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O sistema eleitoral das Autarquias Locais em Angola e a inclusão do Poder Tradicional

Rui Verde

Nota prévia:

Tendo sido convidado e aceite participar no 1.º Congresso Angolano de Direito Eleitoral, realizado a 7 e 8 de Dezembro de 2023, por motivos técnicos não consegui apresentar a minha comunicação online. Fica aqui o texto da apresentação.

Especificidade da eleição local

Um sistema eleitoral local não tem necessariamente de replicar o sistema nacional. Apesar de em ambos os casos estarmos perante a escolha de representantes em processos democráticos, a natureza das eleições e dos órgãos é algo diferenciada.

Em muitos países, a taxa de abstenção nas eleições autárquicas é maior do que em eleições nacionais[1], além disso a governação local está dedicada a questões muitas vezes diferentes dos temas nacionais. Até certo ponto, embora isso seja disputável, sobretudo em países politicamente polarizados como Angola, entende-se que a política local será essencialmente não-ideológica. Nos Estados Unidos, durante muitos anos, os académicos argumentaram que havia pouca diferença entre as políticas dos responsáveis eleitos localmente pelos partidos Democrata ou Republicano porque a maioria das questões políticas locais eram técnicas e não políticas. Como escreveu Adrian, “não existe uma forma republicana de pavimentar uma rua e nenhuma forma democrática de instalar um esgoto.”[2] Há que referir, também, que a questão da representação das várias minorias e interesses se coloca com especial acuidade a nível local.[3]

É esta diferenciação estruturante que serve de ponto de partida para um curto comentário acerca do presente sistema eleitoral previsto para as Autarquias Locais em Angola, abordando dois temas em concreto. Em primeiro lugar, proceder-se-á a uma descrição sumária do actual modelo constitucional-legal de eleição autárquica, em segundo lugar, a uma breve reflexão sobre o papel do poder tradicional, atendendo à pressão demográfica indesmentível em Angola.

O poder local na Constituição

A sede primeira sobre o poder local no ordenamento jurídico angolano é a Constituição (CRA) que dispõe sobre o tema nos artigos 213.º e seguintes.

Aí se determina que as “ formas organizativas do Poder Local compreendem as Autarquias Locais, as instituições do Poder Tradicional” (art.º 213, n.º 2) e que as Autarquias Locais “ têm, de entre outras e nos termos da lei, atribuições nos domínios da educação, saúde, energias, águas, equipamento rural e urbano, património, cultura e ciência, transportes e comunicações, tempos livres e desportos, habitação, acção social, protecção civil, ambiente e saneamento básico, defesa do consumidor, promoção do desenvolvimento económico e social, ordenamento do território, polícia municipal, cooperação descentralizada e geminação.” (art.º 219.º), prevendo-se vários órgãos como uma “Assembleia dotada de poderes deliberativos, um Órgão Executivo Colegial e um Presidente da Autarquia” (art.º 220.º, n.º 1).

Em termos de sistema eleitoral, a Constituição estabelece que a “Assembleia é composta por representantes locais, eleitos por sufrágio universal, igual, livre, directo, secreto e periódico dos cidadãos eleitores na área da respectiva autarquia, segundo o sistema de representação proporcional.” (art.º 220,n.º 2), o “Órgão Executivo Colegial é constituído pelo seu Presidente e por Secretários por si nomeados, todos responsáveis perante a Assembleia da Autarquia.” (art.º 220, n.º 3) e o Presidente do Órgão Executivo da Autarquia é o cabeça da lista mais votada para a Assembleia. (art.º 220, n.º 4). Finalmente, no artigo 220, n.º 5 é definido que as “candidaturas para as eleições dos Órgãos das Autarquias podem ser apresentadas por partidos políticos, isoladamente ou em coligação, ou por grupos de cidadãos eleitores, nos termos da lei.”

Acerca das instituições do poder tradicional, a Constituição reconhece-as nos seus artigos 223.º e seguintes, remetendo para o direito consuetudinário a sua designação, e para a lei a sua articulação com as Autarquias Locais (art.º 225.º).

Consequentemente, existem, de acordo com a Constituição duas formas de Poder Local, as Autarquias Locais e o poder tradicional, cuja relação não é estabelecida na lei fundamental. Em relação às autarquias é desde logo definido o seu modo de eleição, o que não acontece, naturalmente, com o poder tradicional.

O sistema eleitoral das Autarquias Locais

Para a descrição do sistema eleitoral previsto para as Autarquias Locais, à Constituição, deve-se juntar a Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento das Autarquias Locais (Lei n.º 27/19 de 25 de Setembro), bem como a Lei Orgânica sobre as Eleições Autárquicas (Lei n.º 3/20, de 27 de Janeiro), a que nos ateremos nesta descrição.

Como mencionado, temos a considerar três órgãos nas autarquias: a assembleia, o executivo e o presidente. Atentando, ao município, a autarquia por excelência (artigo 218.º da CRA), verificamos que destes órgãos apenas dois, a assembleia e o presidente são eleitos. O executivo é designado pelo presidente da câmara. Na verdade, dispõe o artigo 29, n.º 2 da Lei de Organização e Funcionamento das Autarquias, que a Câmara Municipal (o executivo) é composta por Secretários nomeados pelo Presidente da Câmara, embora responsáveis perante a Assembleia Municipal. A exoneração de Secretários compete ao Presidente da Câmara (artigo art.º 31, n.º 1, b).

Assim, nos municípios há dois órgãos electivos e é sobre eles que nos debruçaremos. Trata-se da Assembleia Municipal e do Presidente da Câmara.

Os membros dos órgãos electivos são eleitos por sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico pelos cidadãos residentes na circunscrição local (artigo 15.º da Lei das Eleições Autárquicas-LEA). O artigo mais relevante da LEA é o artigo 40.º que define o modelo electivo em lista única para a Assembleia e a Presidência da Câmara, replicando o modelo constitucional nacional que tanta polémica tem levantado. De facto, nos termos desse normativo haverá apenas uma lista. Estabelece o artigo 40.º da LEA que as candidaturas a Presidente da Câmara são apresentadas no quadro da apresentação das listas de candidatos a membros da Assembleia da Autarquia Local (art.º 40, n.º1), sendo que o candidato a Presidente da Câmara é aquele que surgirá em primeiro lugar na lista de candidatos a membro da Assembleia (art.º 41, nº 2). Nestes termos em cada Boletim de Voto será impresso o nome quer do Partido, Coligação ou Grupo de Cidadãos concorrentes, quer o nome do candidato a Presidente da Câmara e respectiva fotografia tipo-passe, a sigla e os símbolos da candidatura (artigo 17.º da LEA). Será eleito Presidente da Câmara aquele que estiver na lista que obtiver o maior número de votos, ainda que não a maioria absoluta, ficando com o direito a nomear todo o executivo (artigo 21.º da LEA). Os membros da Assembleia Municipal são eleitos segundo o sistema de representação proporcional, seguindo-se o método de Hondt para conversão dos votos em mandatos de acordo com as regras do artigo 29.º da LEA.

Refira-se que este sistema electivo, bem como as regras atinentes ao Boletim de Voto já foram sufragadas constitucionalmente pelo Acórdão n.º 111/2010 do Tribunal Constitucional quando apreciou o texto que ficou denominado como Constituição de 2010.

Temos assim um misto de sistema maioritário de uma volta que elege o Presidente da Câmara com o sistema proporcional que determina a composição da Assembleia Municipal.

Alegar-se-á em sua defesa que ao mesmo tempo garante a eficiência do governo (sistema maioritário de uma volta) com uma ampla democracia (sistema proporcional para a constituição da Assembleia).

