serão primeiro ressarcidos pelo Estado português.

Efetivamente, há uma fragilidade legal nas medidas tomadas pelas autoridades de ambos os países em relação a Isabel dos Santos, que poderá ter como consequência que com o decorrer do tempo não existam benefícios de toda esta atuação judicial, pelo menos, para Angola.

Outro aspeto, ainda ligado a esta venda, é que ela não se reduziu a Isabel dos Santos, mas sim a 100% do capital do banco.[4] Quer isto dizer que os outros acionistas também venderam as suas posições e receberam os seus montantes. A sua lista é pública, como é público que não são alvo de qualquer processo criminal no âmbito do Luanda Leaks ou aparentados.[5] Não recai qualquer suspeita sobre estes outros acionistas.

O ponto relevante é que são antigos associados de Isabel dos Santos, que com ela fundaram o BIC em 2005 em Angola e, que depois avançaram com ela para o então Banco Português de Negócios (BPN) que compraram e rebatizaram como EuroBic. Por exemplo, a propósito, o Luanda Leaks escrevia: “The bank’s[Eurobic] then-chairman, Fernando Teles, was a dos Santos business partner.[6]

A questão que fica em aberto, face à informação publicada, é a do relacionamento financeiro entre esses acionistas e Isabel dos Santos, uma vez que são considerados “Business partners” e sobretudo se as autoridades judiciárias se debruçaram sobre o tema. Não havendo resposta pública, presume-se que não exista qualquer relação, mas teria sido bom que essa vertente tivesse sido clarificada.

A conclusão essencial a que se chega é que a recuperação dos ativos de Isabel dos Santos em relação ao Eurobic pode acontecer a longo prazo, mas é muito frágil.

EFACEC

Outro ativo conhecido era o da EFACEC. A história é conhecida e atualmente contestada por órgãos fiscalizadores do Estado português.[7]Não seguimos a posição do Tribunal de Contas português a este propósito. Na realidade, na altura a nacionalização da companhia era a melhor forma de salvaguardar a permanência da empresa e os postos de trabalho. É preciso não esquecer o impacto mediático do Luanda Leaks e de toda a investigação à volta de Isabel dos Santos que funcionou como um vórtice que tudo fazia desaparecer. As questões que o Tribunal de Contas coloca poderão ter sentido a jusante da decisão, em problemas de gestão pública, em desatenção posterior, mas no momento, foi a melhor decisão possível.

O certo é que a EFACEC foi nacionalizada pelo Decreto-Lei n.º 33-A/2020, de 2 de julho. De acordo com este normativo apenas haverá direito à indemnização de acordo com o valor dos respetivos direitos, avaliados à luz da situação patrimonial e financeira da pessoa coletiva à data da entrada em vigor do ato de nacionalização, sendo que no cálculo da indemnização a atribuir aos titulares das participações sociais nacionalizadas, o valor dos respetivos direitos é apurado tendo em conta o efetivo património líquido (art.ºs 4.º e 5.º da Lei n.º 62-A/2008, de 11 de novembro). Ora atendendo ao que o Tribunal de Contas diz no seu relatório agora apresentado, segundo o qual foi necessário um “financiamento público de 484 milhões de euros, havendo o risco de subir até aos 564 milhões de euros[8]”, facilmente se conclui que o valor à data da nacionalização era negativo, não havendo nada a indemnizar aos proprietários da empresa (Isabel dos Santos) ou a quem esta deva por força de qualquer processo criminal (Estado angolano).

A situação da EFACEC é linear. Nada será devolvido ao Estado angolano, porque a empresa estava em situação líquida negativa quando foi nacionalizada.

A NOS

Finalmente, com relevo na ordem jurídica portuguesa temos a participação de Isabel dos Santos na NOS. A informação oficial da empresa dá conta que em março de 2024, a posição de Isabel dos Santos correspondia a 26,7% através da ​ZOPT, SGPS, S.A. por  conseguinte,  às  sociedades  Kento Holding Limited e Unitel International Holdings, BV, bem como a Isabel  dos  Santos,  sendo  (i)  a  Kento  Holding  Limited  e  a  Unitel  International Holdings, BV, sociedades direta e indiretamente controladas por Isabel dos Santos, e (ii) a ZOPT, uma sociedade controlada pelas suas acionistas Kento Holding Limited e Unitel International Holdings, BV[9].

A situação da posição de Isabel dos Santos nesta empresa merece alguma atenção, porque sofreu uma evolução assinalável, que, provavelmente, terá passado despercebida a muitos.

Numa primeira fase, em “4 de abril de 2020, a SONAECOM, SGPS, S.A. (“Sonaecom”)  detentora de 50% do capital da ZOPT, SGPS, S.A. (doravante “ZOPT”), foi informada por esta sua participada da comunicação recebida do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa (doravante Tribunal) de proceder ao arresto preventivo de 26,075% do capital social da NOS, SGPS, SA, correspondente a metade da participação social na NOS detida pela ZOPT e, indiretamente, pelas empresas Unitel International Holdings, BV e Kento Holding Limited”, controladas pela Eng.ª Isabel dos Santos.[10]

Depois.

“Em setembro de 2022, a Sonaecom informou que em reunião da Assembleia Geral da ZOPT se deliberou proceder à amortização da participação da Sonaecom naquela sociedade e à restituição das prestações acessórias efetuadas pela Sonaecom, por uma contrapartida que inclui a entrega das ações representativas de 26,075% do capital da NOS. Em decorrência da referida amortização, que ficou dependente dos trâmites legais aplicáveis, a Sonaecom deixa de ser acionista da ZOPT, que passa a ser integralmente detida pela Unitel International Holdings, BV e pela Kento Holding Limited, sociedades controladas pela Eng.ª Isabel do Santos.

Já em dezembro de 2022, a Sonaecom, no culminar do cumprimento dos trâmites legais, informou que passou a deter diretamente 134.322.268 ações ordinárias da NOS, correspondentes a 26,07% do capital social.”

O resultado desta evolução é que a participação de Isabel dos Santos deixou de estar integrada num bloco que controlava o capital e a gestão da NOS e a SONAE passou a deter sozinha o controlo efetivo da empresa (37,37%​), uma vez que 31,56% do capital está distribuído por outros que não chegam individualmente aos 5%. Houve uma evolução qualitativa de posição de Isabel dos Santos, possivelmente, para pior.

Portanto, a posição de Isabel dos Santos deixou de ser estratégica e de controlo, passando a ser uma posição financeira (possivelmente) “adormecida”, enquanto a posição SONAE saiu reforçada.

Sem dúvida que o grupo português SONAE agiu de forma inteligente numa situação complicada, enquanto, a posição de Isabel se degradou em termos de real valorização.

De notar, que no mesmo relatório que se vem citando (1S2024), o Conselho de Administração nota que “não tem conhecimento de eventuais desenvolvimentos no processo de arresto preventivo acima referido.” Portanto, parece que o arresto se mantém, mas nos mesmos termos que o arresto do Eurobic, querendo isto significar que as mesmas considerações se aplicam.

CONCLUSÃO

A conclusão a que poderemos chegar é que para o Estado angolano, a probabilidade de obter a recuperação de ativos de Isabel dos Santos em Portugal é longínqua em termos de prazo, e depende de várias vicissitudes jurídicas que se podem ou não verificar, havendo, por isso, justificado receio que as palavras do Presidente da República João Lourenço na ONU se concretizem.

Na verdade, só o acionamento do chamado “confisco sem condenação judicial” previsto nos artigos 109.º e 110.º do Código Penal português poderá inverter a situação e levar a um imediato confisco desses ativos.


[1] http://www.embaixadadeangola.pt/discurso-presidente-joa%CC%83o-lourenc%CC%A7o-na-79a-sessa%CC%83o-da-assembleia-geral-da-onu/

[2] https://www.eurobicabanca.pt/eurobicabanca/informacao-financeira

[3] https://expresso.pt/economia/sistema-financeiro/2024-07-29-verbas-pagas-pelo-abanca-a-isabel-dos-santos-para-comprar-o-eurobic-estao-congeladas-7b33fe1d

[4] https://www.eurobicabanca.pt/eurobicabanca/noticias/ABANCA-conclui-compra-do-EuroBic

[5] https://www.icij.org/investigations/luanda-leaks/

[6] https://www.icij.org/investigations/luanda-leaks/how-africas-richest-woman-exploited-family-ties-shell-companies-and-inside-deals-to-build-an-empire/

[7] https://www.tcontas.pt/pt-pt/MenuSecundario/Noticias/Pages/n20240930-2.aspx

[8] https://www.tcontas.pt/pt-pt/MenuSecundario/Noticias/Pages/n20240930-2.aspx

[9] https://www.nos.pt/pt/institucional/investidores/nos-em-bolsa/estrutura-acionista

[10] Ver p.96 do Relatório e Contas da NOS do 1.º Semestre de 2024.

CEDESA lança portal sobre Obras Públicas e Investimentos em Angola

O CEDESA – Centro de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social de África apresentou, na quinta-feira, 18 de abril, a sua página na internet sobre as Obras Públicas e Investimentos em Angola – https://obraspublicasinvestimentosangola.org/, com o duplo objetivo de fornecer informações independentes a académicos, jornalistas e interessados em geral sobre o que se passa em Angola neste domínio e de servir de documento público de informação à sociedade civil angolana sobre a evolução das grandes obras no país, por via da criação de um mecanismo de abertura participativa.

A apresentação do projeto contou com a presença de membros das Embaixadas de Angola e da China em Portugal bem como do Consulado Geral de Angola em Lisboa, para além de diversos empresários, académicos e jornalistas.

