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Dubai: o novo santuário para Pessoas Expostas Politicamente?

Nota de advertência

Este relatório aborda o aparente incumprimento das obrigações legais internacionais por parte dos Emirados Árabes Unidos, em concreto do Dubai. As referências que são feitas a pessoas individuais, como Isabel dos Santos e outras entidades citadas no relatório, respeitam o princípio da presunção de inocência e não contêm qualquer julgamento de valor acerca delas, apenas em relação aos deveres jurídicos do Dubai.

O sistema federal constitucional em que se enquadra o Dubai

O Dubai não é um estado soberano, mas um estado federado nos Emirados Árabes Unidos. Os Emirados Árabes Unidos são uma federação constitucional criada em dezembro de 1971. São compostos por sete emirados, dos quais o Dubai é um deles. O sistema político baseia-se numa Constituição que determina as principais regras da organização política e constitucional do país. Segundo o costume adotado, o governante de Abu Dhabi (Mohamed bin Zayed Al Nahyan) é o presidente dos Emirados Árabes Unidos (apesar de deter o título de presidente, o país não é governado como uma república, mas como uma monarquia) e o governante de Dubai é o primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos, o chefe do governo. Dentro dos Emirados Árabes Unidos, cada emirado tem considerável autonomia administrativa dentro de si.

Apesar da larga latitude que cada emirado detém, cada um deles está  sujeito à autoridade federal nas seguintes matérias: relações exteriores, segurança e defesa, questões de nacionalidade e imigração, educação, saúde pública, moeda, serviços postais, telefónicos e outros serviços de comunicação, controlo de tráfego aéreo, licenciamento de aeronaves, relações laborais, bancos, delimitação de águas territoriais e extradição de criminosos.[1] [2]

O poder judicial federal é um órgão constitucionalmente totalmente independente (nos termos do artigo 94.º da Constituição) e inclui o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais de Primeira Instância. O Supremo Conselho de Governantes nomeia os cinco juízes chefiados por um presidente para o Supremo Tribunal. Os juízes são responsáveis por decidir se as leis federais são constitucionais, mediando disputas entre os Emirados.

Consequentemente, o Dubai está enquadrado num sistema legal federal em que as relações internacionais, logo as suas obrigações internacionais, bem como os processos de extradição, estão sujeitos às normas federais dos Emirados. Em teoria há um edifício normativo que regula a atuação de cada um dos Emirados num quadro constitucional.

A situação de Isabel dos Santos e o mandado via Interpol

É público que a Procuradoria-Geral Angolana emitiu um mandado de detenção para extradição relativamente a Isabel dos Santos em finais de 2022, anunciando que o tinha divulgado através de uma Red Notice da Interpol.

Uma Red Notice é um pedido às autoridades policiais em todo o mundo para localizar e prender provisoriamente uma pessoa pendente de extradição, entrega ou ação legal semelhante. Não é um mandado de prisão internacional. Os indivíduos são procurados por um país membro requerente e os restantes países membros aplicam as suas próprias leis ao decidir se devem prender uma pessoa e extraditá-la ou não.[3]

No caso concreto de Isabel dos Santos é público e notório que se encontra no Dubai. De acordo, com a Bellingcat, um site de jornalismo investigativo com sede na Holanda especializado em verificação de fatos e inteligência de código aberto, fundada pelo jornalista britânico Eliot Higgins em julho de 2014, uma postagem do TikTok de Isabel dos Santos datada de 4 de dezembro de 2022, está localizada na piscina do Bulgari Yacht Club de Dubai. Noutro caso, Isabel dos Santos foi etiquetada por uma amiga num post do Instagram no dia 27 de dezembro de 2022, onde pode ser vista a desfrutar de uma refeição no Nusr-Et Steakhouse Dubai. Igualmente, apareceu brevemente na postagem de outro amigo do restaurante naquele dia e as avaliações do restaurante apontam para a presença de Nusret Gökçe – também conhecido como Salt Bae – no seu outlet em Dubai na última semana de dezembro de 2022. Numa foto postada no Instagram, ainda, de outro amigo em 8 de janeiro de 2023, Isabel dos Santos pode ser vista no corredor vermelho e roxo do restaurante Trove, no Dubai, dentro do complexo Dubai Mall[4].