Mas, também se poderá dizer que mantém o “defeito” de uma eleição não totalmente directa do Presidente, que muitos criticam na CRA com referência à eleição do Presidente da República.

Também para aqueles que gostam da comparatística portuguesa, se referirá que não segue o modelo português em que a eleição do Presidente da Câmara é separada da eleição da Assembleia Municipal, podendo um partido ganhar a Presidência e perder a Assembleia como acontece neste momento em Lisboa, além de qua o executivo (Vereação) é formado de acordo com os resultados eleitorais, dependendo da vontade presidencial apenas a distribuição ou não de pelouros[4].

Neste aspecto, o modelo português poderia ser pedagógico, pois ensinaria os diversos partidos, habitualmente polarizados, a entrar em acordos de governo local, o que constituiria uma base de bom espírito democrático de diálogo e tolerância.

Como referência inovadora, há que mencionar que grupos de cidadãos eleitores podem sem qualquer autorização apresentar-se às eleições autárquicas (art. 44.º da LEA) desde que sejam em número mínimo de 150 cidadãos eleitores na respectiva circunscrição (art.º 48, n.º 1 da LEA).

Poder tradicional e expansão demográfica

É um facto que a demografia angolana tem sofrido uma explosão. “Entre 1960 e 2020, a população de Angola cresceu 6,2 vezes, chegando a mais de 30 milhões de habitantes, um aumento mais expressivo do que o que se observou nos países da África Subsaariana (5,1x) e do que noutras regiões, como o Leste Asiático (2,3x) e a América Latina (2,9x).”[5]

É evidente que este número de habitantes não é consentâneo com o actual número de municípios angolanos, 164. Basta lembrar que Portugal, com 10 milhões de habitantes, conta com 308 municípios.

Se é um facto que o número actual de municípios em Angola não corresponde às necessidades reais da população, também é facto que a ideia de aumentar o número dos 164 para 581 é absurdamente impossível, quer por razões financeiras, quer por razões administrativas e burocráticas.[6]

Há assim que procurar respostas inovadoras, possíveis e constitucionais. É neste sentido, que tem relevo a sistemática constitucional ao colocar as instituições do poder tradicional no título referente ao poder local, onde também estão inseridas as autarquias locais. Aliás, o mesmo acontece com a Lei Orgânica do Poder Local, Lei n.º 15/17 de 8 de Agosto, que versa sobre as Autarquias Locais e as Instituições do Poder Tradicional.

A sistemática constitucional e legal esboça um início de resposta à questão que colocámos acima. À sistemática temos de adicionar algumas considerações acerca do actual paradigma do Direito. Não podemos pensar o Direito ainda nos termos dos quadros racionais positivos dos séculos XVIII e XIX que aplicam uma única ementa a toda a regulação da vida social. Não aprofundando o tema aqui, temos de considerar o Direito como um sistema aberto[7]que permita várias intersecções materiais e contributos e não apenas um positivismo fechado, único e redutor. É neste contexto, que é importante permitir que as instituições do poder tradicional assumam a função de autarquia local onde estas não existam e sejam necessárias.

A realidade imporá que existam dois tipos de Autarquias Locais vigentes, aquelas que serão reguladas pelo direito positivo e aquelas derivadas do direito consuetudinário e reguladas pelo costume, aceitando-se uma pluralidade de regimes, legal e costumeiro[8], com vista à efectiva implantação dum poder local descentralizado e próximo da população, aceitando-se a “presença de mais do que uma ordem normativa num campo social.”[9]

Trata-se no fundo de concretizar um desiderato sistemático da Constituição que ao colocar quer as Autarquias Locais formais, quer as Instituições do Poder Local na égide do Poder Local, não comete um erro, como afirmam alguns, mas abre pistas para a consideração dum verdadeiro pluralismo jurídico em Angola que funcionará como solucionador de problemas ligados à eficácia da máquina estatal.


[1] Anzia SF. 2013. Timing and Turnout: How Off-Cycle Elections Favor Organized Groups. Chicago: Univ. Chicago Press ou Hajnal ZL. 2009. America’s Uneven Democracy: Race, Turnout, and Representation in City Politics. Cambridge, UK: Cambridge Univ. Press.

[2] Adrian CR. 1952. Some general characteristics of nonpartisan elections. Am. Political Sci. Rev. 46: 766–786, p. 766.

[3] Abott, Carolyn, and Asya Magazinnik. “At-Large Elections and Minority Representation in Local Government.” American Journal of Political Science 64, no. 3 (2020): 717–33.

[4]  Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro

[5] Grupo de Estudos Económicos (2023), Transição demográfica em Angola: ónus ou bónus? MakaAngola, https://www.makaangola.org/2023/07/transicao-demografica-em-angola-onus-ou-bonus/

[6] Verde, Rui, (2022), O “(ir)racional” dos 581 municípios, MakaAngola, https://www.makaangola.org/?s=munic%C3%ADpios

[7] Viehweg, T. Topik und Jurisprudenz, 1954; Perelman, Ch. Das Reich der Rhetorik; Rhetorik und Argumentation, 1980

[8] Cfr. Feijó, Carlos, A coexistência normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem

Jurídica Plural Angolana, Coimbra, Almedina, 2012.

[9] Fernandes, T. 2009. O poder local em Moçambique. Descentralização, pluralismo jurídico e legitimação. Porto, Edições Afrontamento, p. 40

Angola: A legislatura do emprego

Resultados eleitorais e desemprego

As recentes eleições angolanas ocorridas a 24 de agosto de 2022 foram objeto de intenso escrutínio por parte da opinião pública angolana e internacional. Curiosamente uma boa parte da atenção foi dedicada a assuntos de índole política e/ou jurídica. Falou-se muito de tribunais, processos eleitorais, aplicação da lei, contagem de votos, alternância e mesmo revisão constitucional.

No entanto, os inquéritos qualitativos que um nosso parceiro executou durante o período eleitoral não apontaram essas como as principais preocupações dos angolanos, mas sim aquelas ligadas à economia, designadamente ao emprego e desemprego. O que os angolanos parecem pedir acima de tudo é emprego e boas condições de vida.

Consequentemente, a questão do desemprego é daquelas que mais importância tem na atividade do executivo que agora tomou posse.

Neste momento, os dados mais atuais apontam para uma taxa de desemprego geral de 30,2% (dados do Instituto Nacional de Estatística referentes ao II trimestre de 2022) e a taxa de desemprego jovem (15-24 anos) situar-se-á nos 56,7%[1]. A população desempregada com mais de 15 anos na totalidade do país está calculada em 4 913 481 de pessoas, enquanto os jovens de 15-24 desempregados serão 3 109 296.

Fonte: Instituto Nacional de Estatística de Angola

Mesmo que se duvidem das estatísticas e considerando o peso muito grande da economia informal, o que dificulta os cálculos, a realidade é que a taxa de desemprego é demasiado elevada. Aliás, é quase certo que a elevada taxa de desemprego juvenil contribuiu manifestamente para a derrota do MPLA em Luanda.

O desemprego é um dos mais graves e importantes problemas políticos, económicos e sociais de Angola.

Política de emprego do governo

A política do governo relativamente ao desemprego tem sido essencialmente passiva, embora acompanhada por alguns programas concretos.

Essencialmente, o governo espera que o esforço de estabilização macroeconómica (equilíbrio orçamental, controlo contas públicas, liberalização taxa de câmbio, etc) se traduzam num incentivo ao investimento privado que por sua vez fará aumentar o emprego.

O discurso de investidura do Presidente da República reafirmou essa aproximação quando afirmou que “Continuaremos a trabalhar em políticas e boas práticas para incentivar e promover o sector privado da economia, para aumentar a oferta de bens e serviços de produção nacional, aumentar as exportações e criar cada vez mais postos de trabalho para os angolanos, sobretudo para os mais jovens”[2] (ênfase nosso).

