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A importância do novo artigo 37.º, n.º 4 e 5 da Constituição angolana: a questão do confisco sem condenação criminal

1-Introdução. A revisão constitucional angolana, os limites ao direito de propriedade e o combate à corrupção

Um dos temas principais da revisão constitucional angolana em curso foi a delimitação do direito de propriedade, uma das questões que se tornou polémica face aos desenvolvimentos nos processos de combate à corrupção.

Recentemente, a título meramente exemplificativo enunciámos as seguintes medidas concretas que de alguma forma colocavam o direito de propriedade de entidades privadas em causa. Naquilo que se refere a “congelamentos” de bens, foram apreendidos ou entregues bens de Manuel Vicente e generais Dino e Kopelipa, Jaoquim Sebastião, Manuel Rabelais, entre outros. No que diz respeito aos generais Dino e Kopelipa regista-se que na qualidade de representantes das empresas China International Fund Angola — CIF e Cochan, S.A., entregaram as ações que detinham na empresa Biocom-Companhia de Bionergia de Angoala, Lda., na rede de Supermercados Kero e na empresa Damer Gráficas-Sociedade Industrial de Artes Gráficas SA. Em relação a Manuel Vicente, o Presidente da República determinou a nacionalização de 60% das participações sociais da sociedade comercial Miramar Empreendimentos, SA”, o que abrange “43% das ações pertencentes à Sociedade Suninvest — Investimentos, Participações e Empreendimentos, SA” e “17% das ações pertencentes à Sommis, SGPS. Estas participações serão pertencentes a Manuel Vicente. Obviamente, há que referir, também, os arrestos de bens referentes a Isabel dos Santos e seus associados em processos cíveis em Luanda e em processos criminais em Lisboa, além da nacionalização da Efacec em Portugal[1].

As fórmulas jurídicas de apreensão de bens foram variadas, geralmente provisórias, embora nalguns casos, definitivas e contando com a aparente aquiescência dos interessados. Aqui a exceção é a Efacec cuja nacionalização em Portugal foi igualmente definitiva, mas sem acordo da interessada, Isabel dos Santos.

De uma forma ou outra, em Angola o processo tornou-se algo confuso, não se percebendo exatamente o efeito jurídico global das entregas voluntárias de bens e a sua estabilidade jurídica, além de nos casos de provisoriedade se levantarem problemas de gestão e manutenção de bens. Sendo também fundamental não deixar prolongar essas situações provisórias por demasiado tempo, sobretudo quando estão interesses fundamentais da economia em jogo ou empregos em risco.

Face a estes acontecimentos tornava-se urgente uma definição clara do regime constitucional e legal das apreensões públicas em Angola, de forma a conferir segurança jurídica e económica aos variados movimentos de recuperação de bens descritos e em curso. É esse o sentido do texto que acabou por surgir na revisão constitucional e que vamos descrever, adicionando as possibilidades legais que esse novo texto abre em termos de legislação com vista a tornar o processo de recuperação de ativos mais célere, compreensível e estável.

2-O artigo 37.º da Constituição angolana (CRA)

A versão da CRA de 2010, ainda em vigor garantia o direito de propriedade e definia as condições de requisição e expropriação no seu Artigo 37.º. Aí se estabelecia no n.º 1 que: “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei.”. O n.º 2 determinava que “O Estado respeita e protege a propriedade e demais direitos reais das pessoas singulares, coletivas e das comunidades locais, só sendo permitida a requisição civil temporária e a expropriação por utilidade pública, mediante justa e pronta indemnização, nos termos da Constituição e da lei.” E o número 3 apertava a malha exigindo que “O pagamento da indemnização a que se refere o número anterior é condição de eficácia da expropriação.”

