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Angola: nova constituição, nova república?

DOCUMENTO DE REFLEXÃO

Situação atual e anocracia

Numa situação habitual, a agitação e tensão que se sentiu nos meses que precederam as eleições gerais de agosto de 2022 em Angola, teria dado lugar à normalidade e tranquilo funcionamento das instituições até ao seguinte ato eleitoral a ocorrer em 2027. No entanto, as fortes clivagens que se sentiram e aquela espécie de contenda quase global que existiu até agosto não parece diminuir, criando uma situação de constante agressão, sem um fim à vista no presente sistema. Sintoma disso é a recente entrevista dada pelo líder da oposição a um jornal português, em que declara “Nem eu, nem o partido reconhecemos a vitória do MPLA, porque sabemos que a UNITA teve mais votos. Escutámos as pessoas em todo o país. A sociedade queria que tomássemos conta das instituições, mas não quisemos o caos.”[1]

Consequentemente, de um lado, o principal partido da oposição assumiu uma política que chamaremos de “dupla via”. Tal política contesta o governo dentro das instituições, embora não lhes reconhecendo legitimidade, desafiando também as próprias instituições. A “via dupla” aceita que a oposição se faz dentro das instituições e fora delas; de certa maneira, as instituições são vistas como mais um instrumento de um projeto mais amplo de confronto com o governo. Ora é evidente que esta postura leva a um maniqueísmo difícil de gerir e coloca em causa qualquer abertura e respeitabilidade que se pretenda com o investimento. A falta de respeito pelas instituições torna tudo demasiado dependente da vontade dos decisores políticos e da conjuntura.

Do outro lado, o partido do governo sente-se embaraçado em levar avante as suas anunciadas reformas, é como se o partido não fosse um, mas dois partidos. Uma massa partidária está insatisfeita com as mudanças propostas, queria que João Lourenço fosse apenas um gestor mais hábil do que José Eduardo dos Santos, mas não que introduzisse reformas de fundo, outro sector pretende que sejam tomadas efetivas reformas e sente-se incomodado com a eventual lentidão dessas reformas. Têm a noção que sem um profundo processo reformista, Angola se pode transformar num Estado sem futuro.

Há assim uma forte instabilidade, por razões diversas, nos partidos que formam a sustentação do sistema político. A Assembleia Nacional não parece ser uma câmara deliberativa do sentir da nação, mas um mero palco duma disputa mais alargada, tornando-se num meio e não num fim, retirando-lhe o peso soberano que lhe seria inerente. Com um registo mais atemorizador surge a justiça. Aquele que é o pilar básico de um Estado Democrático de Direito, oferece mais dúvidas do que certezas. No combate à corrupção, com honrosas exceções, o sistema judicial tem-se pautado pela ineficiência e lentidão, não se percebendo já para onde caminha esse programa estruturante do Estado.  Como já escrevemos: “É verdade que o desenho do Tribunal Supremo contido na Constituição de 2010 ajuda à sua disfuncionalidade. Na verdade, o legislador constitucional angolano quis fazer um tribunal seguindo o modelo da Supreme Court norte-americana enxertado num sistema judicial de tipo romano-germânico, isto é, português. Ora um tribunal de topo no sistema judicial português, alemão ou francês, nada tem a ver com um tribunal de topo num sistema anglo-americano. São conceitos e estruturas judiciais diferentes. O que se pede a um tribunal supremo norte-americano não é o que se pede a um supremo tribunal português. No primeiro caso, apenas grandes e inovadoras questões de direito lá chegam. É já uma espécie de tribunal de reflexão, enquanto, no segundo caso-romano-germânico- o supremo funciona como última instância de recurso para quase todos os casos judiciais. Todavia em Angola, pensou-se um tribunal à americana para funcionar à portuguesa. Portanto, uma estrutura leve e que apenas se dedicava a um pequeno número de processos teve de se defrontar com a tarefa de ser um tribunal habitual de recurso para uma miríade de casos. Isso só podia dar mau resultado, como deu. Além da disfuncionalidade do desenho constitucional, tem-se entendido que os juízes do Tribunal Supremo não têm a preparação adequada para lidar com as complexidades do crime económico-financeiro, não tendo ao longo da sua carreira deparado com essas questões ao nível sofisticado a que têm estado a aparecer, o que tem levado a algumas decisões muito criticadas e a grande mora processual. Iniciando o país simultaneamente uma fase de grande apelo ao investimento estrangeiro, bem como apostando na luta contra a corrupção, é bem de ver que um tribunal mal desenhado e pensado para outros tempos tem de ser reformado e remodelado.”[2]