O ministro de Estado para a Coordenação Económica, agora reconduzido, já tinha apontado este rumo quando ao referir-se ao desemprego e aos programas públicos de promoção de emprego, não os menciona concretamente, mas foca-se nos aspetos macroeconómicos. No início de setembro, Nunes Júnior avançava que estava confiante na redução do desemprego assente no sector privado, afirmando ter o governo conseguido “colocar o país no crescimento económico conferindo estabilidade cambial e nas reservas internacionais líquidas” e colocado “o país na rota do equilíbrio económico, da estabilidade cambial e das reservas internacionais”[3].

Não se contestam os sucessos do governo na área da estabilização das finanças públicas e política cambial, o que se duvida é da crença que o sector privado angolano tem capacidade imediata para resolver a questão do desemprego.

Na base desta política não interventiva na correção do desemprego excessivo está o modelo neoclássico que resume a essência de toda a atividade económica à interação livre entre oferta e procura mediada pela flexibilidade do preço. O modelo neoclássico tem uma relevância válida em muitas áreas da análise económica, mas certamente não será aplicável linearmente no mercado de trabalho[4] e ainda menos em Angola.

O governo continua a acreditar que basta criar as condições adequadas de enquadramento financeiro e cambial e o emprego aparece movido pelo sector privado.

Isto seria assim se Angola fosse uma economia de mercado livre com o sector privado forte e capitalizado. Angola não é nada disso. É uma economia que começou por um processo de destruição e sovietização após a independência em 1975 e cuja “liberalização” após 1992-2002, foi falsa, ou melhor, foi pós-soviética, imitando a mãe-Rússia: Alguns oligarcas ligados ao poder aproveitaram-se das privatizações e supostos mercados livres para rapidamente de “braço dado” com o poder político tomarem posições dominantes. Aliás, nunca houve verdadeiros empresários, mas essencialmente políticos empresários. E nunca existiu sector privado, mas sector de amigos do poder. Esta realidade não tem força para promover o emprego como quer o ministro.

Fazer depender, em Angola, a recuperação do emprego e o combate ao desemprego apenas do sector privado é impossível.

Há duas ordens de razões pelas quais a política contra o desemprego apenas assente no sector privado.

Em primeiro lugar o funcionamento do mercado. Regra geral o mercado de trabalho não funciona como um mercado livre obedecendo às regras da oferta e procura definidas pelo modelo económico neoclássico que parece sustentar a filosofia governamental, o comportamento do mercado de trabalho é tendencialmente rígido, dificilmente se baixam salários ou se despedem pessoas sem tumulto social e constrangimentos legais.

Em termos técnicos diz-se que o mercado de trabalho opera como um mercado sem compensação (non-clearing market)[5]. Enquanto de acordo com a teoria neoclássica a maioria dos mercados atinge rapidamente um ponto de equilíbrio sem excesso de oferta ou procura, isso não é verdade para o mercado de trabalho: pode haver um nível persistente de desemprego. A comparação do mercado de trabalho com outros mercados também revela diferenciais compensatórios persistentes entre trabalhadores similares.

Keynes no âmbito da crise dos anos 1930s estudou bem o assunto e concluiu que a economia poderia entrar em equilíbrios de subemprego, isto quer dizer que pode atingir um nível em que nunca vai empregar todos os potenciais trabalhadores e não sair daí sem a intervenção de uma “mão visível” que seria o Estado[6].

A segunda razão é a magnitude do desemprego em Angola. Uma coisa é esperar que o sector privado contrate pessoas quando o desemprego está a 10% e se pretende que desça para 6%.

É possível que um crescimento económico automaticamente aumente o emprego. A famosa lei de Okun[7], mesmo sendo imprecisa, diz-nos que uma subida de 2% do produto (PIB) implica uma descida de 1% do desemprego. Assim, se o PIB de Angola aumentasse 4% em 2023, o desemprego apenas desceria 2%, i.e., para 28%. Manifestamente insuficiente.

   Explicitação da Lei de Okun

Portanto, há aqui um problema para as teorias económicas em que o governo assenta a sua política. Para descer o desemprego para níveis aceitáveis, por exemplo 8%, seriam precisos 11 anos com um crescimento médio de 4% ao ano. Só em 2033 o desemprego estaria a um nível satisfatório para o bem-estar da população.

Exemplificação do necessário para alcançar uma taxa de Desemprego de 8% sem intervenção do Estado

Políticas alternativas e complementares

É possível que esta realidade tenha sido o que levou a recém-empossada ministra de Estado para a área social, Dalva Ringote, a anunciar a “redinamização” de vários programas sociais do governo. Embora não se tendo especificamente referido ao desemprego, presume-se que programas de formação, educação ao longo da vida e combate à pobreza estejam incluídos no portefólio das preocupações da ministra e comece a haver alguma inflexão na ortodoxia passiva do combate ao desemprego[8].

É evidente que não há milagres, mas tem de haver um esforço do governo para idealizar uma política de emprego mais ativa que suplemente o sector privado e o previsto crescimento económico.

Essencialmente essa política assentaria em três pilares:

PLANO DE EMPREGO

  1. a contratação de quadros para o Estado para a cobertura das necessidades fundamentais em educação, saúde e solidariedade social. Aqui o foco seria a contratação de quadros licenciados para ocupar posições de capital humano que reproduzissem o bem-estar social;
  2. O subsídio às empresas privadas para procederem à contratação de trabalhadores a contrato, dando preferência a angolanos;
  3. O lançamento de programas vastos de formação profissional de não-licenciados para os dotar de qualificações práticas na agricultura e nos ofícios variados.

Para financiar estes programas massivos de luta contra o desemprego ter-se-ia, em parte, de contar com os fundos superavitários do orçamento e noutra parte com as famosas recuperações de ativos do combate contra a corrupção.         

Não permaneçam dúvidas que muito do futuro do governo assenta naquilo que for feito na área do emprego. Esta terá mesmo de ser a legislatura do emprego


[1]INEAngola:https://www.ine.gov.ao/Arquivos/arquivosCarregados//Carregados/Publicacao_637961905091063045.pdf

[2] Presidência da República de Angola. Discurso de Investidura, 15-09-2022, in https://www.facebook.com/PresidedaRepublica

[3] https://correiokianda.info/governo-cria-programas-para-reducao-de-desemprego-no-pais/

[4] Ver uma descrição equilibrada do tema em Dagmar Brožová, Modern labour economics: the neoclassical paradigm with institutional content, Procedia Economics and Finance 30 ( 2015 ) 50 – 56.

[5] Ver por exemplo: Willi Semmler & Gang Gong, (2009), Macroeconomics with Non-Clearing Labor Market, https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.587.8716&rep=rep1&type=pdf

[6] A melhor explicação continua a ser a de Paul Samuelson & William Nordhaus, Economics, 2019 (20 ed).

[7] Ver nota anterior.

[8] https://www.verangola.net/va/pt/092022/Politica/32628/Dalva-Ringote-anuncia-%E2%80%9Credinamiza%C3%A7%C3%A3o%E2%80%9D-dos-programas-de-combate-%C3%A0-pobreza-e-seca.htm

Eleições em Angola: sondagens e previsões de resultados

1-As sondagens eleitorais em Angola

Há um facto indesmentível. As presentes eleições angolanas marcadas para o próximo dia 24 de Agosto são as mais disputadas de sempre do pós-guerra civil (2002[1]). Nunca uma discussão foi tão renhida e a intensidade dos argumentos e incerteza tão debatida.

Apesar de alguma crispação e, por vezes, retórica incendiária, este contexto eleitoral representa um avanço significativo da luta democrática, que se espera que não extravase para outras formas de luta.