O CEDESA é uma pessoa coletiva de direito privado de natureza associativa, sem fins lucrativos, dedicada ao estudo e investigação de temas políticos e económicos da África Austral e, em especial, de Angola. Nasceu de uma iniciativa de vários académicos e peritos da Angola Research Network (ARN – https://www.angolaresearchnetwork.org/), com o principal objetivo de fornecer análises rigorosas sobre as perspetivas económicas de Angola e países vizinhos a decisores políticos, à comunidade de negócios, a académicos, a estudantes e demais interessados.

Fonte: CEDESA (www.cedesa.pt)

Em busca de um novo paradigma para as relações Angola-China

Ultrapassar a questão da dívida

Aparentemente, está para breve a visita de João Lourenço à China e Beijing já tem, novamente, embaixador em Luanda. Portanto, há movimentos dinâmicos acentuados na relação Angola-China.

Não é a primeira visita do Presidente angolano a Beijing, todavia, é a primeira após a aproximação pública e efetiva aos Estados Unidos, e no momento em que a questão da dívida à China se tornou o aspeto principal das relações entre os dois países.

Sobre a dívida, há um facto indesmentível. Angola procedeu a uma redução substancial do capital em débito desde 2017. Na realidade, nesse ano o montante de capital devido era de 23 204,9 mil milhões de dólares enquanto no final de 2023 apenas se situava nos 17 921,0 mil milhões de dólares americanos, tendo havido assim uma redução exata de 5 283,9 mil milhões de dólares segundo os dados oficiais do Banco Nacional de Angola (BNA), só em capital, não contabilizando juros.[1] Isto significa que mesmo durante anos de crise-não esquecer que a economia angolana se contraiu entre 2016 e 2020[2]– o estado angolano teve capacidade e quis pagar a sua dívida à China.

Portanto, a questão não se coloca ao nível da capacidade, mas do sacrifício, ou melhor dizendo, do custo de oportunidade. O capital retirado do Orçamento Geral do Estado para pagar à China é capital que não é utilizado noutros sectores, como por exemplo, na área do desenvolvimento humano, educação, saúde, saneamento, etc. Além disso, obviamente, a instabilidade orçamental derivada da oscilação dos preços do petróleo coloca sempre uma grande pressão na liquidez do tesouro para cumprir os pagamentos.

É por essa razão, e após o grande esforço angolano de mais de 5 mil milhões de dólares, efetuado durante a presidência de João Lourenço, que este deveria ser o tempo de descompressão no pagamento da dívida à China.

A este acresce outro facto, já suficientemente tratado[3], que é o da chamada “dívida odiosa”. Parece hoje demonstrado que uma boa parte da dívida contraída à China por Angola, terminou de forma ilegal na posse de entidades privadas angolanas que não usaram os fundos para o bem comum, mas para lucro próprio indevido. Notícias recentes dão conta que a estruturação de todo o mecanismo de desvio de fundos teve a participação de entidades chinesas mandatadas pelo Comité Central do Partido Comunista Chinês[4]. A confirmar-se, e não está devidamente certificado, tal ação coloca os montantes de “dívida odiosa” numa categoria à parte, que deverá ser objeto de negociação separada pelas diplomacias dos dois países, para não dar origem a nenhum processo em tribunal arbitral, como está previsto nos acordos bilaterais de financiamento.

Enquadrada a questão da dívida, torna-se evidente que este é o tempo de ir para além da dívida e criar um novo paradigma para as relações entre Angola e China

O novo paradigma entre Angola e China: esvaziar o maniqueísmo China-EUA

Poder-se-ia pensar que a aproximação de João Lourenço a Joe Biden, promovendo um efetivo estreitamento das relações de Angola com os Estados Unidos, levaria a um necessário agastamento e afastamento da China.

Não se partilha dessa opinião. Pelo contrário, entende-se que a visão maniqueísta que suporta essa visão não se sustenta em factos.

Em primeiro lugar, na esfera económica, apesar da retórica americana que começou com a administração Trump e continuou com Biden, o certo é que as relações entre ambos os países- EUA e China- se mantêm intensamente. As companhias americanas -e Ocidentais em geral- continuam muito dependentes dos mercados e das cadeias de produção chinesas. A retórica mais agressiva apenas beneficiou alguns países intermediários que recebem investimento chinês e depois exportam os produtos resultantes desse investimento para os EUA com um “selo não chinês”, sendo que no final os laços se mantêm fortes. Neste sentido, por exemplo, Elon Musk da Tesla está a convidar fornecedores chineses de peças dos seus automóveis para replicarem as suas cadeias de produção da China para o México[5]. Recentemente, o CEO da Apple – Tim Cook – encontrou-se com governantes da China e reafirmou o seu compromisso com o mercado da China, e desejo de estreitamento de laços com o Governo de Beijing[6]. Um outro exemplo atual é a ExxonMobil, o gigante americano do sector da energia que planeia investir num complexo petroquímico de vários milhares de milhões de dólares na província de Guangdong[7]. Com efeito, se tudo correr dentro do previsto, o projeto que tem um investimento total de 10 mil milhões de dólares, e estará com a primeira fase concluída ainda antes do final do ano. Já para não falar da Starbucks, a multinacional norte americana, que hoje em dia está com mais de 6.800 lojas só na China, e que em 2023 investiu mais de 200 milhões de dólares num novo campus na China, sinal de como o consumidor chinês continua a ser crucial para a cadeia global de café, apesar de estar a haver um certo abrandamento económico[8].

A isto acresce que o sucesso do Corredor do Lobito em que quer Angola, quer os Estados Unidos apostam, necessita forçosamente do concurso chinês-que domina o essencial da matéria-prima- para ter sucesso.

Estes factos reais da infraestrutura económica, apontam para uma necessária triangulação entre países intermediários, China e Estados Unidos, que se traduz numa função ideal para Angola, que se posiciona acertadamente como “ponte” entre Ásia e Ocidente. Portanto, poder-se-á ter um benefício desta aproximação recíproca e não uma desvantagem, sabendo Angola aproveitar o seu papel de charneira de modo hábil e inteligente.

O novo paradigma entre Angola e China: trocar os empréstimos por investimento produtivo

O facto essencial é a necessidade de mudança de paradigma. Angola não pode sustentar o seu tesouro e desenvolvimento em empréstimos que forçosamente têm de ser pagos. Isto não quer dizer que não os use e recorra quando precise, mas a estratégia tem de ser outra, e outra quer dizer, investimento. O que se deve querer da China é investimento e não mais empréstimos.

Olhemos para a política da China em Portugal. Aí essencialmente, a China realiza investimentos, compra ações de empresas, torna-se sócia de outras. Leva capital para Lisboa para aplicar no processo produtivo, não para obter juros. Os principais investimentos chineses em Portugal concentram-se em setores como banca, energia e seguros. Atente-se para o caso da EDP. O investimento chinês na EDP – Energias de Portugal, S.A. é significativo. A China Three Gorges (CTG) é a maior acionista da EDP desde 2011. No ano passado, as acções detidas pela CGT estavam avaliadas em 4.634 milhões de euros[9]. No sector da saúde, destaca-se o grupo privado chinês Fosun, que é o maior acionista do Grupo Luz Saúde.  Este grupo que é uma das principais referências da saúde em Portugal, é controlado pelos chineses da Fosun e pela seguradora Fidelidade (que, por sua vez, também tem como acionista os chineses da Fosun)[10]. Atualmente, este grupo gere 30 hospitais, clínicas e unidades de saúde. Em 2022, os seus resultados operacionais atingiram os 600 milhões de euros, mais 11 % face ao ano anterior[11].

Em 2023, Portugal captou mais investimento estrangeiro industrial e o maior veio da China.[12] Trata-se “da fábrica de baterias para carros eléctricos da chinesa CALB, que já arrancou com o processo de licenciamento ambiental de uma nova unidade em Sines, um projecto de 2060 milhões de euros, para o qual foram reservados 90 hectares de terreno e prometidos 1800 postos de trabalho[13]”.
É este género de relação que Angola deve começar a ter com a China. Não uma relação de dependência de empréstimos, mas de investimentos diretos chineses na economia angolana.

Existem várias áreas para o investimento chinês em Angola, mas destacar-se-ia as possibilidades de fábricas de automóveis, sabendo-se o grande incremento que esta indústria está a ter na China e a tornar-se a maior do mundo. Igualmente, importante, o sector das telecomunicações e energia elétrica que tanta falta faz em Angola. Outro setor de aposta poderia ser o têxtil, depois do falhanço da Etiópia, encurtando as linhas logísticas de fornecimento para os EUA e Europa em relação ao Vietnam.

E outras hipóteses deveriam ser estudas, mas ficam estas sugestões para investimento chinês em Angola: criar um cluster de indústria automóvel, telecomunicações e energia elétrica, têxteis.


[1] DÍVIDA EXTERNA PÚBLICA POR PAÍSES (STOCK): 2009 – 2023, https://www.bna.ao/#/pt/estatisticas/estatisticas-externas/dados-anuais                  

[2] https://pt.countryeconomy.com/governo/pib/angola

[3] Cfr. Rui Verde, 2023, O tratamento jurídico a conferir à dívida pública angolana à China que resulta de apropriação privada, Comunicação ao III Congresso Internacional de Angolanística
Biblioteca Nacional /Lisboa

[4] https://www.rfa.org/english/news/china/sam-pa-ccp-02062024151947.html

[5] https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/02/16/elon-musk-atrai-fornecedores-chineses-para-se-instalarem-bem-ao-lado-dos-eua.ghtml

[6] https://www.adrenaline.com.br/hardware/ceo-da-apple-reafirma-seu-compromisso-com-a-china/

[7] https://www.globaltimes.cn/page/202402/1307530.shtml

[8] https://edition.cnn.com/2023/09/19/business-food/starbucks-china-coffee-center-intl-hnk/index.html

[9] Idem.