No seu geral, a justiça não tem oferecido garantias de celeridade e imparcialidade técnica, e os seus atores têm tido uma tendência surpreendente para se envolverem em escândalos consecutivos.

Por parte da população começa a haver uma ideia tímida, mas discutida em vários fora, que as atuais instituições e partidos políticos foram concebidos para um ambiente de guerra e confronto, estando essas características no seu âmago, e, por isso, não estão aptos a lidar com uma nova Angola, em que os objetivos centrais sejam o desenvolvimento e o bem-estar da população. Quer isto dizer que se considera que os “velhos” partidos já não correspondem aos desejos e interesses da população, não oferecendo soluções consistentes e apelativas. A taxa de abstenção das últimas eleições gerais (54%) é espelho dessa situação.

Uma Assembleia Nacional que se transformou em mero instrumento-eco de poder e contrapoder, uma justiça inepta e um sistema partidário anacrónico, definem o presente sistema institucional angolano.

Toda esta situação, um pouco difusa, mas cujos sinais abundam, podem tornar o país numa anocracia. O que é uma anocracia? A anocracia vem sendo definida como um regime instável que combina elementos de autoritarismo e democracia. A anocracia tem um desenvolvimento incompleto de mecanismos de dissensão e consensualização e associa-se a uma permanente agitação ou ingovernabilidade, que dificultam o processo político[3]. A existência duma situação anocrática aumenta a probabilidade [4] de uma guerra civil. Colocando o tema de outra forma, o que procura interrogar é se a situação angolana se apresenta inerentemente instável e pode redundar numa guerra civil?

A resposta é simples, embora tendo duas partes. Não, Angola não vive ainda uma situação de anocracia. Contudo, são exigíveis medidas estruturantes que ultrapassem os presentes bloqueios e insatisfações.

Nova Constituição e Nova República

É necessário criar um Estado ágil, com instituições respeitadas, uma administração pública funcional e uma economia de mercado com atores livres e competitivos, tudo contribuindo para o progresso e bem-estar da população. As estruturas herdadas do colonialismo e das guerras têm de ser transformadas e trocadas por estruturas da modernidade e desenvolvimento, tendo em conta a cultura e história de Angola.

É fundamental um novo ciclo histórico com uma nova estrutura.

A primeira medida é estabelecer uma nova constituição. A atual constituição de 2010 não é consensual e, até certo ponto, é um equívoco jurídico desenhado para agradar aos desejos pessoais de José Eduardo dos Santos. Fundamental será propor uma nova constituição mais angolana e mais protetora das instituições, que marque um recomeço. Entende-se que essa nova Constituição deveria abordar aspetos tão diferentes como a possibilidade de eleição separada (direta ou indireta) do Presidente da República, conferindo-lhe uma legitimidade própria e garantindo que o Presidente se apresente como um líder nacional e não um líder partidário, a criação de uma segunda câmara legislativa composta pelas autoridades tradicionais (permitindo a introdução de vozes diferentes e plurais no processo legislativo, recuperando a cultura africana), a introdução de mecanismos de democracia militante como tem a lei fundamental alemã (como  Karl Loewenstein[5] escreveu a democracia deveria ser capaz de resistir àqueles agentes políticos que utilizam instrumentos democráticos para assegurar o triunfo de projetos totalitários ou autoritários de poder, isto significando, que a constituição tem de conter mecanismos de defesa e repressão das tentativas de derrube do regime constitucional, o que agora não existe com força suficiente na constituição angolana). Obviamente, que a reformulação do poder judicial, a mudança da simbologia da república, seriam outros aspetos desta nova constituição.

