A atual situação económica na China e Angola
Crise da economia chinesa: factos e causas
Está a existir um problema na economia chinesa que parece estrutural e poderá afetar as relações com países devedores, como Angola. Vários fatores estão a contribuir para uma diminuição do crescimento económico na China e o aumento do desemprego, sobretudo jovem, o que poderá também implicar alguma instabilidade política dentro da própria China.
Comecemos por referir alguns dados avulsos recentes[1]:
-Os dados de crédito de julho divulgados no passado dia 11 de Agosto mostraram uma queda na procura de empréstimos por parte de empresas.
-As vendas no retalho subiram apenas 2,5% em julho em relação ao ano anterior, abaixo das expectativas de um aumento de 4,5%.
-A produção industrial somente aumentou 3,7% em julho em relação ao ano anterior, abaixo do aumento de 4,4% que os analistas esperavam.
A verdade é que as estatísticas recentes publicadas pela China causaram severa preocupação. Além das estatísticas acima mencionadas, os preços ao consumidor em julho estavam mais baixos do que há um ano, sugerindo que se pode estar à beira da deflação, o que reflete uma escassez crónica da procura na economia. O comércio exterior da China no mesmo mês de julho mostrou uma queda acentuada nas exportações devido à fraca procura global, acompanhada por um declínio mais acentuado nas importações, significando a referida fraqueza na procura doméstica. As empresas e famílias chinesas estão “encolhidas”[2]. A gravidade da situação levou a que numa reunião do Politburo no mês passado, os dirigentes da China se referissem à recuperação económica deste ano como “tortura[3].”
Todo este fraco desempenho levanta-nos várias reflexões. A primeira é que não se deve entrar em exageros. Assim, como houve um exagero nos anúncios pretéritos acerca da China como superpotência económica, quando o seu PIB per capita não ultrapassa os 13.000 USD em 2021,[4] enquanto o PIB per capita nos Estados Unidos é de mais de 70.000 USD, ou mesmo em Portugal de 25.000 USD, também não se deve entrar no exagero contrário, de que a China entrou num abismo insuperável. O evidente é que a economia chinesa está num momento de correção como acontece a todas as economias, possivelmente, necessitando de profundas reformas e ajustamentos políticos.
Portanto, o contexto que adotamos neste trabalho é de considerar uma crise na economia chinesa, mas acreditar que as escolhas certas de política podem ultrapassar essa crise.
Neste preciso momento, a esperança de recuperação chinesa após a pandemia desvaneceu-se, pois, o consumo geralmente tem sido muito moderado, especialmente para itens caros, como carros e casas, e o investimento privado, a espinha dorsal da economia da China, caiu no primeiro semestre deste ano, pela primeira vez desde que tais dados foram publicados. As empresas privadas e os empresários não gastam muito em investimentos ou na contratação de pessoal. O desemprego juvenil atingiu 21%. A formatura anual de 11 a 12 milhões de estudantes neste verão vai agravar uma situação já difícil por causa dos problemas de encontrar trabalho adequado e também porque o mercado de trabalho chinês se tornou naquele em que a maioria dos empregos são de baixa remuneração, baixa habilitação ou economia informal.
Parece errado atribuir tudo isto à pandemia. A maioria das ameaças à economia da China estava a crescer há alguns anos. O problema fundamental é que a China gerou, durante a última década ou mais, uma montanha de dívidas incobráveis, infraestruturas e imóveis não lucrativos e não comerciais, blocos de apartamentos vazios, instalações de transporte pouco usados e excesso de capacidade, por exemplo, em carvão, aço, painéis solares e veículos elétricos. O crescimento da produtividade estagnou e a China pode ostentar um dos mais altos níveis de desigualdade do mundo[5].
Além disso, sob Xi Jinping, desenvolveu um sistema de governação mais intenso, centrado no Estado e controlador, tanto por razões políticas, quanto para lidar com os efeitos de seu modelo de desenvolvimento em dificuldades.
Temos dúvidas até que ponto as intervenções políticas para limitar alguns bilionários como Jack Ma[6] foram positivas para o ambiente económico. Se é verdade que evitaram o perigo russo do domínio oligárquico do Estado e deram um sinal à população em geral de um poder preocupado com excessos, também é certo que fizeram soar calafrios no espírito empresarial necessário para uma economia competitiva. Todos terão medo de crescer em demasia, de dar demasiado nas vistas, no final de contas, de inovar. Pois a inovação e a atenção exagerada podem ter reflexos negativos.