[10] https://observador.pt/2020/10/21/luz-saude-dos-chineses-da-fosun-foi-quem-fez-mais-negocios-com-o-estado-na-pandemia/

[11] https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/luz-saude-tem-dimensao-para-entrar-no-psi-diz-lider-da-bolsa-nacional/

[12] https://www.publico.pt/2024/03/03/economia/noticia/portugal-captou-investimento-estrangeiro-industrial-maior-veio-china-2082344

[13] Idem.

A necessidade de um mecanismo conjunto da União Africana para a dívida africana à China

O enquadramento e problemas da dívida à China em África

África é um continente que é mencionado múltiplas vezes por causa das suas vastas riquezas naturais. Desafortunadamente, isso não se reflete na riqueza das populações africanas, que consequentemente sofrem variadas privações.

Neste contexto, a questão da dívida dos países africanos à China vai ganhando contornos algo preocupantes. Os empréstimos contraídos pelos países da África Subsariana à China conheceram um grande impulso, principalmente a partir do momento que foi estabelecida a Road and Belt Initiative (RBI), em 2013. Esta ambiciosa iniciativa chinesa, que teve como fundamental motivador, o Presidente Xi Jinping, apresentava como grande objetivo aumentar a influência económica e geopolítica do país. E se os empréstimos conheceram um grande crescimento em 2013 com 17.5 biliões de dólares, tendo mesmo atingido o auge em 2016 com 28.4 biliões de dólares, nos anos seguintes a queda nos valores dos empréstimos foi incessante, atingido os 1.2 biliões em 2021, e no ano seguinte totalizando apenas 994 milhões de dólares (um total de 9 empréstimos), destacando-se como o nível mais baixo de empréstimos chineses desde 2004.[1]

Fig.1 – Evolução anual dos Empréstimos Chineses para África (biliões dólares)

Fonte: Chinese Loans to Africa Database, Boston University

A canalização deste dinheiro chinês para o desenvolvimento de África, designadamente no financiamento de vários projetos de infraestruturas e outros empreendimentos, tem estimulado algum crescimento económico africano. Contudo, têm existido várias “nuvens cinzentas”, muitas delas bem visíveis na economia angolana, mas que também se destacam noutros países. Isso traduz-se num mal-estar muitas vezes indisfarçável nas relações sino-africanas. Alguns países, inclusive, tornaram-se eventualmente reféns da chamada “diplomacia da armadilha da dívida”. A China, ao desencadear a RBI, provocou a ideia de facilitismo de empréstimo a outros estados de economias em desenvolvimento, e de facto, isso acabou por tornar o país asiático no maior credor internacional. No entanto, inúmeras vezes esses empréstimos careceram de transparência: os casos de corrupção foram-se multiplicando, muitas vezes porque os financiamentos não passavam por processos de concurso público. O problema da denominada ‘dívida oculta’ surgiu quando “a China deixou de emprestar aos governos centrais e a empresas estatais ou apoiadas pelo Estado. Estas dívidas não aparecem nos balanços financeiros do governo, embora frequentemente os governos sejam responsáveis por elas caso o devedor oficial não seja capaz de pagar”.[2]

Podia-se pensar que esta situação poderia a prazo trazer benefícios para os chineses, uma vez que têm vários países “presos” a dívidas monstruosas. Contudo, não é bem assim, pois ao mesmo tempo, a China está a enfrentar problemas económicos domésticos muito graves, que enquanto não forem solucionados, será difícil conseguir promover ao mesmo tempo uma redução da dívida estrangeira.[3]

Com efeito, a lenta recuperação após a pandemia, o problema do desemprego jovem, e a falência do sector imobiliário, têm abanado o que parecia ser um crescimento inabalável da China. Assim, é como Christoph Nedopil, fundador e diretor do think tank chinês Green Finance and Development Center (GFDC), argumenta: “será um desafio interno para a China promover simultaneamente a redução das dívidas no exterior enquanto os problemas económicos domésticos não forem totalmente resolvidos”.[4]

Em Dezembro de 2022, a Chatham House publicou um relatório que analisava o desenvolvimento do modelo dos empréstimos chineses aos estados africanos (2000-2020), que numa fase inicial se fundamentavam em fornecimento de recursos, para evoluírem depois para escolhas mais estratégicas, ou orientadas para o negócio.

Fig 2: Os 10 principais beneficiários de empréstimos chineses em África, 2000-20

Fonte: Chatham House: https://www.chathamhouse.org/2022/12/response-debt-distress-africa-and-role-china/02-case-studies-chinese-lending-africa

Note-se, no entanto, que a partir de 2021 a orientação do país asiático alterou-se, por motivos já anteriormente mencionados, e também porque vários estados não estavam a cumprir com os pagamentos. A liderança chinesa, mudou de rumo e passou a deixar de investir em grandes projetos, como caminhos-de-ferro e autoestradas, para se concentrar em empréstimos mais pequenos, com um impacto social e ambiental mais benéfico. A agenda climática foi mais um fator a entrar na equação.[5]

Além disso, o dinheiro começou a mudar de direção; anteriormente a maioria dos empréstimos iam para os países da África Oriental e Austral. A partir de 2021-22 houve uma mudança para a África Ocidental, com países como o Senegal, Benim e a Costa do Marfim a receberem a maioria das verbas.[6]

Muitos dos estados africanos, e não só, entraram em incumprimento da dívida, por isso era imperativo que fossem trilhados caminhos para que se arranjassem soluções para resolver a já chamada ‘dívida odiosa’ da China.

Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), os países pobres mais endividados do mundo têm todos contraído grandes empréstimos junto da China. Esta situação, como já referimos, pode constituir a “diplomacia da armadilha da dívida”, em que a China concede deliberadamente empréstimos a países que sabe não poderem pagar, na esperança de ganhar influência política.[7]

O que tivemos no ano passado foi um crescimento das exportações chinesas para África, que atingiu os 173 biliões de dólares, um aumento de 7,5 % em relação a 2022, enquanto as suas importações do continente caíram 6,7 %, para 109 biliões de dólares (dados fornecidos pela Administração Geral das Alfândegas chinesa).

Embora o aumento anual de 100 milhões de dólares tenha feito do comércio bilateral de 2023 um recorde, o défice comercial de África com a China continuou a aumentar, passando de 46,9 biliões de dólares em 2022 para 64 biliões de dólares no ano passado.[8]

Em 2022, 60% das nações devedoras da China estavam em dificuldades financeiras, contra 5% em 2010.[9]

Como é que algumas destas nações africanas têm enfrentado este problema da dívida, e de que forma a China tem modificado o seu comportamento ao longo do tempo?

Analisemos alguns casos:

Zâmbia:

O Império do Meio tem sido duro nas negociações para a reestruturação da dívida, e a conjuntura, apesar de todas as condicionantes, só não é pior, porque ganham relevância outros atores, que não apenas os estados, tais como instituições económicas, como o FMI, ou o Banco Mundial, ou organizações que promovem a negociação internacional e o diálogo, como por exemplo, o G20.

No caso da Zâmbia, que é o maior produtor de cobre do continente, foi a primeira nação soberana de África no período da pandemia a entrar em incumprimento quando não conseguiu efetuar um pagamento de obrigações de 42,5 milhões de dólares. A dívida acabou por impedir o país de se desenvolver economicamente e de assumir novos projetos. Desse modo, em Junho de 2023, a Zâmbia e os seus credores nos quais se incluía a China, acabaram por chegar a um acordo no âmbito do Quadro Comum do G20, para reestruturar 6,3 biliões de dólares em empréstimos.[10] Este alívio limitou-se a prorrogações de prazos e a um período de carência no pagamento de juros, mas para se chegar a um consenso não houve cortes na dívida,

Todavia, em Novembro, já havia desentendimentos, uma vez que o governo zambiano anunciou que um acordo revisto para retrabalhar 3 biliões de dólares em euro-obrigações não poderia ser implementado devido a objeções dos credores oficiais, incluindo a China.

Estes problemas de reestruturação da dívida da Zâmbia, que tinha sido negociada no âmbito do Quadro Comum do G20, acabou por minar bastante as negociações e atrasar ainda mais a reestruturação da dívida, colocando cada vez mais em agonia a vida do cidadão comum da Zâmbia.[11]

Gana:

No início do ano passado, o Gana devia à China 1,7 biliões de dólares, de acordo com o Instituto Internacional de Finanças, uma associação comercial de serviços financeiros focada nos mercados emergentes.[12] Tal como a Zâmbia, o Gana entrou em incumprimento soberano de 60 biliões de dólares em dívida interna e externa no final de 2022 e procurou logo a seguir uma resolução para este problema, ao abrigo do Quadro Comum para a dívida externa oficial de 5,4 biliões de dólares.[13]

Um acordo com os credores oficiais para a reestruturação da dívida foi estabelecido, seguindo o mesmo figurino da Zâmbia. Contudo, apesar de este acordo ter permitido desbloquear um empréstimo do FMI, o progresso tem sido arrastado.

Atualmente, segundo algumas fontes, “o Gana pretende proceder a uma simples reestruturação da dívida, trocando obrigações antigas por novas notas, numa altura em que o país procura aliviar a dívida de cerca de 13 biliões de dólares a credores privados internacionais”.[14] Todavia, as informações veiculadas têm sido contraditórias, por isso o governo ganês, mostrou-se cauteloso  quanto a uma reformulação da dívida que incluísse uma redução gradual, em que os detentores de obrigações recebessem menos se os resultados macroeconómicos não fossem tão bons como esperado.[15]

Não obstante, o governo disse aos investidores que gostaria de chegar a uma solução, após o acordo sobre a dívida pública alcançado com credores, tais como o ‘Clube de Paris’ e a China.