Um dos aspectos inovadores que tem surgido nestas eleições é a pluralidade de sondagens. Tanto quanto a memória e os arquivos permitem apurar, a existência de sondagens não era um facto habitual nas anteriores eleições angolanas.

Na verdade, em 2017, apenas surgiu uma referência a uma suposta sondagem efectuada pela empresa brasileira Sensus, Pesquisa e Consultoria. A existência dessa sondagem nunca foi confirmada, mas na altura fontes revelavam que essa entidade teria apurado que o MPLA ganharia apenas 38 por cento dos votos. A UNITA obteria 32 por cento das intenções de voto, enquanto a CASA-CE surgiria colada à UNITA, com 26 por cento. Daqui resultaria que a maioria na Assembleia Nacional seria da oposição.[2]

O certo é que esta sondagem nunca foi confirmada e os resultados finais foram bem diferentes. Como se sabe, o MPLA teve 61.05%, enquanto a UNITA e a CASA-CE alcançaram 26.72% e 9.49% dos votos, bem longe do que aquilo que a suposta sondagem afirmava.

2-As sondagens nas eleições de 2022

Se as eleições de 2017 giraram à volta duma sondagem-fantasma que nada teve a ver com a realidade final, em 2022, aparecem sondagens públicas não desmentidas, embora combatidas pelas forças que não gostam dos resultados.

É sobre essas sondagens e a possibilidade de se conseguir prever um resultado final com base nelas que se debruça esta análise.

Seguimos a identificação de sondagens realizada por um canal de cabo português[3] e consideramos cinco sondagens publicadas. São elas:

-Afrobarometer (https://www.afrobarometer.org/)

-Angobarometro (https://www.angobarometro.com/)

-Angopolls (https://angopolls.org/)

-Mudei (https://jikuangola.org/inqueritos/index.html)

-POBBrasil (https://pobbrasil.com/)

Todas estas entidades têm o seu site e apresentam os resultados publicamente.

Não ignoramos que existem várias polémicas à volta de algumas destas entidades, contudo, optámos por nos basear nas fichas técnicas de cada uma das sondagens e na boa-fé dos intervenientes. Vamos olhar para a mensagem e não “matar o mensageiro”.

Na realidade, com a excepção da Afrobarometer, todas as restantes entidades são razoavelmente recentes e parecem estar vocacionadas para as presentes eleições angolanas, contendo profissionais provenientes de outras empresas ou organizações. Isso é um sinal de vivacidade democrática e por isso não merece crítica. O certo é que estas entidades depois do primeiro ensaio que são estas eleições em Angola se irão aperfeiçoar a contribuir para o discurso democrático em Angola.

Olhando para as fichas técnicas de cada uma das sondagens e resultados vamos proceder a uma aferição dos resultados seguindo dois critérios, o da fiabilidade do método e da distribuição normal gaussiana.

Em primeiro lugar, o tipo de inquérito realizado. Pelas fichas técnicas e afirmações dos responsáveis concluímos que o Mudei e a Afrobarometer fazem inquéritos de rua aleatórios baseados em premissas que especificam nas suas páginas de metodologia. Por sua vez a Angopolls e POBBrasil realizam inquéritos telefónicos segundo uma selecção computadorizada aleatória. Já a Angobarometro efectua sondagens online.

Entendemos que os inquéritos online não são fiáveis pois beneficiam dum “efeito vizinhança”, isto é, há uma tendência de chamar os amigos e pessoas que pensam da mesma forma para visitar o site. Portanto, se um site é tido como mais próximo da UNITA chamará mais pessoas da UNITA, havendo um enviesamento a seu favor, o mesmo acontecendo se o site é do MPLA. Nessa medida, acreditamos que as sondagens online demostram a capacidade de mobilização de um partido, mas não as intenções de voto de uma amostra aleatória da população.

Retiramos, assim, a Angobarometro desta apreciação.

Em relação às quatro restantes, procedemos a uma distribuição gaussiana eliminando os extremos e mantendo a distribuição padrão-normal. Nesta medida não consideraremos a sondagem POBBrasil que dá uma vitória extrema ao MPLA, como a Mudei que dá uma vitória extrema à UNITA.

3-Sondagens-padrão

Ficam duas sondagens que nos parecem as mais padronizadas: Afrobarometer e Angopolls.

A ficha técnica da Afrobarometer revela que: “A equipa do Afrobarometer em Angola, liderada pela Ovilongwa – Estudos de Opinião Pública, entrevistou 1.200 Angolanos adultos, entre 9 de Fevereiro e 8 de Março de 2022. Uma amostra deste tamanho produz resultados nacionais com uma margem de erro de +/- 3 pontos percentuais e um nível de confiança de 95%. A pesquisa anterior em Angola foi realizada em 2019”.

Os resultados alcançados são apresentados no quadro abaixo:

Quadro n.º 1- Resultados Afrobarometer

A Angopolls realizou vários inquéritos desde Dezembro de 2021.Vamos focar-nos no último da sequência publicado, “VII – SONDAGEM ELEIÇÕES GERAIS. JULHO 2022”. A sua ficha técnica refere que: “A sondagem foi feita telefonicamente. Foram obtidos 5040 inquéritos válidos, sendo que 21,03% dos inquiridos eram do sexo feminino.”

Os resultados obtidos foram os seguintes:

Quadro n.º 2: Resultados Angopolls

¹Não contabilizando indecisos e abstenções.

A página da Angopolls também contém um gráfico curioso com a apresentação da evolução dos resultados ao longos dos vários meses:

Quadro n.º 3- Tendências de voto segundo Angopolls

Numa primeira análise parceria que as sondagens Afrobarometer e Angopolls dão resultados diferentes. De facto, a apresentação da Afrobarometer atribui 29% ao MPLA e 22% à UNITA, enquanto a da Angopolls refere uma percentagem de 60,15% para o MPLA e 39,85% para UNITA. Afigura-se uma diferença muito grande entre as duas sondagens.

Contudo, uma análise mais fina revela que não é assim.

No final de contas, na sua essência, as duas entidades chegaram a resultados muito semelhantes: o MPLA ganha e a UNITA reforça, e mesmo em percentagens a diferença não é muito significativa. A explicação para a aparente diferença que não existe está nos métodos de apresentação dos resultados e não nos resultados propriamente ditos.

Se repararmos a Angopolls retira da sua apresentação os Não Respondentes (abstencionistas, indecisos sobre se iriam votar, etc), enquanto a Afrobarometer não faz isso. Note-se que mantêm 46% de Não sabe, Não Vota, Recusou.

Ora se aplicarmos o mesmo critério para ambas as sondagens, isto é, retirando os Não Sabe, Não Vota, Recusou, os chamados não respondentes teremos uma significativa aproximação entre as duas sondagens que se espelha no quadro abaixo:

Quadro n.º 4: Resultados comparados Afrobarometer e Angopolls seguindo o mesmo método de apresentação

 Afrobarometer[4]Angopolls
MPLA54%60,15%
UNITA41%39,85%
OUTROS  4%0%

É evidente que outro método para considerar os não respondentes é imputá-los segundo critérios históricos (isto é, considerando o sentido de voto em anteriores eleições) às forças partidárias ou então pode-se entrar em exercícios especulativos variados.

Conclusões

O que resulta da análise que fazemos das sondagens é que a previsibilidade normal aponta para uma vitória do MPLA numa percentagem que oscila entre os 54% e os 61% e um substancial reforço da UNITA para 40%, havendo uma diminuição acentuada dos outros partidos, aquilo a que se chama em ciência política uma bipolarização.