Assente que Isabel dos Santos está (ou esteve em 2022 e 2023) no Dubai, e que Angola emitiu um mandado de detenção divulgado através de uma Red Notice da Interpol, é importante perceber a situação e reação do Dubai ou dos Emirados Árabes Unidos. Aparentemente, nenhuma.

As obrigações legais do Dubai (Emirados Árabes Unidos)

Os Emirados são membros da Interpol desde 2 de outubro de 1973. Cada um dos países membros acolhe um Gabinete Central Nacional da INTERPOL (BCN), que assegura a ligação entre os vários países e os Secretariado-Geral através duma rede global segura de comunicações policiais chamada I-24/7. Os BCN são o centro da INTERPOL. Procuram as informações necessárias junto de outros BCN para ajudar a investigar crimes ou criminosos no seu próprio país e partilham dados e informações criminais para ajudar outro país.[5]

Assim, recebida a comunicação de uma Red Notice relativa a alguém que está no Dubai, no BCN local da Interpol em Abu-Dhabi, era forçosa uma atuação das forças policiais dos Emirados.

Não existindo um acordo de extradição entre os Emirados e Angola, o certo é que existe uma Lei Federal que regula o tema.  Nos EAU, a extradição das pessoas procuradas é regida pela Lei Federal n.º 39 de 2006 sobre Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal (“Lei de Extradição”). A Lei de Extradição é geralmente aplicada se os Emirados Árabes Unidos e o país requerente não tiverem um tratado em vigor em matéria de extradição.

De acordo com o artigo 11.º da Lei de Extradição, um pedido de entrega deve ser apresentado pelo país requerente através dos canais diplomáticos ao departamento competente e apoiado pelas informações e documentos necessários, tais como o nome e descrição da pessoa procurada, textos legais aplicáveis ao crime, e à pena aplicável, sentença condenatória, caso a pessoa procurada já tenha sido condenada, com comprovação de que a sentença é executória. Todos os documentos e informações devem ser legalizados e traduzidos para o idioma árabe.

No entanto, deve notar-se que os EAU não permitirão a extradição de uma pessoa se, nos termos do Artigo 9 da Lei de Extradição:

-é cidadã dos Emirados Árabes Unidos;

-o objeto do crime é de natureza política. Os crimes terroristas, os crimes de guerra e os genocídios não são considerados crimes políticos;

[Refira-se a este propósito que a defesa pública que Isabel dos Santos tem feito em relação às acusações que o Estado angolano lhe faz, assenta neste pressuposto: a alegação duma perseguição política. Nessa medida, é uma antecipação duma defesa que poderá fazer num tribunal dos Emirados].

-o objeto do crime limita-se às infrações às obrigações militares;

-o pedido de entrega visa penalizar ou processar uma pessoa pela sua religião, nacionalidade ou filiação étnica;

-a pessoa procurada foi anteriormente julgada e condenada ou absolvida pelo mesmo crime;

-os tribunais dos EAU já proferiram uma sentença irrevogável sobre o crime pelo qual a sua extradição foi solicitada;

-haver lapso de tempo ou a ação penal foi encerrada; ou poderá ser submetido a tratamentos desumanos, insultuosos ou tortura no país requerente se for extraditado.

Além do acima exposto, o pedido de entrega está sujeito às seguintes condições-chave: o crime deve ser penalizado pelas leis dos Emirados Árabes Unidos e do país requerente por pelo menos 1 ano ou mais de prisão.

O tribunal competente tem o direito de determinar se a pessoa procurada deve ser devolvida ao país requerente. Esta determinação deve estar em conformidade com a lei e as razões para se chegar a uma decisão devem ser justificadas (artigo 20.º)

A Lei de Extradição também permite que as autoridades dos EAU prendam provisoriamente a pessoa procurada em casos de urgência. Documentos e informações adicionais também podem ser solicitados pelas autoridades dos EAU se for considerado que as informações apresentadas são insuficientes.

Motivos para a inação do Dubai

O assunto é da competência federal, isto é, dos Emirados Árabes Unidos e não do Dubai.

A Red Notice devia ter levado a uma atuação da polícia local. Essa atuação não se traduziria em prender Isabel dos Santos e metê-la num avião para Angola, mas no início do processo judicial interno de extradição nos termos da Lei Federal dos Emirados.