Etiópia:

A Etiópia é o segundo país mais populoso de África e o décimo maior em termos de área, mas é também dos estados africanos que vive uma maior turbulência a nível geopolítico, militar e económico. A proximidade com o estado chinês já vem de trás. Há tempos a Etiópia fechou vários acordos bilaterais com vários dos seus credores oficiais, entre os quais a própria China. Com as reservas de divisas reduzidas, que têm sido um problema constante no país, e uma inflação elevada, chegou a acordos bilaterais de suspensão do serviço da dívida. Com a China obteve uma suspensão da dívida de dois anos., que rapidamente passam. A Etiópia tem 28,2 biliões de dólares em dívidas externas, metade das quais são chinesas. De acordo com o Banco Africano de Desenvolvimento, o PIB da Etiópia deverá crescer 5,8 % em 2023 e 6,2 % em 2024, principalmente com base na indústria, no consumo e no investimento. Por outro lado, a inflação atingiu os 34% em 2022. Devido às elevadas despesas com a defesa e à diminuição da cobrança de receitas, o défice orçamental foi de 4,2% do PIB em 2022.[16]Perante este cenário, a Etiópia precisa de apoio ao desenvolvimento, alívio da dívida e Investimento Direto Externo.[17]

A situação angolana

A situação da dívida angolana à China é mais antiga do que a iniciativa Belt and Road de 2013, começando a ser desenvolvida a partir do final da Guerra Civil em 2002, constituindo-se a China no principal financiador da reconstrução que se sucedeu. Neste momento, considerando os dados oficiais do Banco Nacional de Angola (BNA), o stock da dívida pública de Angola em relação à China é 18,4 mil milhões de dólares (biliões na designação anglo-americana), correspondendo a 37% da dívida total. Mais do que isso, os números mostram que entre 2019 e 2023 esse montante desceu de 22,4 mil milhões para 18,4 mil milhões. Tal significa que, em quatro anos, Angola pagou – só de capital, sem contar com juros – 4 mil milhões de dólares à China[18]. Tem sido notado por todos o peso que o pagamento da dívida pública tem no Orçamento Geral do Estado, notando-se sérios apertos nas Finanças Públicas angolanas em 2023, e antevendo-se que o mesmo aconteça em 2024, sobretudo a partir de Março, tendo em conta as necessidades de pagamentos à China.

Embora, não entendamos que o pagamento da dívida à China coloca em causa a solvabilidade do Estado angolano, entendemos que tem um efeito crowding out muito significativo, uma vez que retira recursos do Orçamento Geral do Estado que poderiam ser destinados ao desenvolvimento e ao sector social para pagamento de dívida, dívida que em certa parte é polémica, uma vez que houve uma utilização muito questionável dos empréstimos: Parte dessa dívida foi destinada a infraestruturas descartáveis, como estádios e estradas que hoje estão em condições precárias. Além disso, uma parcela significativa desses empréstimos acabou apropriada privadamente por dirigentes angolanos, prejudicando a economia do país.

Há um claro problema angolano com a dívida chinesa, que como acabámos de descrever sumariamente, também existe em relação a outros países africanos.

Fig. 3 – Empréstimos chineses a África e Angola (em USD$ biliões)

Fonte: China Africa Research Initiative – Johns Hopkins University (https://www.sais-cari.org/)

 A criação de um mecanismo comum na União Africana (UA) para negociar a dívida chinesa

Sendo a dívida chinesa uma questão africana, não deve continuar a ser encarada bilateralmente, tornando-se evidente que cada Estado, por si, pode ser demasiado fraco para negociar com a China, uma das potências mundiais da atualidade ou para surgir sozinho nas organizações que os credores promovem. Os credores unem-se, enquanto os países africanos os enfrentam sem apoio, individualmente.

Seria importante que a Conferência da União Africana, órgão supremo da UA composto pelos chefes de estado e de governo (art.º 6 do Acto Constitutivo da UA) criasse um Comité Conjunto de Negociação da Dívida Chinesa (art.º 6.º, d) de si dependente, mandatado para negociar com as autoridades chinesas um quadro global de reajustamento da dívida africana para com a China, que depois seria aplicado a todos os que pretendessem um aligeiramento da divida.

Torna-se evidente que a negociação da divida africana com a China é um processo complexo que envolve a interação entre as diferentes partes com interesses e objetivos distintos. Para alcançar o sucesso é fundamental considerar a unidade africana para exigir a cooperação chinesa. Essa unidade traduz-se, desde logo, em reunir informações e obter o máximo de elementos para a negociação, o que um órgão conjunto pode facilitar. Em negociações complexas, o tempo e a capacidade de entender o outro são aspetos fundamentais, e nesse sentido, uma solução una africana permitirá uma muito maior troca de experiências, e, simultaneamente, um acompanhamento mais técnico, menos emotivo e com mais peso negocial da negociação.

Torna-se fundamental que África delineie uma política conjunta para lidar com a dívida chinesa de igual para igual e não numa posição de fraqueza.

Uma solução clara é fazer passar todas as negociações por um corpo unido africano dentro da União Africana, tornando-se numa negociação alargada União Africana-China. Tal permitiria igualmente reforçar a unidade do continente berço.


[1] https://www.reuters.com/world/africa/chinese-loans-africa-plummet-near-two-decade-low-study-2023-09-19/

[2] Africa Defense Forum Magazine:  https://adf-magazine.com/pt-pt/2022/02/dividas-com-a-china-colocam-20-paises-africanos-em-dificuldades-financeiras/

[3] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cmj544lg205o

[4] idem

[5] https://www.voanews.com/a/china-s-lending-to-africa-hits-a-low-study-shows/7280214.html

[6] idem

[7]  Visual Capitalist: https://www.visualcapitalist.com/countries-loans-from-china/

[8] South China Morning Post: https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/3250552/china-africa-trade-hit-282-billion-2023-africas-trade-deficit-widens-commodity-prices-key-factor

[9] Visual Capitalist:  https://www.visualcapitalist.com/countries-loans-from-china/

[10] Associated Press: https://apnews.com/article/zambia-debt-restructuring-deal-china-a0d14e7af986e2f873555685cedb86b3

[11] Afronomics Law: https://www.afronomicslaw.org/category/african-sovereign-debt-justice-network-afsdjn/one-hundred-and-fourth-sovereign-debt-news

[12] https://www.reuters.com/world/africa/china-says-its-official-bilateral-loans-are-less-than-5-ghana-debt-2023-03-02/

[13] Economist Intelligence:  https://www.eiu.com/n/china-and-africas-long-road-to-debt-recovery/

[14] https://www.reuters.com/markets/rates-bonds/ghana-pushes-simple-debt-rework-proposal-bondholders-sources-2024-01-30/

[15] idem

[16] Observer Research Foundation: https://www.orfonline.org/research/the-changing-face-of-ethiopia

[17] idem

[18] Rui Verde, https://www.makaangola.org/2024/01/angola-eua-trump-e-divida-a-china/

A atual situação económica na China e Angola

Crise da economia chinesa: factos e causas

Está a existir um problema na economia chinesa que parece estrutural e poderá afetar as relações com países devedores, como Angola. Vários fatores estão a contribuir para uma diminuição do crescimento económico na China e o aumento do desemprego, sobretudo jovem, o que poderá também implicar alguma instabilidade política dentro da própria China.

Comecemos por referir alguns dados avulsos recentes[1]:

-Os dados de crédito de julho divulgados no passado dia 11 de Agosto mostraram uma queda na procura de empréstimos por parte de empresas.

-As vendas no retalho subiram apenas 2,5% em julho em relação ao ano anterior, abaixo das expectativas de um aumento de 4,5%.

-A produção industrial somente aumentou 3,7% em julho em relação ao ano anterior, abaixo do aumento de 4,4% que os analistas esperavam.

A verdade é que as estatísticas recentes publicadas pela China causaram severa preocupação.  Além das estatísticas acima mencionadas, os preços ao consumidor em julho estavam mais baixos do que há um ano, sugerindo que se pode estar à beira da deflação, o que reflete uma escassez crónica da procura na economia. O comércio exterior da China no mesmo mês de julho mostrou uma queda acentuada nas exportações devido à fraca procura global, acompanhada por um declínio mais acentuado nas importações, significando a referida fraqueza na procura doméstica. As empresas e famílias chinesas estão “encolhidas”[2]. A gravidade da situação levou a que numa reunião do Politburo no mês passado, os dirigentes da China se referissem à recuperação económica deste ano como “tortura[3].”

Todo este fraco desempenho levanta-nos várias reflexões. A primeira é que não se deve entrar em exageros. Assim, como houve um exagero nos anúncios pretéritos acerca da China como superpotência económica, quando o seu PIB per capita não ultrapassa os 13.000 USD em 2021,[4] enquanto o PIB per capita nos Estados Unidos é de mais de 70.000 USD, ou mesmo em Portugal de 25.000 USD, também não se deve entrar no exagero contrário, de que a China entrou num abismo insuperável. O evidente é que a economia chinesa está num momento de correção como acontece a todas as economias, possivelmente, necessitando de profundas reformas e ajustamentos políticos.

Portanto, o contexto que adotamos neste trabalho é de considerar uma crise na economia chinesa, mas acreditar que as escolhas certas de política podem ultrapassar essa crise.

Neste preciso momento, a esperança de recuperação chinesa após a pandemia desvaneceu-se, pois, o consumo geralmente tem sido muito moderado, especialmente para itens caros, como carros e casas, e o investimento privado, a espinha dorsal da economia da China, caiu no primeiro semestre deste ano, pela primeira vez desde que tais dados foram publicados. As empresas privadas e os empresários não gastam muito em investimentos ou na contratação de pessoal. O desemprego juvenil atingiu 21%. A formatura anual de 11 a 12 milhões de estudantes neste verão vai agravar uma situação já difícil por causa dos problemas de encontrar trabalho adequado e também porque o mercado de trabalho chinês se tornou naquele em que a maioria dos empregos são de baixa remuneração, baixa habilitação ou economia informal.