Este era um artigo de inspiração manifestamente enquadrada numa visão liberal e absoluta da propriedade, não prevendo sequer a possibilidade de nacionalização ou confisco, admitindo apenas a expropriação por utilidade pública sujeita ao pagamento de uma indemnização, para ser eficaz. No papel seria difícil haver garantia mais absoluta do direito de propriedade, e assim se vê que as presentes atividades do Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SNRA) de Angola poderiam roçar, muitas vezes, as margens constitucionais, acontecendo que muitas das apreensões realizadas até ao momento carecessem, eventualmente, de validade constitucional. Naturalmente que este facto deve ter sido alertado ao Presidente da República que se encarregou na sua proposta de revisão constitucional de remediar essa zona cinzenta que estava a ser criada pela atuação do SNRA. Assim, o Presidente propôs o acréscimo ao artigo 37.º da CRA do n.º 4 que teria a seguinte redação:

4. Lei própria define as condições em que pode ocorrer a nacionalização de bens privados por ponderosas razões de interesse nacional e do confisco por ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado.

Esta versão consagrava expressamente a possibilidade de nacionalização ou confisco quando existissem razões fundamentais para que tal acontecesse. Competiria à lei definir as razões. Ficava assim consagrada a regularidade constitucional das atividades de recuperação de ativos que levantavam dúvidas anteriormente.

No entanto, vários juristas angolanos levantaram o problema que esta formulação presidencial poderia assustar os potenciais investidores estrangeiros (e nacionais), tão necessários para a retoma económica ao permitir uma ampla e indeterminada fundamentação para proceder à nacionalização e confisco de bens. Essa possibilidade estaria expressa em demasia e sem salvaguardas adequadas. Deve ter sido por isso que o artigo 37.º, após análise e deliberação na Assembleia Nacional (AN) acabou por passar a contar com mais dois números, o 4.º e 5.º. Assim, ficou definida a seguinte redação:

Artigo 37.º

(Direito e limites da propriedade privada)

1. […].

2. […].

3. […].

4. Podem ser objecto de apropriação pública, no todo ou em parte, bens móveis e imóveis e participações sociais de pessoas individuais e colectivas privadas, quando, por motivos de interesse nacional, estejam em causa, nomeadamente, a segurança nacional, a segurança alimentar, a saúde pública, o sistema económico e financeiro, o fornecimento de bens ou a prestação de serviços essenciais.

5. Lei própria regula o regime da apropriação pública, nos termos do número anterior.

Não vamos entrar numa discussão doutrinária sobre o que significa “bens móveis e imóveis e participações sociais” e se engloba toda a possibilidade de ativos, embora uma formulação mais clara e que não suscitasse qualquer tipo de dúvidas tivesse sido melhor.

O que resulta claro deste artigo é que pode existir apropriação pública, i.e., uma “situação que (…) permite um acção sobre a titularidade dos meios de produção, o que levará a uma transferência coactiva destes bens para o sector público”[2] e que essa apropriação tem de se justificar por motivos de interesse nacional, que a Constituição exemplifica como segurança nacional, segurança alimentar, saúde pública, sistema económico e financeiro, fornecimento de bens ou prestação de serviços essenciais. Note- se que estes são meras ilustrações que a norma constitucional nos dá. Na verdade, qualquer motivo de interesse nacional será fundamento para a apropriação pública. A partir da entrada em vigor deste texto, haverá, sem margem para dúvida, um enquadramento constitucional genérico para a recuperação de ativos. Vamos ver em que termos e quais as perspetivas que se abrem.

3-O conceito de apropriação pública

À falta de outra referência parece que o legislador angolano se foi inspirar no artigo 83.º da Constituição Portuguesa (CRP) para introduzir o conceito de apropriação pública em vez de nacionalização e confisco. Lê-se nesse artigo 83.º da CRP: “A lei determina os meios e as formas de intervenção e de apropriação pública dos meios de produção, bem como os critérios de fixação da correspondente indemnização.”

Vislumbra-se desde logo uma manifesta diferença entre a norma angolana e portuguesa referente à apropriação pública. Em Portugal, qualquer forma de apropriação pública implica indemnização, em Angola não é assim.