Não tendo isso acontecendo, vislumbram-se duas explicações opostas.

Hipótese A: O padrão do Dubai: santuário político em contrapartida de investimentos avultados

Em primeiro lugar, pode ser um ato deliberado das autoridades dos Emirados por interesse político ou corrupção local. Recordemos que o Dubai está a ser um porto de refúgio seguro para os oligarcas russos anteriormente estabelecidos em Londres.

Na realidade, pode ser política interna do governo dos Emirados (ou do Dubai com cobertura federal) ser o ponto global de refúgio e acolhimento de várias pessoas politicamente expostas, recebendo avultados rendimentos por esse papel de proteção.

Factualmente, desde a invasão da Ucrânia em 2022, cidadãos russos compraram 6,3 mil milhões de dólares em propriedades existentes e em desenvolvimento no Dubai. Estima-se que a quantidade de dinheiro russo que flui para o setor imobiliário no Dubai aumentou mais de dez vezes após a invasão da Ucrânia. Isso ilustra como a cidade se tornou um destino privilegiado para a elite russa que evita sanções ou escapava da própria guerra. Dos 6,3 mil milhões de dólares em propriedades residenciais adquiridas – uma “estimativa conservadora”, de acordo com o relatório – 2,4 mil milhões de dólares eram propriedades existentes e 3,9 mil milhões de dólares ainda estavam em desenvolvimento[6].

Há aqui um padrão de comportamento, aplicável a Isabel dos Santos, aos oligarcas russos e a todos quanto procuram cobertura amigável no Dubai. Investem no país e são acolhidos e protegidos.

Esta pode ser a explicação mais óbvia para o comportamento dissonante do Dubai em relação às suas obrigações internacionais face à aplicação da lei.

Hipótese B: A falta de iniciativa legal compreensiva

Embora, muitos factos indiquem que o Dubai se assume propositadamente como um santuário de proteção política em troca de investimentos avultados, pode acontecer que considere que a lei federal interna não está a ser cumprida na sua plenitude para levar a uma atuação das autoridades.

Em rigor, poder-se-á alegar que uma Red Notice (ou qualquer iniciativa de extradição ou congelamento de bens de entidades localizadas no Dubai) tem de obedecer aos protocolos estabelecidos no artigo o artigo 11.º da Lei de Extradição. Isto é, a Red Alert para ser eficaz no sentido de desencadear um processo judicial federal deve ser seguida dum pedido de extradição formal que deve ser apresentado pelo país requerente através dos canais diplomáticos (Embaixada de Angola no Abu Dhabi) ao departamento competente dos Emirados apoiado pelas informações e documentos necessários, tais como o nome e descrição da pessoa procurada, textos legais aplicáveis ao crime, e a pena aplicável.  Todos os documentos e informações devem ser legalizados e traduzidos para o idioma árabe.

Nesse sentido, qualquer mandado angolano só seria eficaz quando acompanhado de todo o procedimento previsto na Lei federal dos Emirados.

Conclusão

Fica a dúvida se o Dubai se está a tornar um santuário privilegiado para o refúgio e proteção de pessoas politicamente expostas a troco de avultados investimentos, não cumprindo as suas obrigações legais internacionais ou se existe um desconhecimento das normas internas dos Emirados e do Dubai que implica que as autoridades judiciárias dos vários países não consigam ter o sucesso necessário para estender a sua aplicação da lei ao Dubai.


[1] Constituição dos EAU, disponível em https://elaws.moj.gov.ae/MainArabicTranslation.aspx?val=UAE-MOJ_LC-En%2F00_CONSTITUTION%2FUAE-LC-En_1971-07-18_00000_Dos.html&np=&lmp=undefined

[2] UAE The political system, disponível em https://u.ae/en/about-the-uae/the-uae-government/political-system-and-government

[3] Interpol.Red Notice. Disponível https://www.interpol.int/How-we-work/Notices/Red-Notices/View-Red-Notices

[4] Miguel Ramalho, Wanted by Interpol, Relaxing in Dubai: Geolocating Isabel dos Santos’ Life of Luxury, disponível em https://www.bellingcat.com/news/2023/02/03/wanted-by-interpol-relaxing-in-dubai-geolocating-isabel-dos-santos-life-of-luxury/