Parece errado atribuir tudo isto à pandemia. A maioria das ameaças à economia da China estava a crescer há alguns anos. O problema fundamental é que a China gerou, durante a última década ou mais, uma montanha de dívidas incobráveis, infraestruturas e imóveis não lucrativos e não comerciais, blocos de apartamentos vazios, instalações de transporte pouco usados e excesso de capacidade, por exemplo, em carvão, aço, painéis solares e veículos elétricos. O crescimento da produtividade estagnou e a China pode ostentar um dos mais altos níveis de desigualdade do mundo[5].

Além disso, sob Xi Jinping, desenvolveu um sistema de governação mais intenso, centrado no Estado e controlador, tanto por razões políticas, quanto para lidar com os efeitos de seu modelo de desenvolvimento em dificuldades.

Temos dúvidas até que ponto as intervenções políticas para limitar alguns bilionários como Jack Ma[6] foram positivas para o ambiente económico. Se é verdade que evitaram o perigo russo do domínio oligárquico do Estado e deram um sinal à população em geral de um poder preocupado com excessos, também é certo que fizeram soar calafrios no espírito empresarial necessário para uma economia competitiva. Todos terão medo de crescer em demasia, de dar demasiado nas vistas, no final de contas, de inovar. Pois a inovação e a atenção exagerada podem ter reflexos negativos.

De certa forma, o “espírito animal” de que Keynes falava como motor de qualquer economia saudável foi “domesticado” na China e esse poderá ser o principal problema da sua economia, não sendo mensurável nem resolúvel com medidas técnicas.

Reação chinesa e outras possibilidades de rumo

Para já a China anunciou a suspensão da divulgação da taxa oficial de desemprego entre os jovens urbanos da China, entre os 16 e os 24 anos, que atingira em junho um novo recorde histórico de 21,3%. O Conselho de Estado publicou novas diretrizes para intensificar esforços para atrair investimento estrangeiro. E o banco central baixou as taxas de juro[7].
Nenhuma destas medidas parece ter força para inverter o ciclo de declínio da economia chinesa.

Muitos autores defendem que seria necessário um estímulo fiscal avultado para dinamizar a economia, que não deveria ser traduzido em mais dívida, mas em pura “impressão” de moeda, o que faz sentido numa situação de deflação. Uma espécie de “helicópteros com dinheiro” a sobrevoar as cidades e a largá-lo.[8]

Também é possível que esta crise obrigue o presidente chinês a uma revisão da sua política em relação aos grandes grupos económicos e ao empresariado em geral, optando, tal como Lenine há um século, por uma nova liberalização e flexibilização, procurando igualmente, aligeirar a tensão que se foi criando entre a China e os Estados Unidos.

Na verdade, acreditamos que uma boa parte da solução para os atuais problemas económicos chineses resida na política e não na economia, e quer na política interna, como na externa. Provavelmente, a nível interno o sistema mais adequado para sair da crise seria a reintrodução do sistema mais ambíguo e flexível dos tempos de Jiang Zemin. Jiang Zemin, presidente da China de 1993 a 2003, é considerado “o homem que mudou a China”. Muitos chineses que cresceram na década de 1990 lembram-se de Jiang Zemin por supervisionar a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, e também por permitir a difusão do filme Titanic. Durante a crise financeira asiática, Jiang enfatizou a importância das finanças e da segurança financeira para a segurança nacional da China e a construção de uma economia moderna. Ao mesmo tempo, tal não implicou uma menorização do poder do Partido Comunista Chinês e do seu controle político. Alguns autores apontam-lhe um histórico manchado em relação aos direitos humanos e à liberdade de expressão. Zemin supervisionou a repressão aos dissidentes nacionais, a proibição de grupos religiosos como o Falun Gong e a supressão da imprensa e da Internet e também manteve uma posição intransigente em relação a Taiwan[9].

A vantagem para a China de Jiang Zemin é que soube manter um ponto de equilíbrio entre a libertação das forças de mercado e inovação, e o controlo da China pelo partido Comunista.

E, a nossa opinião, é que uma boa parte da crise chinesa não resulta apenas ou sobretudo de fatores económicos, mas sim da perda desse ponto de equilíbrio que é necessário recuperar.

Obviamente, que tal não depende apenas da liderança chinesa, também tem de contar com uma modificação da situação externa de quase-confronto entre os Estados Unidos e a China.

É sabido que desde o tempo de Donald Trump que houve uma inflexão na política externa norte-americana aumentando a agressividade face à China. O que parecia um “trumpismo”, tornou-se uma política central norte-americana com Joe Biden e hoje os Estados Unidos veem e tratam a China como um potencial inimigo futuro que é preciso conter. Naturalmente, que tal coincidiu com a afirmação nacionalista de Xi Jinping que abandonou a anterior cautela externa, e passou a querer uma China forte no contexto mundial e sem complexos, pretendendo que o país fosse uma alternativa pós-hegemónica aos Estados Unidos. Portanto, de ambos os lados tivemos uma iniciativa voluntária confrontacional.

A questão que se coloca é se é possível uma retração e a criação dum novo espaço de colaboração EUA-China, que certamente aumentará a prosperidade da China, ou se o rumo é definitivamente o confronto estratégico? Neste confronto a China, perdendo as capacidades de inovação ligadas ao espírito empresarial tenderá a compartimentar-se e fechar-se, o que aumenta quer as possibilidades de elevação dos níveis de conflito (guerra mais ou menos direta) e dificulta qualquer recuperação económica chinesa.

Impactos em Angola

Esta é a situação real da economia chinesa neste momento. Como referido, os “travões” fundamentais ao crescimento parecem ser dois: do ponto de vista económico, a excessiva dívida, e do ponto de vista político, que a nós nos parece mais importante para o médio e longo-prazos, a acentuação da força do poder político na economia e na sociedade, e a condenação política do espírito empresarial e da inovação.

Face a este cenário, Angola confronta-se com vantagens e desvantagens que atuam de forma dinâmica.

Uma vantagem resulta da aproximação de Luanda aos Estados Unidos e das relações que mantém com a China. Angola poderá ser um país-ponte para o reencontro entre as duas potências, uma espécie de terreno em que se comprove que ambos podem cooperar, competir e subsistir para benefício mútuo. Todavia, também se pode tornar pela mesma razão como uma desvantagem, transformando-se Angola num dos campos de disputa entre as duas potências, querendo ambas puxá-la para a sua esfera de influência. Aqui estaria mais um equilíbrio difícil de manter para João Lourenço.

Em termos económicos, haverá a possível tendência das autoridades chinesas acentuar alguma inflexibilidade em relação a dívidas externas, tal podendo já estar a acontecer com Angola, ou vir a acontecer. É a reação normal de países em “aperto.” Há, portanto, o perigo de uma maior pressão chinesa em termos económicos em relação a Angola, que poderá colocar em perigo as, novamente, periclitantes finanças públicas angolanas.

O espírito “árvore das patacas” (de largueza) que predominou nas relações financeiras China-Angola a partir de 2002 terminou definitivamente e não será recuperado. A China comportar-se-á com Angola, com maior ou menor detalhe, como qualquer outro credor internacional, e a sua pressão aumentará à medida que a situação económica interna chinesa se deteriore. Outro desafio para João Lourenço.

Há uma vantagem que Angola poderá oferecer à China que é a criação de um amplo mercado de trabalho para a sua juventude já formada. Acordos de cooperação poderão ser feitos para colocar chineses em Angola para formar quadros angolanos e ajudar à implementação de políticas em áreas como a Administração Pública em que a China tem uma milenar experiência ou as telecomunicações e tecnologias de informação.

O sistema de função pública chinês proporcionou estabilidade ao império chinês durante mais de 2.000 anos e proporcionou uma das principais saídas para a mobilidade social na sociedade chinesa e atualmente, conseguiu nos anos 1980s realizar uma transição de sucesso duma economia centralizada marxista para uma economia mista com um crescimento acentuado.

Igualmente, a China tornou-se um dos maiores mercados de telecomunicações do mundo, com mais de mil milhões de utilizadores de Internet e uma receita mensal de mais de 130 mil milhões de yuans provenientes do sector das telecomunicações. O país passou por várias ondas de reformas nas últimas três décadas no sentido da liberalização e privatização da sua indústria de telecomunicações. Ora é a experiência adquirida nesta imensidão que pode ser colocada ao serviço dos angolanos.

Nestes termos, a fase atual das relações China-Angola poderá deixar em parte o capital físico e centrar-se no capital humano, mostrando que as relações entre países podem maturar. Angola poderá proporcionar uma oportunidade de escape para as empresas chinesas e os seus jovens.

O que se tem de atentar é que a relação entra numa fase “madura” em que cada país tem os seus interesses que deve defender.  Da China já não virão “chuvas de dinheiro”, mas investimentos racionais, e é com isso que Angola deve contar e contrapor. Na verdade, em termos de mercados de futuro, oportunidades de investimento e escape para os problemas chineses, Angola tem muito a oferecer e pode ser a “moeda de troca” em várias negociações.


[1] https://www.cnbc.com/2023/08/14/china-economy-new-loans-fall-property-fears-low-consumer-sentiment-.html

[2] https://www.cnbc.com/2023/08/17/david-roche-chinas-economic-model-is-washed-up-on-the-beach.html

[3] https://www.theguardian.com/business/2023/aug/11/china-economic-problems-show-things-are-seriously-amiss

[4] https://www.ceicdata.com/pt/indicator/china/gdp-per-capita

[5] Sobre os problemas estruturais e de longo prazo da economia chinesa ver Frank Dikotter, A China depois de Mao – A ascensão de uma superpotência, 2023.