Não basta uma mudança constitucional sem se tratar da organização e administração do Estado.  Também aqui o projeto de transformação tem de ser abrangente e procurar-se a libertação dos modelos coloniais e marxistas, introduzindo uma administração pública adequada aos novos tempos. Exemplos podem vir da Ásia, como a China e Singapura[6], ou dos países vizinhos como o Botswana ou a África do Sul. O paradigma tem de ser uma administração baseada no mérito, assente na eficácia e no serviço à população. Naturalmente, que tal implica o fim da influência clientelista na administração, a desconcentração com autonomia e capacidade de tomada de decisão, uma forma completamente nova de ver o procedimento administrativo, não como um conjunto de regras, mas um conjunto de boas práticas e objetivos vocacionados para o bem comum e eficácia.

É evidente que apenas se deixam aqui alguns tópicos sobre as mudanças estruturais aconselháveis, segundo a nossa perspetiva, para transformar Angola num Estado moderno e próspero.


[1] Adalberto da Costa Júnior, entrevista ao Nascer do Sol, 20-01-23

[2] CEDESA (2022). A necessária reforma do Tribunal Supremo em Angola, https://www.cedesa.pt/2022/11/24/a-necessaria-reforma-do-tribunal-supremo-em-angola/

[3]  Jennifer Gandhi e James Vreeland (2008). “Political Institutions and Civil War: Unpacking Anocracy”. Journal of Conflict Solutions. 52 (3): 401–425; Patrick Regan and Sam Bell, Sam (2010). “Changing Lanes or Stuck in the Middle: Why Are Anocracies More Prone to Civil Wars?”. Political Science Quarterly. 63 (4): 747–759.

[4] Patrick Regan and Sam Bell, Sam (2010). “Changing Lanes or Stuck in the Middle: Why Are Anocracies More Prone to Civil Wars?”. Political Science Quarterly. 63 (4): 747–759.

[5] Karl Loewenstein (1937) Militant Democracy and Fundamental Rights, in: American Political Science Review 31.

[6] M. Shamsul Haque (2009), Public Administration and Public Governance in Singapore in Pan Suk Kim, ed., Public Administration and Public Governance in ASEAN Member Countries and Korea. Seoul: Daeyoung Moonhwasa Publishing Company, 2009. pp.246-271.

A necessária reforma do Tribunal Supremo em Angola

1-Razões que fundamentam a reforma do Tribunal Supremo em Angola

A justiça angolana tornou-se, algo repentinamente, um dos temas quotidianos da discussão no espaço público. Isso aconteceu, essencialmente, devido ao facto da denominada “luta contra a corrupção” ser realizada através dos tribunais comuns. Parece óbvio que assim seja, mas, na realidade, não é tão habitual. Cada país tem escolhido os métodos que considera mais adequados para essa tarefa. Na China, onde debaixo da presidência de Xi Jinping se desenvolve um poderoso esforço contra a corrupção, tal empenho tem sido feito através de mecanismos internos do Partido Comunista, só intervindo os tribunais, numa fase final[1]. Na África do Sul, optou-se por criar uma Comissão que tudo explorou e analisou, e só depois, tendo um imenso dossier pronto, enviou os resultados para o poder judicial[2]. Quer isto dizer que não é obrigatório que o combate à corrupção se centre ou comece pelos tribunais. No entanto, foi essa a opção angolana.

Essa opção fez surgir demasiado à vista algumas fragilidades do Tribunal Supremo. A discordância entre vários juízes tornou-se patente, os atrasos e falta de decisão também, e a fundamentação discutível de muitos acórdãos tem sido anotada por muitos comentadores[3].

É verdade que o desenho do Tribunal Supremo contido na Constituição de 2010 ajuda à sua disfuncionalidade. Na verdade, o legislador constitucional angolano quis fazer um tribunal seguindo o modelo da Supreme Court norte-americana enxertado num sistema judicial de tipo romano-germânico, isto é, português. Ora um tribunal de topo no sistema judicial português, alemão ou francês, nada tem a ver com um tribunal de topo num sistema anglo-americano. São conceitos e estruturas judiciais diferentes. O que se pede a um tribunal supremo norte-americano não é o que se pede a um supremo tribunal português. No primeiro caso, apenas grandes e inovadoras questões de direito lá chegam. É já uma espécie de tribunal de reflexão, enquanto, no segundo caso-romano-germânico- o supremo funciona como última instância de recurso para quase todos os casos judiciais.