[5] Interpol. United Arab Emirates, disponível em https://www.interpol.int/Who-we-are/Member-countries/Asia-South-Pacific/UNITED-ARAB-EMIRATES

[6] Carmen Molina Acosta and Eiliv Frich Flydal, Russians bought up $6.3 billion in Dubai property after 2022 Ukraine invasion, report finds, Disponível em https://www.icij.org/news/2024/05/russians-bought-up-6-3-billion-in-dubai-property-after-2022-ukraine-invasion-report-finds/

Os realinhamentos da política externa de Angola

1-Introdução. O reposicionamento geopolítico de Angola

No momento, em que terminamos este relatório, o Presidente da República de Angola encontra-se em Paris com o Presidente da República Francesa. Este encontro representa um dos pontos do realinhamento em curso da política externa de Angola. Basta lembrar que nos últimos tempos de José Eduardo dos Santos, os franceses estavam de “castigo” devido ao seu papel no Angolagate.

Angola não é um país indiferente. Tem desempenhado um papel geopoliticamente relevante ao longo da sua curta, mas intensa história após a independência. Primeiramente, foi um dos palcos violentos da Guerra Fria, onde americanos e soviéticos se digladiaram com a virulência que não podiam adotar noutras localizações geográficas. Angola acabou por ser um bastião soviético de grande nomeada, onde estes na realidade ganharam quando em confronto com os Estados Unidos. Depois da fase soviética, Angola foi mais uma vez inovadora e tornou-se o primeiro país africano a receber a nova China que se abria ao mundo e procurou em África um continente para a sua expansão e teste das suas ideias. Angola tornou-se um parceiro por excelência da China.

            Obviamente, sendo uma simplificação, do ponto de vista das grandes tendências a posição geopolítica de Angola começou por estar alinhada com a União Soviética e após a queda desta, com a China. Não se tratando dum país rabidamente antiocidental, muito longe disso, até porque Angola tem uma profunda influência da cultura europeia, o país ancorou-se em outras paragens ao longo do tempo.

Por várias razões, neste momento, Angola ensaia uma diferente aproximação geopolítica que tende a desvalorizar o papel quer da Rússia, quer da China, e a encontrar novas referências e diálogos políticos. Este texto debruçar-se-á sobre essa desvalorização, os novos vetores que influenciam o reposicionamento angolano, os países que agora desempenharão um papel mais relevante nas preocupações externas de Angola, além de uma curta nota sobre Portugal. Não se abordará a influência de Angola na África Austral e o seu papel de estabilização nos Congos.

2-O declínio da relação angolana com a Rússia e a China

O declínio da relação soviética (agora russa) com Angola é fácil de descrever. A aposta da União Soviética em Angola fazia parte de uma estratégia de longo-prazo de envolvimento do Atlântico Norte através dos países do Sul. A incursão em África que foi acelerada pela “perda” da influência no Médio-Oriente nos anos 1970s derivada do corte promovido por Sadat do Egipto e pelo aproveitamento oportuno de Kissinger. De repente, a União Soviética viu-se sem um dos suportes principais que tinha no Médio Oriente e de onde esperava condicionar os americanos. O certo é que essa situação levou a um aprofundamento de várias alternativas entre as quais mais tarde se destacou Angola. Naturalmente, que a queda do Muro de Berlim em 1989 e o final da Guerra Fria, com a consequente desagregação da União Soviética levaram a que o interesse russo em África esmorecesse consideravelmente. A Rússia que emergiu após o colapso de Gorbachev já não estava interessada em qualquer competição mundial com os Estados Unidos, mas na sua sobrevivência e transformação. Rapidamente perdeu o interesse em Angola.

            É certo que atualmente, Putin recuperou alguma da dinâmica imperial e procura alguma influência em África, mas ainda é de curto alcance e tem-se traduzido no envio de mercenários do grupo Wagner, que têm tido pouca eficácia, designadamente em Moçambique. Em Angola, não se nota uma atuação relevante da Rússia, sobretudo como parceiro essencial e determinante. Existem obviamente contactos e relações. Fala-se muito na influência russa em Isabel dos Santos, que será cidadã desse país, mas o certo é que não são visíveis investimentos ou laços russos com Luanda com manifesto relevo. Em 2019, foram anunciados investimentos russos em Angola de 9 mil milhões de euros, mas não se conhece sequência de tal. A isto acresce que a dívida pública externa de Angola à Rússia é zero de acordo com os dados do Banco Nacional de Angola (BNA), tendo sido liquidada na sua totalidade até 2019.