Note-se, contudo, que atendendo à percentagem de Não Respondentes, estes números não são fixos e definitivos. São uma fotografia em dado momento, mas tudo pode mudar.

Portanto, as sondagens dão algumas indicações, marcam tendências, mas não dão certezas. Como se referiu no início deste trabalho, esta é uma área da democracia que só agora começa a ser explorada, portanto, não se podem esperar respostas definitivas, mas apenas observações mutáveis.


[1] Não se inclui nesta análise qualquer referência às eleições de 1992, por terem sido conduzidas num contexto historicamente muito diferente.

[2] https://www.makaangola.org/2017/08/sondagem-eleitoral-mpla-fica-atras-da-oposicao/

[3] CNN.pt

[4] Devido aos arredondamentos não soma 100%

Teorias da fraude eleitoral, legislação e escrutínio público em Angola

As imagéticas da fraude eleitoral em Angola

O ponto de partida para este estudo é a afirmação de uma conceituada investigadora durante o II Congresso Internacional de Angolanística segundo a qual as “próximas eleições em Angola deverão ser as menos transparentes e credíveis.”[1]

Recorde-se que Angola teve as suas primeiras eleições em 1992, após o que existiu um recrudescimento da guerra civil que terminou em 2002, e apenas voltou a ter eleições em 2008, a que se seguiram atos eleitorais em 2012 e 2017. Houve, portanto, até ao momento, quatro processos eleitorais em Angola.

As próximas eleições estão previstas para 24 de Agosto de 2022.

Em todas as eleições cuja contagem chegou ao final, o MPLA, partido no governo desde a independência em 1975 saiu vencedor com os seguintes resultados: 1992- 53.74%; 2008- 81,76%; 2012-71.84%; 2017-61.05%.

Quadro n. º1- Vencedor das eleições em Angola (1992-2017)

1992MPLA53,74%
2008MPLA81,76%
2012MPLA71,84%
2017MPLA61,05%

O interessante é que em todas as eleições, mesmo as de 1992[2], que tiveram ampla cobertura internacional e contaram com mais de 400 observadores estrangeiros, o principal partido da oposição alegou fraude.

Em 1992, dessas alegações resultou a renovação da guerra civil e um massacre e violência indisfarçáveis. Na verdade, a resolução da contenda só teve lugar com a morte do líder da oposição e o fim da guerra em 2002. Nas outras eleições acabou por haver aceitação final dos resultados e integração no funcionamento constitucional-legal.

Em 2008, estiveram presentes 90 observadores da União Europeia, e a vitória do MPLA foi esmagadora. Estava-se, aliás, na época do boom petrolífero. Mesmo assim a oposição clamou fraude, e exigiu a repetição das eleições devido aos atrasos que marcaram o processo, descrito pelo líder da oposição como “um desastre”, com inúmeras demoras por todo o país. Em todo o caso, apesar destes protestos, as eleições acabaram por ser aceites e os deputados tomaram os seus lugares. Desta vez não houve guerra e iniciou-se uma certa democratização da vida pública.

2012 foi novamente ano de eleições, e novamente, houve denúncia de irregularidades, mas sem a vocalidade do passado. A oposição tomou os seus lugares no parlamento e desempenhou o seu papel.

No ano de 2017, A União Africana enviou observadores para as eleições, com o objetivo de garantir as eleições democráticas, mas a União Europeia decidiu não mandar uma grande equipa de observadores. A oposição contestou os resultados, mas acabou por os aceitar após decisões do Tribunal Constitucional que validaram as eleições.

Há padrões que se repetem. Os dois primeiros são óbvios, a vitória do MPLA e a contestação permanente do processo pela oposição. Também se verifica intervenção de observadores externos, por exemplo 400 em 1992.

Apesar das acusações repetidas de fraude por parte dos candidatos derrotados, o certo, é que com a exceção de 1992, sempre acabaram por aceitar os resultados e tomar os seus lugares na Assembleia Nacional.

Comparações: Transparência e democraticidade em 2022

A questão que vamos responder é se as presentes eleições, marcadas para 24 de agosto de 2022, representam um decréscimo das condições eleitorais do passado, como afirmam alguns investigadores, ou se pelo contrário, mesmo não sendo perfeitas, apresentam uma manifesta evolução em termos de transparência e democraticidade.

Para avaliarmos as condições iremos proceder a uma revisão da legislação em vigor, bem como às características do atual escrutínio público face ao passado, pois acreditamos que este é o mecanismo crítico realista para aferir a transparência das eleições.

Legislação

Sobre a legislação em vigor há alguns aspetos a enfatizar, muitos dos quais têm sido alvo de equívocos ou interpretações pouco literais. As eleições estão agora reguladas pela Lei n.º 30/21 de 30 de dezembro, que alterou a Lei n.º 36/11, de 21 de dezembro — lei orgânica sobre as eleições gerais (LOEG). Na atual legislação temos de destacar os seguintes tópicos que se debruçam sobre o processo eleitoral:

i) Condições básicas: manifestação, direito de antena e financiamento

No período da campanha eleitoral, a liberdade de reunião e de manifestação para fins eleitorais rege-se pelo disposto na lei geral aplicável ao exercício das liberdades de reunião e de manifestação, com as seguintes especificidades (artigo 66.º da LOEG):

a) Os cortejos e desfiles podem realizar-se em qualquer dia e hora, respeitando-se apenas os limites impostos pela liberdade de trabalho, pela manutenção da tranquilidade e ordem públicas, pela liberdade e ordenamento do trânsito, bem como pelo respeito do período de descanso dos cidadãos.

b) A presença de agentes da autoridade pública em reuniões e manifestações organizadas por qualquer candidatura apenas pode ser solicitada pelos órgãos competentes das candidaturas, ficando a entidade organizadora responsável pela manutenção da ordem quando não faça tal pedido.

c)A comunicação à autoridade administrativa competente da área sobre a intenção de se promover uma reunião ou manifestação é feita com antecedência mínima de 24 horas.

O que resulta da lei é uma ampla possibilidade de manifestação, não havendo condicionalismos nem obstáculos assinaláveis.

Note-se aliás, que no período de pré-campanha já têm ocorrido grandes manifestações sem incidentes, quer por parte do partido do governo, quer por parte da oposição.

O líder da oposição tem-se deslocado livremente no território de norte a sul, concretamente, de Cabinda a Menongue e realizado grandes atos de massas, sem qualquer impedimento ou confronto. Este aspeto fundamental para o processo eleitoral tem estado assegurado.

Em relação ao direito de antena dispõe o artigo 73.º da LOEG que determina que as candidaturas às eleições gerais têm direito à utilização do serviço público de radiodifusão e televisão, durante o período oficial da campanha eleitoral, nos termos seguintes: a) Rádio: 10 minutos diários entre as 15 e as 22 horas; b) Televisão: 5 minutos diários entre as 18 e as 22 horas.

A lei garante aquilo que poderemos denominar como mínimos de intervenção política no período de campanha eleitoral.

Também o financiamento global de todos os partidos políticos efetuado pelo Estado está previsto e é imperativo nos termos do artigo 81.º da LOEG, que dispõe que o Estado atribuirá uma verba de apoio à campanha eleitoral das candidaturas às eleições gerais, que é distribuída de forma equitativa, podendo a mesma ser utilizada para apoio aos Delegados de Lista.

A letra da lei oferece suficientes garantias que determinados mínimos de equidade e concorrência entre partidos estão sustentados para as eleições de 2022[3].

ii) Votação e contagem dos votos

Esta é uma área em que tem havido muita discussão e talvez mal-entendidos ou interpretações erróneas. Portanto, é importante sublinhar as determinações essenciais da lei.