Vamos detalhar o regime que se afigura estabelecido na CRA, após a revisão. Apropriação pública será toda a transferência coativa da titularidade da propriedade de um bem ou participação privado para a esfera do Estado. A apropriação pública engloba a nacionalização, o confisco, a expropriação e todas as outras possibilidades de apoderamento. No caso específico da expropriação por utilidade pública a Constituição exige que se proceda a uma indemnização. Noutros casos, não existe essa obrigatoriedade constitucional. Isto é, por razões de interesse nacional o Estado pode retirar uma propriedade da esfera privada sem a respetiva compensação. O facto da CRA admitir esta possibilidade deve obrigar o legislador ordinário a rapidamente elaborar uma lei de bases da apropriação pública para garantir a certeza jurídica destas situações, tanto quanto é possível.

4- A constitucionalização do confisco sem condenação criminal (CSCC/NCB)

Non-conviction-based (NCB) asset forfeiture ou confisco sem condenação criminal (CSCC) é uma ferramenta crítica para a recuperação de ativos decorrentes de corrupção quando uma condenação criminal não é possível[3]. Os exemplos são quando o transgressor morreu, fugiu da jurisdição, está imune a processo judicial ou se antevê que o processo criminal será demasiado longo tornando-o inefetivo. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) e a Financial Action Task Force (FATF) apoiam o seu uso.

O confisco de ativos de NCB é uma ferramenta crítica para recuperar os rendimentos e instrumentos da corrupção. É um mecanismo legal que prevê a contenção, apreensão e confisco de bens desviados sem necessidade de condenação criminal. Um número crescente de jurisdições estabeleceu regimes de confisco de ativos NCB e tais regimes têm estado a ser recomendados em nível regional e multilateral por uma série de organizações, em que se destaca o Banco Mundial através da StAR Initiative e a mencionada FATF.

Globalmente, há dois tipos de confisco usados para recuperar os ativos obtidos ilicitamente: o confisco de bens NCB e confisco criminal.  Onde o confisco criminal de ativos e o NCB diferem é no procedimento usado para confiscar ativos. A principal distinção entre os dois é que o confisco criminal requer um julgamento e condenação criminal, enquanto o confisco de ativos de NCB não. Na verdade, pode ser realizado através de um rápido procedimento cível ou mesmo administrativo. Ora é esta a possibilidade que a revisão da Constituição acaba de admitir.

5-Conclusões. O confisco sem condenação criminal e a necessidade de uma lei de bases

O que resulta essencial desta modificação constitucional prevista para o artigo 37.º da CRA é a abertura de possibilidades dinâmicas para a implementação em processo cível ou administrativo do confisco de bens obtidos de forma ilícita sem necessidade de processo criminal e sem indemnização, portanto, temos aqui um largo e positivo passo no combate contra a corrupção.

Contudo, a norma constitucional exige, de imediato, por razões de segurança jurídica e de garantia do direito de propriedade, a aprovação de uma lei de bases sobre a apropriação pública de bens, contendo, em concreto, disposições específicas sobre o confisco sem condenação criminal. Consequentemente, após a entrada em vigor da revisão constitucional, será tempo de uma lei de bases sobre o confisco de bens sem condenação criminal e indemnização.


[1] https://www.cedesa.pt/2021/05/13/radiografia-do-combate-a-corrupcao-em-angola/

[2] DIOGO SARAMAGO FERREIRA, A nacionalização do Banco Português de Negócios – Análise da Lei n.° 62-A/2008, de 11 de Novembro, Revista de Direito das Sociedades, 2011-1 (169-186), 176

[3] Theodore S. Greenberg, Linda M. Samuel, Wingate Grant, Larissa Gray (2009), Stolen Asset Recovery A Good Practices Guide for Non-Conviction Based Asset Forfeiture, The World Bank, Washington DC. https://star.worldbank.org/sites/star/files/Non%20Conviction%20Based%20Asset%20Forfeiture.pdf

O sector económico e financeiro na revisão constitucional angolana – Em especial, a consagração da independência do banco central

1-Introdução. Revisão constitucional em Angola

A presente Constituição angolana (CRA) data de 2010 e nunca tinha sido revista. Recentemente, o Presidente João Lourenço anunciou ter tomado a iniciativa de propor uma revisão constitucional.