De certa forma, o “espírito animal” de que Keynes falava como motor de qualquer economia saudável foi “domesticado” na China e esse poderá ser o principal problema da sua economia, não sendo mensurável nem resolúvel com medidas técnicas.
Reação chinesa e outras possibilidades de rumo
Para já a China anunciou a suspensão da divulgação da taxa oficial de desemprego entre os jovens urbanos da China, entre os 16 e os 24 anos, que atingira em junho um novo recorde histórico de 21,3%. O Conselho de Estado publicou novas diretrizes para intensificar esforços para atrair investimento estrangeiro. E o banco central baixou as taxas de juro[7].
Nenhuma destas medidas parece ter força para inverter o ciclo de declínio da economia chinesa.
Muitos autores defendem que seria necessário um estímulo fiscal avultado para dinamizar a economia, que não deveria ser traduzido em mais dívida, mas em pura “impressão” de moeda, o que faz sentido numa situação de deflação. Uma espécie de “helicópteros com dinheiro” a sobrevoar as cidades e a largá-lo.[8]
Também é possível que esta crise obrigue o presidente chinês a uma revisão da sua política em relação aos grandes grupos económicos e ao empresariado em geral, optando, tal como Lenine há um século, por uma nova liberalização e flexibilização, procurando igualmente, aligeirar a tensão que se foi criando entre a China e os Estados Unidos.
Na verdade, acreditamos que uma boa parte da solução para os atuais problemas económicos chineses resida na política e não na economia, e quer na política interna, como na externa. Provavelmente, a nível interno o sistema mais adequado para sair da crise seria a reintrodução do sistema mais ambíguo e flexível dos tempos de Jiang Zemin. Jiang Zemin, presidente da China de 1993 a 2003, é considerado “o homem que mudou a China”. Muitos chineses que cresceram na década de 1990 lembram-se de Jiang Zemin por supervisionar a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, e também por permitir a difusão do filme Titanic. Durante a crise financeira asiática, Jiang enfatizou a importância das finanças e da segurança financeira para a segurança nacional da China e a construção de uma economia moderna. Ao mesmo tempo, tal não implicou uma menorização do poder do Partido Comunista Chinês e do seu controle político. Alguns autores apontam-lhe um histórico manchado em relação aos direitos humanos e à liberdade de expressão. Zemin supervisionou a repressão aos dissidentes nacionais, a proibição de grupos religiosos como o Falun Gong e a supressão da imprensa e da Internet e também manteve uma posição intransigente em relação a Taiwan[9].
A vantagem para a China de Jiang Zemin é que soube manter um ponto de equilíbrio entre a libertação das forças de mercado e inovação, e o controlo da China pelo partido Comunista.
E, a nossa opinião, é que uma boa parte da crise chinesa não resulta apenas ou sobretudo de fatores económicos, mas sim da perda desse ponto de equilíbrio que é necessário recuperar.
Obviamente, que tal não depende apenas da liderança chinesa, também tem de contar com uma modificação da situação externa de quase-confronto entre os Estados Unidos e a China.
É sabido que desde o tempo de Donald Trump que houve uma inflexão na política externa norte-americana aumentando a agressividade face à China. O que parecia um “trumpismo”, tornou-se uma política central norte-americana com Joe Biden e hoje os Estados Unidos veem e tratam a China como um potencial inimigo futuro que é preciso conter. Naturalmente, que tal coincidiu com a afirmação nacionalista de Xi Jinping que abandonou a anterior cautela externa, e passou a querer uma China forte no contexto mundial e sem complexos, pretendendo que o país fosse uma alternativa pós-hegemónica aos Estados Unidos. Portanto, de ambos os lados tivemos uma iniciativa voluntária confrontacional.
A questão que se coloca é se é possível uma retração e a criação dum novo espaço de colaboração EUA-China, que certamente aumentará a prosperidade da China, ou se o rumo é definitivamente o confronto estratégico? Neste confronto a China, perdendo as capacidades de inovação ligadas ao espírito empresarial tenderá a compartimentar-se e fechar-se, o que aumenta quer as possibilidades de elevação dos níveis de conflito (guerra mais ou menos direta) e dificulta qualquer recuperação económica chinesa.
Impactos em Angola
Esta é a situação real da economia chinesa neste momento. Como referido, os “travões” fundamentais ao crescimento parecem ser dois: do ponto de vista económico, a excessiva dívida, e do ponto de vista político, que a nós nos parece mais importante para o médio e longo-prazos, a acentuação da força do poder político na economia e na sociedade, e a condenação política do espírito empresarial e da inovação.