            Mais difícil é concluir pelo declínio da relação com a China. Na verdade, o investimento chinês em Angola tem vindo a crescer, pelo menos até 2020, e a dívida pública externa angolana face à China representava em 2020, 22 mil milhões de dólares, o equivalente a mais de 40% do total. A implantação chinesa em Angola é grande, bastando referir em termos sociológicos a relevância da Cidade da China.

            No entanto, há indícios que a preferência chinesa está a diminuir, ou pelo menos, a ser mitigada. O primeiro indício refere-se às negociações de um novo empréstimo que levou João Lourenço à China no início do seu mandato. As primeiras informações para a imprensa davam conta de montantes avultados a serem disponibilizados pela China, na ordem dos 11 mil milhões de dólares. A realidade é que houve variadas procrastinações nesse empréstimo, que acabou aparentemente para envolver uma quantia reduzida de 2 mil milhões de dólares que terá servido para fazer pagamentos de dívida angolana a empresas chinesas.

O certo é que se analisarmos a evolução da dívida pública externa angolana à China verificaremos que um houve um salto assinalável entre 2015 e 2016, de cerca de 11,7 mil milhões de dólares para 21,6 mil milhões de dólares, que a dívida atingiu o pico em 2017, 23 mil milhões de dólares e que desde aí tem vindo a diminuir com uma cadência significativa. Afigura-se que a China não se quer envolver mais com Angola, preferindo ir gerindo o atual envolvimento.

            Se da parte da China se poderá vislumbrar alguma recalcitrância na relação com Angola, da parte angolana também existem obstáculos. O primeiro deles é a natureza da dívida angolana à China. Muitos alegam que uma boa parte desta dívida é o que se chama “dívida odiosa”, isto é, serviu para beneficiar interesses privados corruptos e não o desenvolvimento do país. Existe a impressão que a opacidade com que se fazem os negócios com a China permitiu a criação de situações de corrupção demasiado evidentes e prejudiciais ao país. Assim, a dívida da China é, em parte, vista como dívida da corrupção. A isto acresce que surgiram problemas de qualidade nalgumas construções chinesas em Angola financiadas por dívida chinesa. Não está claro se essa falta de qualidade se deve a qualquer negligência chinesa ou a comportamentos censuráveis por parte de responsáveis angolanos, mas o certo é que a imagem persiste.

            Isto quer dizer que sendo ainda a China um parceiro fundamental de Angola, está-se, neste momento, numa espécie de fase de reavaliação. Forçosamente há que resolver o problema da dívida do passado ligada à corrupção, do modo de agir contratual demasiado opaco por parte da China e também as questões ligadas à qualidade. É uma tarefa exigente, mas necessária para reativar o interesse comum chinês e angolano.

            Se a relação com a Rússia não tem a relevância do passado e com a China está numa fase de reavaliação e recondicionamento, é evidente que Angola, sobretudo, atendendo às mudanças porque passa, terá que buscar novos parceiros ativamente.

3-Os novos vetores de atuação angolana: objetivos e países

A relação angolana com a Rússia e a China coincidiu com a necessidade de afirmar uma soberania própria e independente de interferências externas, e também da obtenção de fundos para a guerra e reconstrução pós-guerra. A atual política externa de João Lourenço coloca-se num patamar ligeiramente diferenciado, em que é importante congregar o apoio externo para as duas grandes reformas que estão a ser levadas a cabo internamente: a reforma económica e a luta contra a corrupção. Ambas as reformas necessitam de colaboração externa, sem o qual podem não sobreviver.