Ora em Angola, pensou-se um tribunal à americana para funcionar à portuguesa. Portanto, uma estrutura leve e que apenas se dedicava a um pequeno número de processos teve de se defrontar com a tarefa de ser um tribunal habitual de recurso para uma miríade de casos. Isso só podia dar mau resultado, como deu.

Além da disfuncionalidade do desenho constitucional, tem-se entendido que os juízes do Tribunal Supremo não têm a preparação adequada para lidar com as complexidades do crime económico-financeiro, não tendo ao longo da sua carreira deparado com essas questões ao nível sofisticado a que têm estado a aparecer, o que tem levado a algumas decisões muito criticadas e a grande mora processual.

Iniciando o país simultaneamente uma fase de grande apelo ao investimento estrangeiro, bem como apostando na luta contra a corrupção, é bem de ver que um tribunal mal desenhado e pensado para outros tempos tem de ser reformado e remodelado.

Não se afigurando possível pensar, neste momento, numa revisão constitucional, qualquer reforma deve ser feita no quadro da constituição em vigor.

2- As propostas de reforma do Tribunal Supremo (TS)

a) Aumento do número de juízes: 50

A primeira medida é quantitativa, mas necessária, face aos atrasos e imperativo de renovação técnica e geracional do Tribunal Supremo. Neste momento, o TS tem um quadro de 21 juízes, que está a ser alargado para 31 juízes nos termos da presente Lei Orgânica do Tribunal Supremo (Lei n.º 2/22, de 17 de Março).

Parece insuficiente. Portugal com uma população de um terço face a angolana tem 50 juízes conselheiros no seu Supremo Tribunal de Justiça. Espanha, com uma população mais semelhante a Angola, tem 71 magistrados no seu Tribunal Supremo. Por estes números e atendendo à semelhança de competências alargadas que estes tribunais têm em Angola, Portugal ou Espanha, facilmente se vê que são necessários mais juízes no tribunal em Angola daqueles que agora estão previstos.

Acredita-se que 50 (cinquenta) será um número adequado juízes no Tribunal Supremo de Angola, que permitirá uma forte renovação, tão imperativa, deste tribunal.

b) Racionalização das Câmaras: a Câmara de Assuntos Económicos e a Secção de crimes económico-financeiros

Os objectivos da política judicial impõem uma revisão do número de Câmaras no TS e uma maior especialização. Neste momento, a lei prevê cinco Câmaras: a Câmara Criminal, a Câmara do Cível, a Câmara do Contencioso Administrativo, Fiscal e Aduaneiro e a Câmara do Trabalho e a Câmara da Família e Justiça Juvenil (art.º 17.º da Lei Orgânica). No entanto, parecem estar apenas em funcionamento as Câmaras Criminal, Civil e Administrativa e do Trabalho.

Parecia melhor proceder a uma racionalização das Câmaras de acordo com as necessidades efectivas da sociedade. Assim, haveria uma Câmara Criminal, uma Câmara Civil (que englobaria a família e menores), uma Câmara Social (trabalho, segurança social e afins), uma Câmara Administrativa e Fiscal, e uma nova Câmara intitulada Câmara de Assuntos Económicos, esta Câmara teria duas secções, uma de Contencioso Comercial para lidar com os grandes contratos com relevância para o investimento e outra de Crimes Económico-Financeiros, especializando-se apenas no julgamento de crimes como a corrupção, branqueamento, peculato, etc.

No fundo, esta nova Câmara dos Assuntos Económicos seria responsável por responder aos novos desafios de política de investimento e contra a corrupção.

c) Modelo transparente de nomeação do Presidente: audição na Assembleia Nacional

Os dois mais recentes presidentes do Tribunal Supremo (Rui Ferreira e Joel Leonardo), por razões diferentes, têm sido alvo de muita contestação. Aliás, Rui Ferreira demitiu-se devido a essa contestação enquanto Joel Leonardo tem dificuldade em gerir os seus pares.