Em primeiro lugar, as mesas de voto, ao contrário do que se poderia pensar face a algumas análises publicadas, desempenham um papel fulcral no processo. Desde logo, o Delegado de Lista presente na Mesa de Voto pode solicitar esclarecimentos e apresentar, por escrito, reclamações relativas às operações eleitorais da mesma Mesa e instruí-los com os documentos convenientes, sendo que Mesa não pode recusar-se a receber as reclamações, devendo rubricá-las e apensá-las às atas, junto com a respetiva deliberação, cujo conhecimento será dado ao reclamante. (artigo 115.º da LOEG).

Isto quer dizer, que há uma fiscalização direta por cada um dos partidos em cada uma das Mesas de Voto. Aquilo a que poderíamos chamar uma fiscalização atomista. Cada átomo da eleição está a ser verificado.

Depois, é ainda na Mesa de Voto que se procede à abertura das urnas e contagem dos votos, também ao contrário do que tem sido afirmado.

Na verdade, encerrada a votação, o Presidente da Mesa, na presença dos restantes membros, procede à abertura da urna, seguindo-se a operação de contagem por forma a verificar a correspondência entre o número de Boletins de Voto existentes na urna e o número de eleitores que votaram naquela Mesa de Voto. (artigo 120.º da LOEG).

Em seguida, o Presidente da Mesa de Voto manda proceder à contagem dos Boletins de Voto, respeitando as seguintes regras:

a) O Presidente abre o boletim, exibe-o e faz a leitura em voz alta;

b) O primeiro escrutinador aponta os votos atribuídos a cada partido numa folha de papel branco ou, caso exista, num quadro grande;

c) O segundo escrutinador coloca em separado e por lotes, depois de os exibir, os votos já lidos correspondentes a cada um dos partidos, os votos em branco e os votos nulos;

d) O primeiro e o terceiro escrutinadores procedem à contagem dos votos e o Presidente da Mesa à divulgação do número de votos que coube a cada partido.

Terminada esta operação, bem detalhada na lei, o Presidente da Mesa de Voto procede ao confronto entre o número de votos existentes na urna e a soma do número de votos por cada lote. Os Delegados de Lista têm direito a verificar os lotes sem podendo reclamar em caso de dúvida para o Presidente da Mesa que analisa a reclamação. (artigo 121.º da LOEG).

Consequentemente, temos um ato eleitoral que é fiscalizado e os votos contados localmente em cada Mesa de Voto com a presença dos delegados de cada partido.

É isto que a lei define.

Após esta operação local, é elaborada uma ata da Mesa de Voto pelo Secretário da Mesa e devidamente assinada, com letra legível, pelo Presidente, Secretário, Escrutinadores e pelos Delegados de Lista que tenham presenciado a votação, sendo depois colocada em envelope lacrado que deve ser devidamente remetido, pela via mais rápida, à Comissão Provincial Eleitoral. (artigo 123.º da LOEG). Em sequência, compete à Comissão Nacional Eleitoral a centralização de todos os resultados obtidos e a distribuição dos mandatos (artigo 131.º da LOEG). Em síntese, o apuramento nacional é realizado com base nas atas-síntese e demais documentos e informações recebidas das Assembleias de Voto (artigo 132.º da LOEG).

Verifica-se assim que a contagem dos resultados é efetuada ao nível local, não havendo centralização da abertura de urnas nem das contagens, a centralização é realizada a posteriori, tendo como base os resultados obtidos nas Mesas de Voto.

Olhando para as disposições legais mencionadas vislumbra-se um mecanismo transparente e devidamente fiscalizado ao nível local.

A este mecanismo acresce que norma do artigo 116.º da LOEG que torna obrigatório que as tecnologias a utilizar nas atividades de escrutínio atendam aos requisitos da transparência e da segurança.

A mesma norma impõe a auditoria dos programas-fontes, dos sistemas de transmissão e tratamento de dados e dos procedimentos de controlo e torna imperativo que antes do início de cada eleição, o Plenário da Comissão Nacional Eleitoral realize uma auditoria técnica independente, especializada, por concurso público, para testar e certificar a integridade dos programas- -fontes, sistemas de transmissão e tratamento de dados e dos procedimentos de controlo a utilizar nas atividades de apuramento e escrutínio, a todos os níveis.

iii) A transparência da eleição do Presidente da República

O Boletim de Voto é impresso a cores, em papel liso e não transparente, de forma retangular com as dimensões apropriadas para que nele caibam todas as candidaturas admitidas à votação e cujo espaçamento e apresentação gráfica não induzam os eleitores em erro na identificação e sinalização exatas da candidatura por si escolhida.

Em cada Boletim de Voto são impressos o número de ordem, a designação estatutária do partido político, o nome do candidato a Presidente da República e a respetiva fotografia tipo passe, a sigla e os símbolos do partido político ou coligação de partidos políticos, dispostas verticalmente, umas abaixo das outras, pela ordem do sorteio efetuado pela Comissão Nacional Eleitoral, após a aprovação das candidaturas pelo Tribunal Constitucional (artigo 17.º da LOEG).

Isto significa que apesar do método de eleição presidencial próprio escolhido pela Constituição, o eleitor sabe manifestamente em quem está a votar para Presidente da República. Tem a face e o nome indicado.

 iv) O contencioso eleitoral

A apreciação da regularidade e da validade das eleições compete, em última instância, ao Tribunal Constitucional (artigo 6.º LOEG). Esta norma comete o Tribunal Constitucional (TC) todas as decisões finais sobre eleições, não é a Comissão Nacional Eleitoral (CNE).

Ser o TC a ter a palavra final e não a CNE é uma garantia jurisdicional acrescida. No presente momento, como veremos adiante, isso tem relevo porque o TC tem sido objeto de um grande escrutínio público, sendo-lhe mais difícil, acreditamos, tomar decisões que não tenham fundamento legal.

Escrutínio Público

É natural, que sobretudo para os adeptos duma visão realista do Direito[4], em que nos incluímos, segundo a qual o importante não é o que está escrito na lei, nem sequer os princípios meta-legais em que esta assente, mas a sua aplicação e resultado prático, não se fique satisfeito com a mera enumeração legal, mesmo que esta surja bem construída e promissora, como se nos afigura acontecer com a presente Lei Orgânica das Eleições Gerais.

Torna-se necessário invocar outros fatores reais que permitam realizar uma avaliação mais objetiva do fenómeno eleitoral em Angola como esperado para 2022.

Entendemos que o fator chave é o do escrutínio público que o processo eleitoral está a ter. Escrutínio público entendido como exame minucioso e averiguação diligente de um fenómeno realizado pela sociedade em geral, e não apenas por órgãos específicos que poderão ou não estar alinhados com determinada opção política ou ideológica.

O nosso argumento é que quanto maior for o escrutínio público a que um fenómeno eleitoral esteja sujeito maior será a sua transparência e democracia e menores as probabilidades de fraude, havendo uma relação direta entre escrutínio e transparência.

Ora, o breve excurso que realizámos pelas várias eleições ocorridas em Angola, e retirando a de 1992, que pela sua especificidade e contexto histórico não tem lugar nesta comparação, e considerando que alguns dos nossos colaboradores acompanharam pessoalmente as eleições de 2012 e 2017, permite-nos avançar com algumas tendências em relação a aspetos escrutinadores por parte de integrantes da sociedade civil ou órgãos estruturantes não políticos da comunidade. Esses temas levam-nos a uma comparação qualitativa entre 2008 e 2017.

Em primeiro lugar, destaquemos a Igreja Católica. Possivelmente, fruto de certas acusações de colaboração com o poder colonial e de algum embate com a ideologia marxista pós-independência, a Igreja Católica, na sua generalidade, tinha-se remetido nas anteriores eleições a um papel discreto e pouco interventivo publicamente, não contribuindo para um forte debate acerca do processo eleitoral nas anteriores eleições (2008 a 2017).