Um primeiro comentário que esta ação suscita é que o presidente angolano tem uma política corajosa enfrentando os vários desafios que lhe têm sido colocados: combate à corrupção, reforma económica, rapidez na reação à Covid-19. Neste momento, ainda não colhe os frutos desse enfrentamento determinado, e aí reside algum paradoxo, um presidente reformista arrisca-se a ser submerso pelas suas próprias reformas.

A presente proposta de revisão constitucional é minimalista, e assim foi assumido pelo governo. Nesse sentido, arrisca-se a criar expectativas na população que depois não serão satisfeitas. Contudo, representa um passo muito importante na discussão do modelo político angolano e o certo é que a discussão constitucional será mais importante mesmo que as efetivas alterações que no fim serão inseridas na Constituição.

O objetivo do presente texto é destacar e analisar as principais propostas de revisão constitucional na área da economia e finanças.

2-A proposta de lei de revisão constitucional na área económica e financeira

A primeira modificação proposta encontra-se no artigo 14.º da CRA, que diz respeito à propriedade privada. Introduz-se a expressão “promove[1]”, com a significação de ser função do Estado além de garantir e proteger a propriedade privada e livre iniciativa, também a promoção da iniciativa privada. É introduzido um comportamento positivo do Estado, o da promoção da livre iniciativa privada.

Mais à frente, é adicionado ao Artigo 37.º que regula o “Direito e limites da propriedade privada”, um novo número 4. Este número consagra a possibilidade de nacionalização em caso de “ponderosas razões de interesse nacional”. Também introduz o confisco enquanto medida sancionatória, sendo este permitido quando ocorra uma ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado.

Naturalmente, é no Título acerca da Organização Económica, Financeira e Fiscal que são acrescentadas algumas modificações na área económica. O artigo 92.º conterá novos números 2 e 3. A nova redação proposta para o n.º 2, pretende “clarificar o alcance e o sentido do princípio da propriedade comunitária, enquanto tipo de propriedade consagrado no artigo 14.º da Constituição, que define a natureza do sistema económico chamando à regulação do exercício deste tipo de propriedade as normas do direito consuetudinário que não contrariem o sistema económico, o regime social de mercado e os princípios fundamentais da Constituição”. Já o n.º 3 estabelece a existência legal do sector não estruturado da economia, i.e., refere-se à economia informal, apontando para a sua institucionalização progressiva.

Depois temos o artigo 100.º sobre o Banco Nacional de Angola (BNA). No número 1 desse artigo determina-se que o BNA será o “banco central e emissor da República de Angola” e terá como funções primordiais:  garantir a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegurar a estabilidade do sistema financeiro. Portanto, as funções do BNA são delimitadas ao combate à inflação e à estabilidade do sistema financeiro.

De seguida, no número 2 “consagra-se a nova natureza jurídica do BNA, enquanto entidade administrativa independente, de feição eminentemente reguladora, e sinaliza-se o conteúdo do princípio da independência deste tipo de entidades”. Fica doravante proibida “a transmissão de recomendações ou emissão de directivas aos órgãos dirigentes do BNA sobre a sua actividade, sua estrutura, funcionamento, tomada de decisão” acerca das prioridades a adotar na prossecução das atribuições constitucional e legalmente definidas, por parte do Poder Executivo ou de qualquer outra entidade pública.

Os números subsequentes do mesmo artigo determinam que: “O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional.” E estipulam um procedimento detalhado para essa nomeação. Há um dever de audição parlamentar, mas a decisão final é do Presidente da República.

Outra alteração diz respeito ao Orçamento Geral do Estado. No artigo 104.º propõe-se uma alteração “de modo a afastar uma ideia actual de que o orçamento das autarquias locais integra o OGE”. O OGE preverá as transferências a realizar para as autarquias, mas não as receitas e despesas das mesmas.