            A reforma económica assenta no chamado consenso de Washington proposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), embora os intelectuais e burocratas internacionais tenham já abandonado esta designação e a recusem. Ainda assim, implica a adoção de políticas de alargamento dos impostos e restrição da despesa com a respetiva consolidação fiscal. Naturalmente que este tipo de políticas é recessivo, aumenta, no curto-prazo, a crise económica em Angola. A grande forma de ultrapassar este efeito é obter investimento externo e muito. Aliás, diz a teoria seguida, que havendo estas reformas disciplinadoras do FMI, os investidores estrangeiros passam a confiar nos governos que as seguem e sentem-se seguros para investir. Em resumo, o investimento estrangeiro é o contrapeso necessário às reformas do FMI e a chave do sucesso destas. Consequentemente, não admira que um dos principais vetores da política externa angolana seja a aproximação a países com capacidade de investimento reprodutor assinalável e com provas dadas.

            Naquilo que diz respeito à luta contra a corrupção, o panorama que se apresenta é que, de uma maneira geral, são os países com potencialidades para investir em Angola, aqueles em que é necessária a colaboração judicial para recuperação de ativos ou traço de movimentos financeiros ilegais. As oligarquias angolanas que desviaram fundos públicos remeteram-nos para os países mais avançados ou com maior potencial financeiro.

Portanto, há um grupo de países que atualmente interessa de sobremaneira a Angola: são aqueles com capacidade de investimento eficiente e com um sistema financeiro por onde passaram muitos dos movimentos ilícitos de fundos angolanos, bem como onde se sedearam ativos comprados, possivelmente, com esses fundos. Neste momento, nem a China, nem a Rússia são países de onde se espere mais investimento, nem foram os locais escolhidos, aparentemente, para parquear bens ou ativos ilícitos. Ou se foram não há qualquer conhecimento do que lá se passa e está acolhido.

            É neste contexto que tem assumido relevância uma série de países. Um primeiro grupo são os países da Europa Ocidental que se têm destacado em visitas e anúncios de investimentos em Angola. No início deste mês de Abril de 2021, o primeiro-ministro de Espanha, Pedro Sanchez, fez uma visita a Angola. Esta visita foi acompanhada de grande empenho espanhol, afirmando Angola como um dos parceiros preferenciais de Espanha em África, e esta como uma grande aposta espanhola. Anunciou-se que Angola era a “proa” duma empreitada de Madrid a que chamou “Foco África 2023.” No ano passado, tinha sido a vez da Chanceler alemã Angela Merkel visitar Angola no âmbito de um Fórum Económico Angola-Alemanha e mais alargadamente de um Plano Marshall alemão para África. Também, o Presidente Macron anunciou uma visita a Angola, que tem sido adiada devido à Covid-19. Por sua vez o Presidente italiano já havia visitado Angola em 2019. Em relação ao Reino Unido não tem havido visitas deste nível tão elevado, mas começa a notar-se algum interesse por Angola devido às imposições do Brexit, que exigem novos mercados para o Reino Unido, embora haja um enorme desconhecimento.

            Às visitas têm sucedido variadas promessas de investimento da Europa Ocidental. A empresa italiana de petróleos (ENI) prevê investir sete mil milhões de dólares (5,9 mil milhões de euros), nos próximos quatro anos, na pesquisa, produção, refinação e energia solar, anunciou no início de abril de 2021. Antes empresários britânicos afirmaram pretender investir em Angola cerca de 20 mil milhões de dólares. Também a Alemanha e a França têm vários projetos em curso.

            Este eixo da Europa Ocidental tornou-se fundamental na política externa angolana, pois estes países necessitam de novos mercados e investimentos, para saírem da excessiva dependência da China, e no caso britânico, também para procurar alternativas pós-Brexit, e sendo mercado maduros, têm de ir ao encontro de onde está a juventude e o futuro, e isso está em África.

Conseguindo João Lourenço passar a imagem que rege um governo competente e com regras macroeconómicas estáveis e viradas para o mercado livre, os investidores espanhóis, franceses, britânicos, italianos ou alemães sentir-se-ão seguros para investir. Ao mesmo tempo, nestes países residem muitas das fortunas saídas de Angola, portanto, haverá oportunidade de criar mecanismos para a sua recuperação ou redirecção.

            Note-se que ao contrário do que se poderia pensar, esta Ocidentalização da política externa de Lourenço não passa por Portugal, mas indica uma abordagem direta entre os países europeus e Angola e vice-versa.