[6] https://www.forbes.com/sites/georgecalhoun/2021/06/07/the-sad-end-of-jack-ma-inc/

[7] https://www.nytimes.com/2023/08/15/business/china-economy-downturn-unemployment.html, https://www.bloomberg.com/news/features/2023-08-20/xi-jinping-is-running-china-s-economy-cold-on-purpose?in_source=embedded-checkout-banner,

[8] Rui Verde, Helicópteros com Dinheiro, 2013

[9] https://www.cfr.org/blog/jiang-zemin-put-chinas-economic-opening-practice

A situação económica em Angola e a Agenda 2050

Agitações económicas recentes

Os resultados da política económica angolana que estavam a ser avaliados de forma favorável nas instituições internacionais e na generalidade da opinião pública nos últimos tempos, designadamente, baixa da inflação, consolidação orçamental, controlo da dívida pública e sucesso da liberalização cambial, pareceram sofrer um abalo durante do mês de junho de 2023.

O “gatilho” de tal mudança de perceção foi o anúncio abrupto da subida do preço da gasolina comercial em mais de 80%, devido à retirada parcial do subsídio estatal,( sem o necessário enfoque nas medidas mitigadoras que estavam bem pensadas) a que se seguiram uma série de eventos em catadupa, a exoneração de Manuel Nunes Júnior como ministro de Estado da Coordenação Económica, alguns rumores sobre salários da função pública em atrasos, e inevitavelmente o anúncio de uma agência de rating da baixa da perspetiva económica de Angola de “positivo” para “estável”.[1]A isto acresce que o Kwanza está em depreciação acelerada face ao dólar e ao euro. No final de junho, a moeda nacional angolana passou pela primeira vez os 800 kwanzas por dólar.[2]

A depreciação do Kwanza faz levantar renovados temores de inflação, num país ainda muito dependente de importações para o seu quotidiano. Em Fevereiro passado, o Banco Nacional de Angola informava que o país desembolsara mais de dois mil milhões de dólares (1,8 mil milhões de euros) com a importação de alimentos, em 2022, representando um aumento de 40% comparativamente ao ano anterior.[3] Um valor mais baixo da moeda nacional e uma subida das necessidades de importação de alimentos tem obviamente como resultado preços mais altos.

Por sua vez, a afirmação que o novo ministro de Estado e da Coordenação Económica fez sobre os atrasos de alguns salários públicos em maio, não tranquilizou, pois Lima Massano assegurou que tal se deveu a “um desfasamento entre a altura da recepção dos fundos resultantes da arrecadação fiscal e o período dos pagamentos.”[4]Não se contesta a explicação do ministro, o problema é que mesmo aceitando-a ela contém um problema, que é o da falta de reservas de tesouraria do governo, fazendo indicar que a contenção orçamental imposta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) não criou qualquer espaço para as finanças públicas angolanas. Note-se que apesar do preço do petróleo não estar muito elevado, nos últimos seis meses oscilou entre os 70 e 80 USD, com prevalência para os 75/76 USD. Como o Orçamento Geral do Estado foi feito com base nos 75 USD (o que na altura criticámos[5]), a verdade é que o preço tem estado em linha com a previsão, embora sem margem de manobra.

O possível efeito do preço do petróleo

Face ao exposto, não será, em teoria, o preço do petróleo ainda a ter efeitos negativos no OGE no imediato.

Contudo, tal pode acontecer no segundo semestre. Temos formada a opinião, que existe uma forte pressão de descida do preço resultante dos embargos petrolíferos à Rússia e provavelmente ao Irão. A nossa tese é que estes embargos Ocidentais sobre o petróleo têm como efeito não a restrição assinalável da oferta desse produto pela Rússia, o que faria subir o preço do petróleo, mas a venda com desconto desse mesmo petróleo a intermediários que funcionam como “lavandarias”. Isto significa que quanto mais tempo durar o embargo de petróleo à Rússia, mais esta tornará eficiente os mecanismos de contorno e mais venderá petróleo com desconto. Assim, é muito possível que continue a existir uma pressão em baixo para o preço do petróleo, sobretudo, se associadamente a economia da China continuar sem mostrar a pujança do passado.

Consequentemente, pode acontecer que os apertos orçamentais se intensifiquem no segundo semestre deste ano, se o preço do petróleo sucumbir a estas pressões.

O problema doutrinário e prático

O facto concreto é que as “receitas” do FMI em Angola parecem ter falhado, e mais uma vez a aplicação de doutrinas económicas clássicas não resulta.

Torna-se cada vez mais nítido que uma teoria universal da economia baseada no pensamento conhecido como clássico e divulgado pelas universidades norte-americanas pode funcionar em economias maduras desenvolvidas ou em locais com instituições (mercado, governo, tribunais) relativamente sólidos, mas não funciona em países ainda com extremos desequilíbrios e em construção institucional. Não se pode falar de verdadeiros mercados funcionado livremente segundo as regras da oferta e procura, nem em governação eficiente ou sequer numa justiça aproximada do funcional em Angola. Por motivos variados, estes são processos em estruturação, sem finalização. Nessa medida, qualquer modelo económico que os assuma como condição prévia, falhará. Por isso, falham as medidas do FMI, não trazendo prosperidade a Angola e fazendo o país andar de crise em crise. Sublinhe-se que desde 2009 que o FMI acompanha e concorda com as políticas económicas angolanas.

Há efetivamente um problema doutrinário subjacente ao impacto negativo da política económica em Angola que se liga ao facto dos principais decisores terem formação em universidades estrangeiras que adotam modelos institucionais de economia de mercado, com maior ou menor intervenção do Estado, mas sempre admitindo que se está perante uma situação em normal funcionamento. Ora, a verdade é que Angola está numa situação pré-institucional pelo que os modelos a aplicar deviam ser de desenvolvimento e construção institucional e não de estabilização. Este problema, parecendo muito teórico, tem uma real relevância prática, pois está-se a aplicar algo que pouco tem a ver com a realidade.

A isto acresce que algumas reformas estruturais fundamentais não foram tomadas pelo governo. Manteve-se um sistema marcado pela interferência de políticos no comando das empresas, pela continuada aposta em oligopólios que são essencialmente importadores, não se tornou a justiça célere e não se diminuiu manifestamente a burocracia.

A conjugação destes fatores leva a que a economia angolana não tenha saído ainda do ciclo do petróleo e da repetição de erros passados.

A interrogação sobre a Agenda 2050

São estas deficiências de base que aparentam limitar o efeito da Agenda 2050. Em anterior relatório elogiámos a forma desassombrada e honesta em como os autores da Agenda faziam o diagnóstico da situação passada e presente[6], e tínhamos alguma antecipação em ler as propostas para o futuro.

É evidente que a Agenda 2050[7] tem muitos objetivos interessantes e análises profundas que estimulam o debate, que deveria ser alargado na sociedade angolana. No entanto, no seu cerne o documento não nos traz a ambição necessária e tem o defeito de se basear, como temos referido, em modelos generalistas.

Se repararmos o núcleo essencial dos objetivos estratégicos é pouco mobilizador. O aumento previsto até 2050 do PIB é de 2,4 vezes, o que em termos de PIB per capita, presumindo-se que o crescimento populacional é apenas de 2,1 vezes (e pode ser bem mais) resulta numa subida de 3.675 USD para 4.215 USD do mencionado PIB per capita. Se repararmos é uma subida em 27 anos do bem-estar de população de apenas 14%[8]. Adicione-se que o desemprego ainda se situará na ordem dos 20%. Um valor extremamente elevado, embora a fórmula estatística usada pelo Instituto Nacional de Estatísticas de Angola (INEA) não se possa comparar com outras, por ser mais exigente e por isso apresentar resultados mais negativos[9].

É muito desanimador. Na realidade, face ao aumento da população, o que a Agenda 2050 está a colocar como objetivo é uma quase-não progressão. Não é possível fazer diferente?

Pretende-se que Angola em 2050 seja semelhante ao que hoje são países como o Paraguai, Jordânia, Sri Lanka, Essuatíni ou Mongólia[10]. Não podemos subscrever esta visão, que na prática vislumbra um país estacionado, onde uma subida mais acentuada da população colocará severos problemas.

Conclusões

Com toda a independência e objetividade somos de opinião que esta Agenda futura deveria ser fundamentalmente revista e substancialmente alterada com a participação do Conselho Económico e Social, dos Centros de Estudos variados que trabalham sobre Angola nas universidades e fora delas e das forças vivas do país com vista a apresentar um modelo simultaneamente ambicioso e praticável para o futuro de Angola. Só assim serão ultrapassados os presentes problemas resultantes de maus modelos doutrinários e de pouco reformismo estrutural.

Mais além e mais rapidamente, tem de ser mote do futuro.


[1] https://www.noticiasaominuto.com/economia/2347975/fitch-piora-perspetiva-de-evolucao-de-angola-para-estavel

[2] https://www.dw.com/pt-002/angola-queda-hist%C3%B3rica-do-kwanza/a-66037342

[3] https://www.jornaldenegocios.pt/economia/mundo/africa/angola/detalhe/angola-importou-mais-40-de-alimentos-no-valor-de-mais-de-dois-mil-milhoes-de-dolares-em-2022

[4] https://www.angonoticias.com/Artigos/item/74007/ministro-de-estado-esclarece-atrasos-salarias-no-pais

[5] https://www.cedesa.pt/2022/12/20/analise-da-proposta-de-orcamento-geral-do-estado-de-angola-para-2023/

[6] https://www.cedesa.pt/2023/06/11/estrategia-angola-2050-uma-analise-i/

[7] https://www.mep.gov.ao/angola-2050

[8] Idem, nota 7, p. 22.