3-Análise e comentário das alterações propostas à Constituição económica e financeira

Verifica-se que os artigos a alterar são os 14.º, 37.º, 92.º, 100.º e 104.º

ARTIGO 14.º

  • Em relação ao artigo 14.º passará a incumbir ao Estado promover a iniciativa privada. Além do aspeto retórico de tal afirmação, em termos práticos, esta norma permite que o Estado auxilie o sector privado de forma consistente, por exemplo, ampliando as zonas francas e benefícios fiscais para os privados, subsidiando empresas privadas, criando parcerias com o sector privado. O Estado deverá adoptar uma atitude positiva e activa face ao sector privado e não meramente passiva. É um bom sinal para o mercado.

ARTIGO 37.º

  • O artigo 37.º tem um carácter diferente e constitui a única modificação constitucional diretamente relacionada com o combate à corrupção. Face a uma lacuna constitucional, ficarão agora estabelecidos os princípios gerais em que se podem efetuar nacionalizações e confiscos. Esta última parte é fundamental para concretizar a recuperação de ativos que está em curso em que se torna muito difícil perceber o enquadramento legal.

Agora fica claro que o Estado pode confiscar bens quando tenha havido uma ofensa grave às leis que protegem os seus interesses económicos. Em linguagem simples, fica agora bem esclarecido que aqueles que se tenham locupletado à custa dos fundos públicos podem ficar sem esses bens, não havendo necessidade de um processo criminal transitado em julgado, mas apenas a conclusão que realizaram uma ofensa grave às leis que garantem os interesses económicos do Estado. Esta norma é de aplaudir no presente contexto de combate à corrupção.

ARTIGO 92.º

  • Se a promoção da iniciativa privada e a agilização da recuperação de ativos obtidos nas atividades corruptas são medidas que merecem elogio, mais dúvidas levanta a norma do artigo 92.º referente à economia informal. Mais do que “o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia” (redação proposta do artigo 92.º, n.º3), que significa essencialmente pagamento de impostos e taxas, o que a Constituição deveria propugnar era a adoção de políticas de apoio ao sector informal da economia, que é um verdadeiro amortecedor da falta de  trabalho e  um incubador de potenciais pequenas e médias empresas de sucesso.[2]  

Já se salientou que na África Austral, o sector económico informal constitui um elemento crucial de sobrevivência, dado que 72% de todo o emprego não agrícola reside no sector informal e a maioria dos novos postos de trabalho aparecem aí. A economia informal fornece rendimento e emprego a todas as pessoas, independentemente da sua escolaridade ou experiência. Em Angola, a maioria das pessoas empregadas está igualmente envolvida na economia informal, pois de outro modo não seria capaz de suportar todas as suas despesas. Nessa medida, há que ser muito cauteloso em estabelecer regras sobre a economia informal pois esta auxilia o governo angolano.[3]

ARTIGO 100.º

  • Em termos de opinião pública o cerne da modificação constitucional em termos económico-financeiros estará no artigo 100.º referente ao BNA. Este artigo contém três grandes linhas:
  • O BNA é o “garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro”. Assim, são determinadas precisamente as funções do BNA ligadas à inflação e sistema financeiro;
  • O BNA torna-se uma autoridade administrativa independente e por isso “independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos”. É a famosa independência do banco central, que atualmente, é defendida pela maior parte da doutrina económica.
  • O Governador do BNA é nomeado pelo Presidente da República, ouvida a Assembleia Nacional. Note-se que a Assembleia Nacional não tem direito de veto, mas de audição.

A consagração da independência do banco central corresponde à moderna tendência dominante na doutrina económica. Os argumentos a favor da independência do banco central resumem-se facilmente. Considera-se que os governos tendem a tomar decisões erradas sobre a política monetária. Em particular, são influenciados por considerações políticas de curto prazo. Antes de uma eleição, a tentação é o governo cortar as taxas de juros, tornando os ciclos económicos de expansão e retração mais prováveis. Assim, se um governo tem um histórico de permitir a inflação, as expectativas de inflação começam a aumentar, tornando-a mais provável.