            A este eixo Europeu Ocidental há que adicionar outro, o eixo do Golfo. Os países do Golfo, em que se destacam os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita. Estes países, previamente dependentes do petróleo, entraram numa política de diversificação. O Dubai já há alguns anos e com tremendo sucesso. A Arábia Saudita ainda dá os primeiros passos, com a chamada Visão 2030, mas o certo é que querem investir fora do seu âmbito tradicional e encontrar novos mercados. Na verdade, o Dubai já tem vários investimentos em Luanda e uma sua empresa tomou agora conta do Porto de Luanda e na Arábia Saudita, Luanda abriu agora uma Embaixada, o que revela bem o interesse no reino. Por outro lado, como se sabe, o Dubai é um centro financeiro internacional de grande nomeada e por onde passou variada movimentação financeira angolana, bem como foi utilizado nos esquemas de fuga ao fisco no comércio de diamantes. Alegadamente, ao contrário do que tem sido a sua prática, o Dubai estará a colaborar com os pedidos de auxílio judiciário angolanos, representando um exemplo típico do novo eixo geopolítico que estamos a descrever, países com potencial de investimento e de colaboração judicial na luta contra corrupção.

            Sumariamente, concluímos que uma nova aproximação geopolítica angolana se centra nos países da Europa Ocidental e do Golfo Pérsico. Mas não se fica por aqui.

4-O potencial da Índia

            A quantidade de comércio entre a África Subsaariana e a Índia tem crescido de forma consistente, e hoje a Índia é um parceiro comercial fundamental de África. Relativamente a Angola, o país é hoje o terceiro exportador na África subsaariana mais importante para a Índia, quando em 2005 não tinha relevância. Em 2017, o Embaixador da Índia emitiu um comunicado no qual destacou: “O comércio entre Angola e a Índia aumentou 100% para US $ 4,5 biliões em 2017, (…) No final de julho, à margem da 10ª cimeira dos BRICS, em Joanesburgo, o presidente de Angola, João Lourenço, reuniu-se com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e os dois reafirmaram a necessidade de aumentar o comércio e a cooperação em áreas como energia, agricultura, alimentos e processamento farmacêutico.”. Há medida que a Índia vai crescendo e se tornando um ator muito importante a nível mundial, é normal que Angola olhe para este país com uma nova visão. Trata-se de um mercado milionário para onde uma imensidão das exportações angolanas pode chegar.

5-Estados Unidos da América. The ultimate prize

            A relação entre Angola e os Estados Unidos tem sido ambígua. Na verdade, mesmo nos tempos em que a administração norte-americana apoiava Jonas Savimbi e a UNITA, havia um relacionamento com Luanda ligado ao petróleo e à proteção das multinacionais americanas a operar em território dominado pelo governo do MPLA.

            Atualmente, os Estados Unidos representam tudo o que Angola deseja, o país do dólar com uma capacidade de investimento e inovação financeira invejável, com uma estrutura jurídica universalizante que permite lançar mão de múltiplos instrumentos legais por todo o mundo para perseguir as fortunas da corrupção. É também dos Estados Unidos que Angola necessita que sejam levantados os vários “sinais vermelhos” que foram sendo erguidos nos tempos de José Eduardo dos Santos e tornaram a vida financeira angolana muito mais difícil. Os Estados Unidos são o país chave para esta nova fase angolana de investimento externo e combate à corrupção, porque daqui pode vir os estímulos definitivos de avanço.

            De certa forma, João Lourenço teve azar em se deparar com Trump, quando necessitava dos EUA. É conhecido que Trump não tinha qualquer interesse em África, que apenas serviu para a sua mulher realizar uma viagem em trajes estilo colonial.  Pior teria sido impossível. Mas a indiferença americana não tem de ser um obstáculo a um maior empenho angolano nas relações com a superpotência. No início dos anos 1970, Anwar Sadat do Egipto também decidiu que se queria aproximar dos Estados Unidos. Estes ocupados com mil e uma crises, entre as quais se destacava o Vietname não deram qualquer atenção a Sadat, que não deixou de seguir a sua linha, expulsando os conselheiros soviéticos e iniciando uma aproximação aos norte-americanos.