A CRA no seu artigo 180.º, nºs 3 e 4 estabelece que o Presidente do Tribunal Supremo é nomeado pelo Presidente da República, de entre 3 candidatos seleccionados por 2/3 dos Juízes Conselheiros em efectividade de funções, sendo o seu mandato de sete anos, não renovável.

Joel Leonardo foi designado pelo Presidente da República em 2019, portanto, o seu mandato só termina em 2026. Leonardo nasceu em 1962, pelo que só fará 70 anos em 2032.Quer isto dizer que, ao contrário de muitos rumores que fluem no mundo jurídico de Luanda, em termos formais, falta muito tempo para terminar o seu mandato.

No entanto, deveria ser introduzido um mecanismo adicional na nomeação, semelhante ao adoptado na recente revisão constitucional em relação ao Governador do Banco Nacional de Angola.

Nestes termos, o Presidente do Tribunal Supremo deveria ser nomeado pelo Presidente da República após audição na Assembleia Nacional, observando-se, para o efeito, o seguinte procedimento:

a) A audição do candidato é desencadeada por solicitação do Presidente da República;

b) A audição do candidato proposto termina com a votação do relatório-parecer;

c) Cabe ao Presidente da República a decisão final em relação à nomeação do candidato proposto.

Consequentemente, o Presidente do Tribunal Supremo só seria designado depois de ouvido publicamente na Assembleia Nacional.

d) Imparcialidade e independência no TS: o modelo do Botswana, juízes visitantes

Uma das críticas que mais se ouve acerca do poder judicial em Angola é sobre a sua falta de independência ou pouca imparcialidade, seja perante o Executivo, seja perante mais fortes/poderosas. Não entramos aqui na substância dessas alegações, mas anotamos que mesmo que sendo falsas, a percepção da justiça desempenha um papel significativo. Não basta sê-lo, é preciso parecê-lo. Vem sempre à memória o dito do juiz inglês “”Não apenas a Justiça deve ser feita;  também, deve ser vista a ser feita”, proferida por  Lord Hewart CJ em R v Sussex Justices, ex parte McCarthy ([1924] 1 KB 256, [1923] All ER Rep 233). Portanto, não se trata apenas de defender que a justiça angolana não é dependente ou parcial, mas de utilizar símbolos que atestem essa mesma prática.

Um exemplo descomplexado pode ser aquele que durante muitos anos foi utilizado no Botswana, que em nada diminuiu o orgulho nacional ou soberania, e, pelo contrário, aumentou o prestígio do seu sistema de governo. Na verdade, até 1992, no Tribunal Superior (High Court) –o segundo mais importante na hierarquia dos tribunais- os juízes eram estrangeiros expatriados nomeados com contratos curtos de 2 a 3 anos[4]. No Tribunal Supremo (Court of Appeal), ainda um terço dos juízes são visiting justices (juízes visitantes)[5].

Quer isto dizer que algo de semelhante se poderia pensar para Angola, isto é, guardar algumas vagas no Tribunal Supremo (talvez um quarto) para juízes ou juristas de mérito contratados no estrangeiro com contratos suficientemente longos para lhes garantir a independência, mas não renováveis. Talvez contratos de cinco a sete anos.

Esses juízes visitantes teriam exactamente os mesmos poderes e competências que os outros juízes, apenas não poderiam ser Presidentes ou Vice-Presidentes do Tribunal, contudo, poderiam ocupar a função de Presidente de Câmara ou qualquer outra. Seriam recrutados em países da SADC[6] e da CPLP.

Alargando desta forma o Tribunal Supremo a juízes visitantes poder-se-ia abrir uma janela de renovação doutrinária e garantia de imparcialidade com juízes de outros países suficientemente próximos, mas adequadamente afastados. Eventualmente, poderia ser uma medida provisória por 10 ou 15 anos.