Face a este cenário, Angola confronta-se com vantagens e desvantagens que atuam de forma dinâmica.
Uma vantagem resulta da aproximação de Luanda aos Estados Unidos e das relações que mantém com a China. Angola poderá ser um país-ponte para o reencontro entre as duas potências, uma espécie de terreno em que se comprove que ambos podem cooperar, competir e subsistir para benefício mútuo. Todavia, também se pode tornar pela mesma razão como uma desvantagem, transformando-se Angola num dos campos de disputa entre as duas potências, querendo ambas puxá-la para a sua esfera de influência. Aqui estaria mais um equilíbrio difícil de manter para João Lourenço.
Em termos económicos, haverá a possível tendência das autoridades chinesas acentuar alguma inflexibilidade em relação a dívidas externas, tal podendo já estar a acontecer com Angola, ou vir a acontecer. É a reação normal de países em “aperto.” Há, portanto, o perigo de uma maior pressão chinesa em termos económicos em relação a Angola, que poderá colocar em perigo as, novamente, periclitantes finanças públicas angolanas.
O espírito “árvore das patacas” (de largueza) que predominou nas relações financeiras China-Angola a partir de 2002 terminou definitivamente e não será recuperado. A China comportar-se-á com Angola, com maior ou menor detalhe, como qualquer outro credor internacional, e a sua pressão aumentará à medida que a situação económica interna chinesa se deteriore. Outro desafio para João Lourenço.
Há uma vantagem que Angola poderá oferecer à China que é a criação de um amplo mercado de trabalho para a sua juventude já formada. Acordos de cooperação poderão ser feitos para colocar chineses em Angola para formar quadros angolanos e ajudar à implementação de políticas em áreas como a Administração Pública em que a China tem uma milenar experiência ou as telecomunicações e tecnologias de informação.
O sistema de função pública chinês proporcionou estabilidade ao império chinês durante mais de 2.000 anos e proporcionou uma das principais saídas para a mobilidade social na sociedade chinesa e atualmente, conseguiu nos anos 1980s realizar uma transição de sucesso duma economia centralizada marxista para uma economia mista com um crescimento acentuado.
Igualmente, a China tornou-se um dos maiores mercados de telecomunicações do mundo, com mais de mil milhões de utilizadores de Internet e uma receita mensal de mais de 130 mil milhões de yuans provenientes do sector das telecomunicações. O país passou por várias ondas de reformas nas últimas três décadas no sentido da liberalização e privatização da sua indústria de telecomunicações. Ora é a experiência adquirida nesta imensidão que pode ser colocada ao serviço dos angolanos.
Nestes termos, a fase atual das relações China-Angola poderá deixar em parte o capital físico e centrar-se no capital humano, mostrando que as relações entre países podem maturar. Angola poderá proporcionar uma oportunidade de escape para as empresas chinesas e os seus jovens.
O que se tem de atentar é que a relação entra numa fase “madura” em que cada país tem os seus interesses que deve defender. Da China já não virão “chuvas de dinheiro”, mas investimentos racionais, e é com isso que Angola deve contar e contrapor. Na verdade, em termos de mercados de futuro, oportunidades de investimento e escape para os problemas chineses, Angola tem muito a oferecer e pode ser a “moeda de troca” em várias negociações.
[1] https://www.cnbc.com/2023/08/14/china-economy-new-loans-fall-property-fears-low-consumer-sentiment-.html
[2] https://www.cnbc.com/2023/08/17/david-roche-chinas-economic-model-is-washed-up-on-the-beach.html
[3] https://www.theguardian.com/business/2023/aug/11/china-economic-problems-show-things-are-seriously-amiss
[4] https://www.ceicdata.com/pt/indicator/china/gdp-per-capita
[5] Sobre os problemas estruturais e de longo prazo da economia chinesa ver Frank Dikotter, A China depois de Mao – A ascensão de uma superpotência, 2023.
[6] https://www.forbes.com/sites/georgecalhoun/2021/06/07/the-sad-end-of-jack-ma-inc/
[7] https://www.nytimes.com/2023/08/15/business/china-economy-downturn-unemployment.html, https://www.bloomberg.com/news/features/2023-08-20/xi-jinping-is-running-china-s-economy-cold-on-purpose?in_source=embedded-checkout-banner,
[8] Rui Verde, Helicópteros com Dinheiro, 2013
[9] https://www.cfr.org/blog/jiang-zemin-put-chinas-economic-opening-practice