[9] https://www.makaangola.org/2023/05/desemprego-o-erro-das-politicas/

[10] Países que na atualidade têm um PIB per capita próximo dos 4125 USD. GDP, Per Capita GDP – US Dollars”, e 2018 para gerar a tabela), Divisão Estatística das Nações Unidas.

Sucessos macroeconómicos de João Lourenço e o problema do desemprego juvenil: uma proposta de financiamento

Os recentes sucessos macroeconómicos do governo João Lourenço

Depois de anos de crise, recessão e quase desespero económico, que, naturalmente, se traduzirem nos resultados eleitorais do passado Agosto e na constante agitação das redes sociais, o governo angolano apresenta um quadro macroeconómico muito animador.

O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) projetado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para 2023, cifra-se nos 3,5%, um número robusto[1], sobretudo, tendo em conta que o país estava em recessão desde 2016, com um pico negativo em 2020 de -5,6%.

As recentes previsões da dívida externa, também do FMI, apontam para um rácio de 63,3% do PIB. Mais uma vez, refira-se que em 2020, esse rácio correspondia a 138,9% do PIB. Existem vários fatores que explicam esta queda, alguns nominais, mas ela é impressiva.

Por sua vez, o Orçamento Geral do Estado para 2023, apresenta um Saldo Fiscal Global Superavitário de 0,9% do PIB, e propõe-se a criar um saldo primário positivo, na ordem dos 4,9% do PIB.

Na inflação, a variação homóloga de março de 2023 é de 10,81%,[2] demonstrando uma queda veloz e consistente.

Fig.º n.º 1-Tendência decrescente da Inflação (Fonte: BNA)

Consequentemente, não há qualquer dúvida que o quadro da economia angolana se modificou desde 2016, e de um país descontrolado e à beira da falência, temos uma situação macroeconómica saudável.

Desemprego juvenil: um problema grave e persistente

Apesar das boas notícias na frente macroeconómica, a população parece ainda alheada do sucesso e o sentimento popular não é correspondente aos números.

Uma explicação para tal fenómeno está na persistência do desemprego elevado, em especial o desemprego juvenil. Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas de Angola (INEA) no IV trimestre de 2022, a taxa de desemprego total situava-se nos 29,6%, o que representava uma ligeira queda em relação a anteriores trimestres, mas sem significado.

Em relação à população jovem (entre os 15-24 anos) a taxa de desemprego é de 52,9%[3]

Este número não é aceitável e não há economia que possa ser considerada saudável enquanto tal fenómeno persistir.

As consequências de uma alta taxa de desemprego são conhecidas e apenas se enumeram aqui. Trata-se de um desperdício de recursos, mostrando que a economia não está a funcionar ao seu nível potencial, mas sim de forma pouco eficaz e ineficiente. Naturalmente, que é uma situação que tem o potencial de gerar um aumento da pobreza e igualmente da agitação social. Certamente, uma boa parte da agitação social que hoje se vive em Angola, seja nas ruas, seja nas redes sociais, resulta direta e inapelavelmente do desemprego juvenil. Portanto, as consequências são extremamente e inapelavelmente negativas.

Fig. n.º 2- Consequências da taxa de desemprego juvenil elevada em Angola

Desemprego Juvenil: taxa social de resiliência e instabilidade sistémica perigosa

Do ponto de vista da ordem constitucional e da estabilidade do Estado, há um ponto sistémico relativo ao desemprego juvenil que é preciso ter em conta e sublinhar.

Haverá um limiar em que a taxa de desemprego se torna insuportável e leva as pessoas à ação política com vista a modificar a situação, será uma espécie de gatilho que origina revoluções, subversões, mudanças de regime, etc. Vamos chamar-lhe taxa social de resiliência ao desemprego, como constituindo o limiar de desemprego que uma sociedade suporta sem se revoltar.

Portanto, o ponto que se coloca é que uma taxa de desemprego juvenil acima dos 50%, num país essencialmente jovem e com uma taxa de crescimento demográfico expansiva, é uma taxa explosiva e poderá estar muito próxima da taxa social de resiliência. Quer isto dizer que a presente taxa de desemprego juvenil é, talvez, o maior fator de desestabilização política de Angola e tem a potencialidade de derrubar ordens constitucionais e clamar por elementos de ação extra- legais.

É nesta altura que “que lutar contra o desemprego se torna a prioridade das prioridades. (…) Quando é atingido o limiar da tolerância ao desemprego, é preciso agir depressa e em força. Temporizar não serve de nada, nem serve de nada desenvolver um discurso de desculpas assente nas dificuldades económicas.”[4]

Nunca é demais notar que a ascensão de Hitler ao poder e a sua subsequente popularidade nos anos 30 junto do povo alemão se deveu ao desemprego e à solução que deu ao problema. O desemprego alemão ditou a queda da República de Weimar na Alemanha e a instauração da ditadura nazista. O desemprego é o provocador de extremismos e agitações, superior a qualquer outro.

Por isso, se considera que no presente estado económico angolano, o combate ao desemprego juvenil se tornou a prioridade das prioridades.

Combate ao desemprego juvenil e financiamento: o instrumento financeiro autónomo (IFA)

É evidente que a economia privada angolana não tem a capacidade, neste momento, de criar os empregos necessários para fazer sair a taxa de desemprego do seu limiar de crise. Torna-se óbvio que é necessária uma intervenção maciça do Estado para criar emprego até a um nível social aceitável.

Os programas do Estado têm de ser os tradicionais, assentes na construção massiva de infraestruturas, estradas, portos, e indústria estratégica, bem como na formação técnica especializada e envio de jovens para as várias províncias para tarefas de apoio social na área do saneamento básico, habitação, saúde primária e agricultura.

Não servem os paliativos que as economias de mercado adotam nestas situações: subsídio de desemprego, estágios, formação profissional para conversão, benefícios fiscais. Estas políticas só funcionam perante curtas oscilações das curvas de oferta e procura de emprego, não operam em situações estruturais e permanentes de desemprego.

O combate ao desemprego juvenil tem de ser objeto de um massivo programa nacional com efeitos rápidos e que se traduza na oferta de emprego a vários milhões de jovens.

Os economistas clássicos contraporão que o Estado não tem fundos para tais programas abrangentes e maciços. É nesta altura do raciocínio que entra o combate à corrupção. Segundo números agora apresentados, “Angola recuperou seis mil milhões de dólares e apreendeu outros 21 mil milhões no âmbito do confisco de ativos, metade dos quais no exterior.[5]” Não se sabe exatamente quanto destes valores são meramente apreensões provisórias e quantos já se encontram disponíveis para o Estado. O certo é que são quantias apreciáveis.

O conceito que se propõe para o financiamento dos massivos programas contra o desemprego juvenil é simples: todos os programas de financiamento do emprego juvenil serão financiados por um mecanismo exterior ao crédito clássico, criando-se um veículo excecional assente nos ativos apreendidos.

Alguns dos ativos apreendidos, por exemplo, até a um montante de cinco mil milhões de dólares servirão de capital ou garantia de um instrumento financeiro autónomo (IFA) que lançará os programas de fomento ao emprego. O financiamento desse programa terá como base os ativos apreendidos e será pago através de títulos emitidos pelo IFA.

O IFA ou pagará os programas diretamente com os títulos que emite baseados nos ativos apreendidos ou emite títulos de dívida para levantar fundos para esse pagamento. O certo é que criaria dinheiro fora do sistema clássico e permitiria assim criar uma esperança para os desempregados, fazendo a ligação fundamental entre o combate à corrupção e o combate ao desemprego, ligação que reputamos fundamental.

Fig. n. º3- Esquema simplificado do financiamento dos programas de combate ao desemprego

Conclusões

O desemprego juvenil é a maior ameaça à estabilidade política angolana. Há que encarar o tema e criar mecanismos de intervenção maciça do Estado financiados por um Instrumento Financeiro Autónomo suportado por parte dos ativos apreendidos no combate à corrupção.

O IFA pagaria os programas de emprego com títulos baseados nesses ativos.


[1] https://www.imf.org/en/Countries/AGO (consultado a 19 de abril 2023)

[2] https://www.bna.ao/#/pt (consultado a 19 de abril 2023)

[3] Folha de Informação Rápida _ Inquérito ao Emprego em Angola _ IV Trimestre 2022, (INEA 2023), p.9

[4] Jean-François Bouchard, O Banqueiro de Hitler, 2023, p. 2022.

[5] https://observador.pt/2023/04/18/angola-recuperou-6-mil-milhoes-em-dinheiro-e-apreendeu-mais-21-mil-milhoes-em-ativos/ (consultado a 19 de abril de 2023)

Economia angolana tendências, reformas necessárias e Plano Nacional de Emprego

A vida social em Angola é muito viva e, neste momento, os assuntos políticos e judiciais dominam a agenda do país. No entanto, é no domínio da economia que se regista uma evolução extremamente significativa sobre a qual é importante refletir e proceder a uma análise cuidada.

O recente (Fevereiro de 2023)[1] relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI)sobre o país sublinha os avanços favoráveis da economia angolana e também as reformas necessárias. É com base nesse relatório que vamos enunciar as principais tendências de Angola no campo económico e os pontos nevrálgicos para evitar recaídas como a que originou a última longa recessão que começou na presidência de José Eduardo dos Santos.

TENDÊNCIAS POSITIVAS

A economia de Angola está em franca recuperação após a recessão que durou cinco anos (2016-2020). Em 2022, apoiada por preços de petróleo mais elevados e atividade não petrolífera resiliente já alcançou um crescimento superior a 3%, estimando o FMI que em 2023 o país continue a ver o PIB aumentar na ordem dos 3,5%.