Um banco central independente pode ter mais credibilidade e inspirar mais confiança. Ter mais confiança no banco central ajuda a reduzir as expectativas inflacionárias. Consequentemente, torna-se mais fácil manter a inflação baixa. Há assim a tentativa de introduzir credibilidade adicional na política monetária e acentuar o combate à inflação. Note-se que a inflação é um mal que perdura na economia angolana há demasiado tempo.

Esta medida está correta e deve ser considerada positiva.

ARTIGO 104.º

  • A última alteração diz respeito à explicitação da diferenciação entre o Orçamento Geral do Estado e as Autarquias, fazendo parte da preparação material para instalação das autarquias.

Conclusão

Minimalista, a proposta revisão constitucional na área da economia e finanças visa reforçar os sinais da economia de mercado e estabilidade macroeconómica, sendo de destacar como elemento essencial desta lei a consagração da independência do banco central e o seu foco no combate à inflação.

*****

Anexo: Nova redação proposta das normas referentes ao sector económico e financeiro

“Artigo 14.º

(Propriedade privada e livre iniciativa)

O Estado respeita, e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e promove a livre iniciativa económica e empresarial, exercida nos termos da Constituição e da Lei”.

“Artigo 37.º

(Direito e limites da propriedade privada)

1. […].

2. […].

3. […].

4. Lei própria define as condições em que pode ocorrer a nacionalização de bens privados por ponderosas razões de interesse nacional e do confisco por ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado”.

“Artigo 92.º

(Sectores Económicos)

1. […].

2. O Estado reconhece e protege o direito de propriedade comunitária para o uso e fruição de meios de produção pelas comunidades rurais e tradicionais, nos termos da Constituição e da lei.

3. Lei própria estabelece os princípios e regras a que fica sujeito o sector não estruturado da economia, visando o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia”.

“Artigo 100.º

(Banco Nacional de Angola)

1. O Banco Nacional de Angola, como banco central e emissor da República de Angola, garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro, nos termos da Constituição e da lei.

2. Enquanto autoridade administrativa independente, o Banco Nacional de Angola é independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos a si acometidos, nos termos da Constituição e da lei.

3. O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional, competente em razão da matéria, nos termos da Constituição e da lei, observando-se, para o efeito, o seguinte procedimento:

a) a audição é desencadeada por solicitação do Presidente da República;

b) a audição à entidade proposta termina com a votação do relatório nos termos da lei;

c) Cabe ao Presidente da República a decisão final em relação à nomeação da entidade proposta.

4. O Governador do Banco Nacional de Angola envia ao Presidente da República e à Assembleia Nacional, um relatório sobre a evolução dos indicadores de política monetária, sem prejuízo das regras de sigilo bancário, cujo tratamento, para efeitos de controlo e fiscalização da Assembleia Nacional é assegurado nos termos da Constituição e da lei”.

“Artigo 104.º

(Orçamento Geral do Estado)

1. […].

2. O orçamento Geral do Estado é unitário, estima o nível de receitas a obter e fixa os limites de despesas autorizadas, em cada ano fiscal, para todos os serviços, institutos públicos, fundos autónomos e segurança social e deve ser elaborado de modo a que todas as despesas nele previstas estejam financiadas”.

3. O Orçamento Geral do Estado apresenta o relatório sobre a previsão de verbas a transferir para as autarquias locais, nos termos da lei.

4. A lei define as regras da elaboração, apresentação, adopção, execução, fiscalização e controlo do Orçamento Geral do Estado.

5. A execução do Orçamento Geral do Estado obedece aos princípios da transparência, responsabilização e da boa governação e é fiscalizada pela Assembleia Nacional e pelo Tribunal de Contas, nos termos e condições definidos por lei”.


[1] Todas as citações sem fonte específica mencionada são do Relatório de Fundamentação da Proposta de Lei de Revisão Constitucional 2021 tornada pública pelo Governo.

[2]  Alain de Janvry e Elisabeth Sadoulet, Development Economics, 2016, p. 19

[3]  Moiani Matondo, Em defesa das zungueiras e da economia informal, MakaAngola. https://www.makaangola.org/2020/04/em-defesa-das-zungueiras-e-da-economia-informal/