Comparações e evoluções históricas à parte-Sadat acabou assassinado por ter assinado um acordo da paz com Israel sobre os auspícios americanos- o que parece mais lógico para Angola nesta fase é acentuar uma aproximação aos Estados Unidos, mesmo que estes não estejam atentos. E não estarão, pois entre a Covid- 19, a China e a Rússia, e múltiplas pequenas crises internas têm muito com que se ocupar. No entanto, o apoio efetivo e real dos EUA à nova política angolana é fundamental para que o país saia do marasmo e deixe de ter os condicionalismos financeiros externos, portanto, uma vigorosa aproximação à administração norte-americana seria aconselhável por parte de Angola, apesar da desconfiança mútua que existe.

6-Portugal é diferente

            A propósito da visita de Pedro Sanchez, primeiro-ministro espanhol, a Angola surgiu algumas críticas ao governo português, acusando-o de inação e de estar a ser ultrapassado por Espanha. Isto é um disparate. Nem Portugal pode pensar ter o monopólio das relações com Angola, nem sequer há qualquer perigo nas relações luso-angolanas. Portugal é sempre um caso à parte, a sua influência vem menos do governo e mais do soft power, da ligação umbilical que se mantém entre os povos de ambos os países. Luanda continua a parar quando o Sporting ganha o campeonato ou o Benfica tem um jogo muito importante, o destino preferido da maior parte dos angolanos é Portugal, as relações pessoais fáceis estabelecem-se entre portugueses e angolanos. Os empresários portugueses olham sempre para Angola como uma possibilidade de expansão dos seus negócios. As relações entre Angola e Portugal têm subjacente um entrosamento entre os povos antes da intervenção dos governos.

            A nível oficial o governo português é geralmente acolhedor em relação a Angola. Em 2005 acolheu os desejos de investimento angolano, atualmente, acedeu aos pedidos de cooperação judicial de Angola relativamente a Isabel dos Santos, como antes acabou por enviar o processo de Manuel Vicente para Angola após grande pressão de Luanda. Digamos que há uma porosidade manifesta da posição portuguesa, adaptando-se com facilidade às posições e necessidades de Luanda. Esta posição aliada ao interesse das elites angolanas em Portugal, tem acabado por consolidar uma boa relação entre os dois países, apesar de um ou outro solavanco. É evidente que após o 25 de Abril de 1974, Portugal desinteressou-se de África, fazendo como sua prioridade número um a adesão à Europa e o tornar-se um país moderno ocidental. Este projeto está um pouco enrodilhado desde 2000, mas não levou Portugal ainda a uma revisão do seu foco europeu, apenas o obrigou a um olhar mais prolongado para África, depois de décadas de desinteresse. Talvez exista um momento em que Portugal queira centrar a sua política externa nos países lusófonos, mas esta não é a altura, como não é para Angola, que quer abraçar outras fonias, como a anglófona e francófona, portanto, o melhor que os governos podem fazer é facilitar o máximo a vida aos seus povos que desejem trabalhar em comum e apoiar mutuamente as solicitações de cada uma das partes, mas pouco mais.

Conclusão

O sumário da nova posição geopolítica angolana é que Angola aposta nos vetores ligados ao investimento externo e combate contra a corrupção, assumindo relevância na política externa parcerias com a Europa Ocidental, Espanha, França, Itália, Alemanha, Reino Unido, com o Golfo Pérsico, Emirados e Dubai, e com a Índia. Ao mesmo tempo, antecipa-se um reforço das relações com os Estados Unidos. Portugal terá sempre um lugar à parte.


Bibliografia utilizada

-Banco Nacional de Angola-Estatísticas- www.bna.ao

-Douglas Wheeler e René Pélissier, História de Angola, 2011

-Ian Taylor, India’s rise in Africa, International Affairs, 2012

-José Milhazes, Angola – O Princípio do Fim da União Soviética, 2009

-Robert Cooper, The Ambassadors: Thinking about Diplomacy from Machiavelli to Modern Times, 2021

-Rui Verde, Angola at the Crossroads. Between Kleptocracy and Development, 2021

-Saudi Vision 2030- https://www.vision2030.gov.sa/en

-Tom Burgis, The Looting Machine. Warlords, Tycoons, Smugglers and the Systematic Theft of Africa’s Wealth, 2015.

-Factos públicos e informativos retirados da Lusa, DW, Jornal de Negócios, Jornal de Angola, Angonotícias e Novo Jornal.