Isso não acontece em 2022, seguindo as passadas da sua congénere na vizinha República Democrática do Congo (RDC) em que a Igreja Católica teve um papel determinante na transição eleitoral de 2018/2019 entre Kabila e Tshisekedi, a Igreja Católica angolana tem assumido um manifesto protagonismo na preparação das eleições angolanas. Os seus bispos e padres estão ativos na sua pastoral e nas homilias e têm uma atividade pública intensa, exigindo eleições adequadas[5].

É precisamente este ativismo católico, lembrando que segundo as estatísticas, cerca de 40% da população angolana é católica,[6]que permite concluir que o escrutínio que a Igreja Católica está a fazer das eleições não deixará larga parte da população indiferente e obriga por si só a uma transparência acrescida no processo. Melhor dizendo, o escrutínio católico e das suas múltiplas organizações é, em si mesmo, um fator intrínseco de transparência.

Um segundo fator que notamos diferente em relação às outras eleições angolanas é o papel das redes sociais. Estas abrangerão cerca de ¼ da população votante[7], mas talvez mais daqueles que efetivamente votam. Ora frequentando as redes sociais facilmente se vislumbra a intensidade com que falam das eleições e como discutem a sua realização e necessidade de transparência. Um candidato a deputado pelo partido da oposição e ativista constantemente presente nas redes como Hitler Samussuku tem 52.000 seguidores no Facebook e os seus posts alcançam muitas vezes mais de 1000 likes. Trata-se de um mero exemplo aleatório, mas muitos outros poderiam ser referidos.

Nunca as redes sociais em Angola estiveram tão vivas a ativas como neste período, contestando, discutindo e afirmando posições.

Tal como na situação da Igreja Católica entendemos que este escrutínio digital tem uma dupla função. Por si só é sinónimo de transparência e ao mesmo tempo aumenta a transparência ao colocar no espaço público a discussão sobre as eleições.

Temos aqui dois fatores conducentes intrinsecamente à transparência eleitoral: o ativismo da Igreja Católica e o ativismo digital.

Finalmente, convém referir a questão dos Observadores internacionais. No ano difícil de 1992 estiveram presentes, segundo informações públicas, 400 observadores internacionais[8], em 2017, terão estado mais de 1000 observadores[9],atualmente, segundo as publicações que se debruçaram sobre o assunto estão previstos 2000 observadores nacionais para 2022 e um número ainda não apurado de observadores internacionais. Convém dizer que atendendo ao ativismo acima referido da Igreja e no digital, os observadores nacionais terão um papel muito intenso ao contrário do que poderia acontecer no passado.

Conclusões

A questão que aqui estudámos não é da perfeição platónica das eleições angolanas, mas da evolução da transparência eleitoral desde 2008 com a previsão para 2022.

O que apurámos atendendo a dois índices, a legislação e o escrutínio público, é que, neste momento, existe uma lei suficientemente robusta para realizar eleições livres e justas, e que o escrutínio público, designadamente por parte da Igreja Católica e suas organizações satélite e também pelas redes sociais, nunca foi tão elevado como atualmente.

Nessa medida, mesmo com imperfeições, augura-se que estas eleições serão mais transparentes do que no passado, porque se tal não acontecer a opinião pública sentirá melhor e mais profundamente do que no passado.


[1] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/proximas-eleicoes-em-angola-deverao-ser-as-menos-transparentes-e-crediveis-avisa-investigadora-de-oxford_n1413623

[2] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/unita-diz-que-houve-fraude-nas-eleicoes/

[3] Não discutimos neste trabalho o problema do desequilíbrio do serviço público na época da pré-campanha. Será, possivelmente, objeto de outro estudo apontando soluções e necessidades de uma visão holística da situação englobando todas as fontes de notícias: públicas, privadas, estrangeiras e digitais.

[4] Ver por exemplo, Rui Verde, Juízes: o novo poder, 2015.

[5] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/bispos-angolanos-pedem-eleicoes-transparentes-e-participacao-responsavel-dos-cidadaos_n1381285; https://www.vaticannews.va/pt/africa/news/2022-06/angola-eleicoes-bispos-convidam-a-moderacao-respeito-e-sentid.html ; https://www.dw.com/pt-002/angola-bispo-de-cabinda-nega-crispa%C3%A7%C3%A3o-entre-igreja-cat%C3%B3lica-e-o-executivo/a-61651439

[6] https://observatoriodaafrica.wordpress.com/2016/04/04/maioria-da-populacao-angolana-e-catolica/

[7] https://marcasemaccao.com/utilizadores-de-redes-sociais-cresce-36-em-angola/

[8] http://www.angonoticias.com/Artigos/item/48509/primeiras-eleicoes-em-angola-realizaram-se-ha-23-anos

[9] https://www.voaportugues.com/a/mais-de-mil-observadores-as-eleicoes-em-angola/3926114.html

Eleições angolanas de 2022 e os Estados Unidos da América

Recentemente, têm circulado por Luanda e obtido o devido eco em portais geralmente bem-informados[1]rumores acerca dum possível interesse acrescido dos Estados Unidos nas eleições angolanas, que levariam a potência ocidental a exigir que as eleições tivessem observadores internacionais imparciais que garantissem a verdade eleitoral, bem como a ameaça de possíveis sanções ao governo de João Lourenço se não acatasse essas recomendações americanas. Em concreto, anuncia-se que a Administração Biden tem estado a ameaçar com a aplicação de sanções financeiras, restrições de vistos e proibições de viagens contra governantes que prejudiquem as eleições nos seus países.[2] Daí extrapola-se que estará a fazer o mesmo em relação a Angola.

Representando esta aparente postura uma rutura com a relativa passividade com que os Estados Unidos da América no passado têm encarado as eleições gerais em Angola, pelo menos desde 2008, é mister tentar perceber se existe verificavelmente essa mudança de política dos EUA e em que termos.

Em primeiro lugar, as fontes que consultamos afirmam desconhecer qualquer inversão da política externa norte-americana relativa a Angola, anotando que os rumores têm origem, essencialmente, em documentos enviados por Organizações Não Governamentais angolanas ao Departamento de Estado, o que sempre aconteceu e acontecerá e também nas auscultações habituais que a Embaixada americana em Luanda efetuou, mas que sempre realizou no passado e realizará no futuro. Nada de novo, portanto.

Em segundo lugar, e isto constitui o objeto do nosso estudo, interessa averiguar se as condicionantes estruturais da política externa norte-americana implicam uma intervenção/preocupação mais acentuada com as eleições e a situação em Angola, podendo levar a desentendimentos graves ente a Administração Biden e o executivo de João Lourenço.

A política externa da Administração Biden, curiosamente, nas suas grandes linhas segue a política adotada por Donald Trump, quebrando apenas em aspetos específicos, como a emergência climatérica ou algum multilateralismo. Deste modo, a política externa Biden assenta num empenho no tratamento da relação com a China, um pragmatismo na generalidade das relações e um desinteresse em África.

A retirada, nos termos em que ocorreu, do Afeganistão é um exemplo típico desta abordagem, em que os americanos não se querem envolver em projetos “nation building” ou de promoção ativa de valores noutros países. Preferem agora uma estratégia que os beneficie comercialmente, garanta a estabilidade e ajude a controlar a China.  

O idealismo dos neoconservadores que acolitaram George Bush filho na sua tentativa de construção de democracias e estados de direito no Iraque e Afeganistão, deixou de fazer parte do guião da política externa americana. Portanto, não se espere que esse idealismo venha existir para África. Não vão existir intervenções em África para promover qualquer tipo de valores americanos, nem sequer intervenções musculadas de qualquer tipo.