O que esta medida permitiria era criar um corpo alargado de debate judicial com várias visões, algumas tendencialmente independentes, que permitiria um diálogo mais frutífero na criação de um direito justo.

***

Aqui ficam várias sugestões de reforma do Tribunal Supremo de Angola de forma a torná-lo mais célere e eficaz no cumprimento das suas tarefas, bem como aumentando as suas garantias de independência.


[1] Rahul Karan Reddy, The Diplomat, 2022, China’s Anti-Corruption Campaign: Tigers, Flies, and Everything in Between, https://thediplomat.com/2022/05/chinas-anti-corruption-campaign-tigers-flies-and-everything-in-between/

[2] Zondo Comission, https://www.statecapture.org.za/

[3] Ver por exemplo, Manuel Luamba, DW, Justiça angolana está em descrédito fora do país?, https://www.dw.com/pt-002/justi%C3%A7a-angolana-est%C3%A1-em-descr%C3%A9dito-fora-do-pa%C3%ADs/a-63253282

[4] Cfr. https://www.justice.gov.bw/services/about-high-court

[5] Cfr. https://www.gov.bw/legal/hierarchy-courts

[6] SADC- África do Sul, Angola, Botsuana, Lesoto, Malavi, Maurício, Moçambique, Namíbia, República Democrática do Congo, Seicheles, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. CPLP-Angola , Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau , Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.

Teorias da fraude eleitoral, legislação e escrutínio público em Angola

As imagéticas da fraude eleitoral em Angola

O ponto de partida para este estudo é a afirmação de uma conceituada investigadora durante o II Congresso Internacional de Angolanística segundo a qual as “próximas eleições em Angola deverão ser as menos transparentes e credíveis.”[1]

Recorde-se que Angola teve as suas primeiras eleições em 1992, após o que existiu um recrudescimento da guerra civil que terminou em 2002, e apenas voltou a ter eleições em 2008, a que se seguiram atos eleitorais em 2012 e 2017. Houve, portanto, até ao momento, quatro processos eleitorais em Angola.

As próximas eleições estão previstas para 24 de Agosto de 2022.

Em todas as eleições cuja contagem chegou ao final, o MPLA, partido no governo desde a independência em 1975 saiu vencedor com os seguintes resultados: 1992- 53.74%; 2008- 81,76%; 2012-71.84%; 2017-61.05%.

Quadro n. º1- Vencedor das eleições em Angola (1992-2017)

1992MPLA53,74%
2008MPLA81,76%
2012MPLA71,84%
2017MPLA61,05%

O interessante é que em todas as eleições, mesmo as de 1992[2], que tiveram ampla cobertura internacional e contaram com mais de 400 observadores estrangeiros, o principal partido da oposição alegou fraude.

Em 1992, dessas alegações resultou a renovação da guerra civil e um massacre e violência indisfarçáveis. Na verdade, a resolução da contenda só teve lugar com a morte do líder da oposição e o fim da guerra em 2002. Nas outras eleições acabou por haver aceitação final dos resultados e integração no funcionamento constitucional-legal.

Em 2008, estiveram presentes 90 observadores da União Europeia, e a vitória do MPLA foi esmagadora. Estava-se, aliás, na época do boom petrolífero. Mesmo assim a oposição clamou fraude, e exigiu a repetição das eleições devido aos atrasos que marcaram o processo, descrito pelo líder da oposição como “um desastre”, com inúmeras demoras por todo o país. Em todo o caso, apesar destes protestos, as eleições acabaram por ser aceites e os deputados tomaram os seus lugares. Desta vez não houve guerra e iniciou-se uma certa democratização da vida pública.

2012 foi novamente ano de eleições, e novamente, houve denúncia de irregularidades, mas sem a vocalidade do passado. A oposição tomou os seus lugares no parlamento e desempenhou o seu papel.

No ano de 2017, A União Africana enviou observadores para as eleições, com o objetivo de garantir as eleições democráticas, mas a União Europeia decidiu não mandar uma grande equipa de observadores. A oposição contestou os resultados, mas acabou por os aceitar após decisões do Tribunal Constitucional que validaram as eleições.