Portanto, assistimos a crescimentos superiores a 3% ao ano, que pelos nossos cálculos, mantendo-se o preço do petróleo e acelerando-se a liberalização dos mercados angolanos e o investimento estrangeiro, poderá acelerar para números na ordem dos 4% ou 5%, adotadas que sejam as políticas acertadas.

O otimismo que aqui partilhamos resulta do facto de o crescimento não petrolífero ter sido generalizado, apesar de um ambiente externo difícil, tal significando que o sector não petrolífero está a revivescer, bem como da atenção que vários países desenvolvidos com economias de mercado estão a prestar a Angola, como é o caso dos EUA, Espanha, França e Alemanha. Mencionem-se as recentes visitas a Angola do Rei de Espanha e do Presidente da República Francesa, Emmanuel Macron (Fevereiro e Março 2023).

Refira-se que a dívida que a relação dívida pública/PIB caiu cerca de 17,5 pontos percentuais do PIB, para estimados 66,1% do PIB, auxiliada por uma taxa de câmbio mais forte. Estima-se que a conta corrente tenha permanecido com um grande superávit em 2022, enquanto a cobertura das reservas em moeda estrangeira permaneceu adequada (dados FMI).

O facto é que o governo angolano tem, segundo o FMI, sabido adotar e manter sólidas políticas macroeconómicas e mantido um compromisso com reformas estruturais que são fundamentais para a economia de Angola.

REFORMAS NECESSÁRIAS

Entendemos que é na verificação de reformas estruturais fundamentais que reside o futuro da economia angolana. Destacamos algumas reformas que é necessário tomar e/ou continuar.

1-A primeira reforma, com impacto no médio e longo prazo, é fomentar a formação para a economia dos jovens. Formação não significa apenas, e talvez não na maioria, formação universitária, mas formação sólida no ensino básico e em aspetos profissionais. Defendemos, pois, que deve existir uma efetiva aposta no ensino profissional e técnico em Angola, antes de qualquer outro. Uma aposta real nas escolas e institutos profissionais e técnicos, que sejam vistos como alternativas valiosas ao academismo e não meras imitações universitárias (erro trágico dos politécnicos portugueses).

2-A segunda reforma acarreta a criação de mais condições para o investimento, já não a nível legal, onde existe um enquadramento moderno e atualizado por duas vezes durante a presidência de João Lourenço, mas ao nível judicial, administrativo e de boas práticas. O investidor deve-se sentir seguro para chegar e Angola e aplicar o seu dinheiro. Não deve ter medo de ficar sem ele devido a qualquer interferência de um oligarca, ou ver qualquer processo arrastar-se no tribunal. A celeridade e imparcialidade da justiça está ligada ao bom investimento.

3-Uma terceira reforma dedica-se ao setor financeiro, aí tem especial relevo o aumento do crédito às pessoas privadas e a resolução das fragilidades bancárias. Depressa há que fundir e capitalizar bancos, criando um setor bancário não dependente do Estado, do clientelismo ou da mera gestão da dívida pública.

Finalmente, entre outras mais reformas, destacamos o verdadeiro imperativo que é fazer mais progressos no fortalecimento da governação, e transparência, para melhorar o ambiente de negócios e promover o investimento privado.

Naturalmente, que continuar e acelerar a estratégia anticorrupção também é importante.

PLANO NACIONAL DE EMPREGO

Todas estas notícias devem ser enquadradas com o bem-estar da população e com os problemas graves ainda pendentes. Aquele que mais destacamos é o desemprego, que embora anotando uma ligeira descida, ainda se situa em valores muito altos, cerca de 30%.[2] Esta é uma área em que advogamos uma intervenção direta do Estado. É evidente que o aumento do PIB corresponde a uma diminuição de desemprego, no entanto, acreditamos que face os índices tão elevados de desemprego, no curto prazo é fundamental a atuação imediata do governo.

Nesse sentido, o recente anúncio da disponibilização pelo Banco Mundial de 300 milhões de dólares americanos para um projeto de aceleração da diversificação económica e criação de emprego[3] é de saudar. Não se conhecendo em detalhe o desenho desse programa de aceleração, a sua existência deve ser sublinhada, como também o anúncio anterior da ministra do Trabalho angolana da criação de um Programa Nacional de Emprego, com o objetivo de criar mais oportunidades de inserção de jovens no mercado de trabalho.[4] Também, neste caso, os dados são escassos acerca do desenho do Plano, sendo certo que o Presidente da República tinha declarado no discurso do Estado da Nação de 2022, a criação do referido Plano.

Até ao momento estas iniciativas referentes ao desemprego, embora positivas, parecem descoordenadas e pouco concretizadas. Por isso, a verdade é que Angola ganharia em ver um Plano Nacional de Emprego abrangente, específico e coordenado diretamente pelo Presidente da República, sem o que há o risco de não se implementar devidamente um Plano, que no curto prazo é fundamental para a economia e população angolana.

Fig.n. º1- Números fundamentais da economia angolana


[1] https://www.imf.org/en/News/Articles/2023/02/23/pr2352-angola-imf-executive-board-concludes-2022-article-iv-consultation-with-angola

[2] https://www.ine.gov.ao/

[3] https://correiokianda.info/banco-mundial-financia-usd-300-milhoes-para-fomento-do-emprego-em-angola/

[4] https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/programa-nacional-de-emprego-e-implementado-este-ano/

A economia angolana e a necessidade de uma nova Constituição

As constituições não resolvem problemas, mas dão sinais poderosos. É dum desses sinais poderosos que a economia de Angola necessita, neste momento.

Se olharmos para os grandes dados macroeconómicos, deparamos com um quadro animador. A inflação desde março de 2022 desceu de 27,66% para 13,86%, em dezembro de 2022, um dado impressivo, o Kwanza, moeda nacional, oscila livremente no mercado internacional, o Orçamento Geral do Estado apresenta um excedente, a dívida pública desceu assinalavelmente, para um valor próximo dos 60% do PIB. A economia voltou a crescer na órbita dos 3% em 2022, prevendo-se um aumento de 2,7% em 2023. Entretanto, o petróleo continua em alta, a 86,27 o barril/Brent (25-01-2023).

Portanto, aqueles que se podem considerar os “fundamentais” da economia angolana encontram-se saudáveis, depois de uma longa penúria começada em 2015/2016.

No entanto, o investimento internacional que devia fluir para Angola ainda não é uma realidade, e a ameaça de instabilidade é latente, como demonstra a entrevista do líder da oposição Adalberto da Costa Júnior a um jornal português[1] na passada semana, não reconhecendo resultados eleitorais, tribunais e, pelo que se apreende qualquer instituição do Estado; na prática, assumindo como possível uma tomada de poder pela força.

Consequentemente, temos um trabalho de estabilização económica meritório que por razões políticas, e também aquelas que Keynes denominava “animal spirits” (emoções que determinam o comportamento humano), não produz os efeitos desejados e descritos habitualmente nos manuais de economia.

Ora, é precisamente esta necessidade de deslanchar do “animal spirit” que não se move na economia angolana e as ameaças de instabilidade política que originam a premência da discussão de uma nova constituição para Angola.

É sabido que a constituição angolana aprovada em 2010 não é consensual e foi desenhada numa alfaiataria jurídica tendo em conta a figura de José Eduardo dos Santos, introduzindo, aquilo que Jorge Miranda, o famoso constitucionalista português, apelidou de “sistema de governo representativo simples, a que, configurações diversas, se reconduziram a monarquia cesarista francesa de Bonaparte, a república corporativa de Salazar segundo a Constituição de 1933, o governo militar brasileiro segundo a Constituição de 1967-1969, vários regimes autoritários africanos.”[2]

Embora tendo sofrido uma revisão num sentido mais democratizante e aberto em 2021, em que se destaca a autonomização do Banco Central e a criação de um sistema constitucional de fiscalização do poder executivo por parte do legislativo, o certo é que a génese constitucional impede sempre que esta seja um símbolo duma sociedade aberta e uma economia livre e por outro lado, não contém mecanismos de proteção constitucional à semelhança dos propostos por Karl Loewenstein e adotados na Lei básica alemã do pós-guerra. Estes mecanismos protegem a constituição de ameaças internas à própria constituição e são um elemento fundamental para a estabilidade política.

Acresce que é importante reforçar os mecanismos de defesa do investimento privado e estrangeiro. Se repararmos, o investimento privado apenas é mencionado uma vez na constituição no artigo 38.º, e a história de oportunismo e verdadeiros “roubos” de investidores estrangeiros em Angola foi uma realidade que obriga a uma especial atenção normativa. Também as disposições sobre a terra (artigo 15.º) têm de ser atualizadas e racionalizadas, bem como a garantia da justiça com julgamentos rápidos e imparciais.

A justiça é reconhecidamente um dos aspetos essenciais de um bom funcionamento da economia, esperando-se decisões previsíveis e em tempo útil. Não existem dúvidas que o sistema judicial angolano necessita de um grande “aggiornamento” que seria introduzido por uma nova constituição.

Numa mera perspetiva económica, vê-se assim que uma nova constituição seria um sinal, um símbolo de um novo tempo que atrairia investidores e daria esperanças de estabilidade política e legal.

Como se mencionou no início, uma nova constituição não resolve todos os problemas, o seu papel é de anúncio de uma nova época aberta ao investimento, à economia de mercado e ao progresso e desenvolvimento do país. Seria o culminar das reformas económicas encetadas recentemente.


[1] Adalberto da Costa Júnior, 2023, Nascer do Sol, https://sol.sapo.pt/artigo/790625/houve-muita-pressao-para-tomar-as-instituicoes

[2] Jorge Miranda, A Constituição de Angola de 2010, CJP-CIDP, p. 42

Gabinete de Estudos CEDESA