O que existe da parte norte-americana é um desejo que o continente africano seja o mais estável possível e o fornecimento de matérias-primas essenciais seja assegurado do modo mais adequado possível.

Ainda este mês de outubro, na prestigiada revista Foreign Affairs, escrevia-se “President Joe Biden’s administration has been similarly slow out of the blocks on Africa. Aside from its focused diplomatic response to the horrific civil war in Ethiopia and a few hints about other areas of emphasis, such as trade and investment, Biden has not articulated a strategy for the continent.” (A administração do presidente Joe Biden tem sido igualmente lenta nos bloqueios de África. Além de sua resposta diplomática focada na horrível guerra civil na Etiópia e algumas dicas sobre outras áreas de ênfase, como comércio e investimento, Biden não articulou uma estratégia para o continente.)[3].

Consequentemente, em termos das linhas estruturais da política estrangeira americana verifica-se que com a retirada do Afeganistão foi abandonada qualquer veleidade de “Nation building” ou intervenção em país terceiro que não ameace diretamente o interesse nacional.

Adicionalmente, o foco foi colocado na China e no seu controlo e mais geralmente na Ásia.

A declaração do Departamento de Estado norte-americano de maio deste ano é bem clara sobre a importância da China e o papel que desempenha na abordagem americana: “Strategic competition is the frame through which the United States views its relationship with the People’s Republic of China (PRC).  The United States will address its relationship with the PRC from a position of strength in which we work closely with our allies and partners to defend our interests and values.  We will advance our economic interests, counter Beijing’s aggressive and coercive actions, sustain key military advantages and vital security partnerships, re-engage robustly in the UN system, and stand up to Beijing when PRC authorities are violating human rights and fundamental freedoms.  When it is in our interest, the United States will conduct results-oriented diplomacy with China on shared challenges such as climate change and global public health crises[4].” (“A competição estratégica é a estrutura pela qual os Estados Unidos veem seu relacionamento com a República Popular da China (RPC). Os Estados Unidos abordarão o seu relacionamento com a RPC a partir de uma posição de força na qual trabalhamos em estreita colaboração com nossos aliados e parceiros para defender nossos interesses e valores. Avançaremos os nossos interesses económicos, combateremos as ações agressivas e coercitivas de Pequim, manteremos vantagens militares importantes e parcerias de segurança vitais, voltaremos a colaborar fortemente no sistema da ONU e enfrentaremos Pequim quando as autoridades da RPC estiverem a violar os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Quando for de nosso interesse, os Estados Unidos conduzirão uma diplomacia voltada para resultados com a China em desafios compartilhados, como mudanças climáticas e crises globais de saúde pública.”

Se as linhas estruturantes da política externa americana são as referidas, e África não ocupa um lugar relevante, convém assinalar, no entanto, o que os Estados Unidos desejam ou esperam de África. Essencialmente, pode-se resumir numa frase coloquial: Os EUA desejam que África não lhe dê chatices e propicie alguns lucros económicos.

No seguimento dessa estratégia, os EUA têm entregado uma boa parte da luta anti- terrorista a França e contam que os países africanos garantam a estabilidade local, prosseguindo fortes alianças com alguns deles. Só se o interesse e a segurança nacionais norte-americanas forem afetadas pelo terrorismo islâmico, os Estados Unidos intervirão fortemente. De notar, que também aqui os EUA têm o seu trauma, ocorrido na Somália, e tão bem retratado no belo filme Black Hawk Down[5] magistralmente dirigido por Ridley Scott. Não existe qualquer apetência dos EUA em se colocarem por dentro de qualquer imbróglio em África. Esta ideia é reforçada pelas propostas de donwsizing relativamente ao seu Africom (Comando dos Estados Unidos para a África).

Nesta medida, os EUA têm uma perspetiva muito prática dos equilíbrios de forças e necessidades para África. E na realidade a sua história com Angola isso o demonstra. Na verdade, mesmo quando nos anos 1980s apoiavam declaradamente a UNITA de Jonas Savimbi contra o MPLA de José Eduardo dos Santos tinham o cuidado que tal apoio não perturbasse as atividades das suas companhias petrolíferas a operar em território dominado pelo governo do MPLA. Na altura, Cuba enviou 2 mil soldados adicionais para proteger as plataformas de petróleo da Chevron (em Cabinda). Em 1986 Savimbi chamou a presença da Chevron em Angola, já protegida pelas tropas cubanas, como um “alvo” da UNITA. Portanto, tínhamos Savimbi apoiado pelos norte-americanos a invetivar uma companhia norte-americana protegida pelos cubanos.[6] Mais tarde, correram rumores que uma empresa ligada ao conservador Dick Cheney, futuro vice-presidente de George Bush filho, teria tido um papel na localização e morte de Jonas Savimbi[7].

Isto quer dizer, que a atitude dos EUA face a Angola sempre foi ambivalente, e não será agora que irá enveredar por um caminho de confronto, quando Angola se tornou um aliado importante por dois motivos muito reais.

Em primeiro lugar, Angola, sobretudo com a liderança de João Lourenço tem desempenhado um papel de pacificação na sua zona de influência. Relembre-se que Angola ajudou a uma transmissão pacífica e eleitoral na República Democrática do Congo (RDC), tenta estabelecer alguma tranquilidade entre o triângulo RDC, Uganda e Ruanda, além de ter contribuído decisivamente para a recente paz na República Centro-Africana (RCA). Na verdade, neste último país o Presidente Touadéra destacou o papel fulcral desempenhado pelo Estado angolano na obtenção da paz. Angola é um aliado da paz dos EUA em África e obviamente os americanos não vão desleixar o apoio e colaboração diplomática e militar de Angola para a tranquilidade africana.

Também é um forte baluarte contra qualquer penetração do terrorismo islâmico.

Em segundo lugar, é nítido que Angola segue atualmente uma nova política externa, pretendendo “descolar-se” da excessiva dependência da China. Ora, atendendo à sua experiência com a China de quem foi pioneira da intervenção em África e da tentativa atual duma política estrangeira mais ocidental, Angola constitui uma plataforma experimental por excelência para a política dos EUA face à China, onde se testarão as verdadeiras implicações dessa política e até onde irá o empenho americano para contrabalançar a China.

Nessa medida, um falhanço americano com Angola será um falhanço global da sua aproximação estratégica à China. Aqui, tal como na Guerra Fria em relação à União Soviética, se vai medir a realidade da ação americana relativamente à China.

Assim, tudo ponderado não parece que a Administração Biden embarque em qualquer hostilização ou mudança em relação ao governo de João Lourenço, pois isso não corresponde aos interesses americanos face a África e mesmo em relação à China. Todos rumores noutro sentido, devem ser vistos como parte da luta interna angolana e não qualquer posicionamento musculado americano.


[1]CLUB-K, 2021,  https://club-k.net/index.php?option=com_content&view=article&id=46062:eua-ameacam-sancoes-contra-regimes-africanos-que-recorrem-a-fraude-eleitoral&catid=11:foco-do-dia&lang=pt&Itemid=1072

[2] Idem

[3] Foreign Affairs, 2021, https://www.foreignaffairs.com/articles/africa/2021-10-08/africa-changing-and-us-strategy-not-keeping?utm_medium=promo_email&utm_source=lo_flows&utm_campaign=registered_user_welcome&utm_term=email_1&utm_content=20211026

[4] USA State Department, 2021, https://www.state.gov/u-s-relations-with-china/

[5] Black Hawk Down, 2001, https://www.imdb.com/title/tt0265086/

[6] Franklyn, J. (1997), Cuba and the United States: a chronological history

[7] Madsen, W. (2013). National Security Agency surveillance: Reflections and revelations 2001-2013