Há padrões que se repetem. Os dois primeiros são óbvios, a vitória do MPLA e a contestação permanente do processo pela oposição. Também se verifica intervenção de observadores externos, por exemplo 400 em 1992.

Apesar das acusações repetidas de fraude por parte dos candidatos derrotados, o certo, é que com a exceção de 1992, sempre acabaram por aceitar os resultados e tomar os seus lugares na Assembleia Nacional.

Comparações: Transparência e democraticidade em 2022

A questão que vamos responder é se as presentes eleições, marcadas para 24 de agosto de 2022, representam um decréscimo das condições eleitorais do passado, como afirmam alguns investigadores, ou se pelo contrário, mesmo não sendo perfeitas, apresentam uma manifesta evolução em termos de transparência e democraticidade.

Para avaliarmos as condições iremos proceder a uma revisão da legislação em vigor, bem como às características do atual escrutínio público face ao passado, pois acreditamos que este é o mecanismo crítico realista para aferir a transparência das eleições.

Legislação

Sobre a legislação em vigor há alguns aspetos a enfatizar, muitos dos quais têm sido alvo de equívocos ou interpretações pouco literais. As eleições estão agora reguladas pela Lei n.º 30/21 de 30 de dezembro, que alterou a Lei n.º 36/11, de 21 de dezembro — lei orgânica sobre as eleições gerais (LOEG). Na atual legislação temos de destacar os seguintes tópicos que se debruçam sobre o processo eleitoral:

i) Condições básicas: manifestação, direito de antena e financiamento

No período da campanha eleitoral, a liberdade de reunião e de manifestação para fins eleitorais rege-se pelo disposto na lei geral aplicável ao exercício das liberdades de reunião e de manifestação, com as seguintes especificidades (artigo 66.º da LOEG):

a) Os cortejos e desfiles podem realizar-se em qualquer dia e hora, respeitando-se apenas os limites impostos pela liberdade de trabalho, pela manutenção da tranquilidade e ordem públicas, pela liberdade e ordenamento do trânsito, bem como pelo respeito do período de descanso dos cidadãos.

b) A presença de agentes da autoridade pública em reuniões e manifestações organizadas por qualquer candidatura apenas pode ser solicitada pelos órgãos competentes das candidaturas, ficando a entidade organizadora responsável pela manutenção da ordem quando não faça tal pedido.

c)A comunicação à autoridade administrativa competente da área sobre a intenção de se promover uma reunião ou manifestação é feita com antecedência mínima de 24 horas.

O que resulta da lei é uma ampla possibilidade de manifestação, não havendo condicionalismos nem obstáculos assinaláveis.

Note-se aliás, que no período de pré-campanha já têm ocorrido grandes manifestações sem incidentes, quer por parte do partido do governo, quer por parte da oposição.

O líder da oposição tem-se deslocado livremente no território de norte a sul, concretamente, de Cabinda a Menongue e realizado grandes atos de massas, sem qualquer impedimento ou confronto. Este aspeto fundamental para o processo eleitoral tem estado assegurado.

Em relação ao direito de antena dispõe o artigo 73.º da LOEG que determina que as candidaturas às eleições gerais têm direito à utilização do serviço público de radiodifusão e televisão, durante o período oficial da campanha eleitoral, nos termos seguintes: a) Rádio: 10 minutos diários entre as 15 e as 22 horas; b) Televisão: 5 minutos diários entre as 18 e as 22 horas.

A lei garante aquilo que poderemos denominar como mínimos de intervenção política no período de campanha eleitoral.

Também o financiamento global de todos os partidos políticos efetuado pelo Estado está previsto e é imperativo nos termos do artigo 81.º da LOEG, que dispõe que o Estado atribuirá uma verba de apoio à campanha eleitoral das candidaturas às eleições gerais, que é distribuída de forma equitativa, podendo a mesma ser utilizada para apoio aos Delegados de Lista.

A letra da lei oferece suficientes garantias que determinados mínimos de equidade e concorrência entre partidos estão sustentados para as eleições de 2022[3].

ii) Votação e contagem dos votos

Esta é uma área em que tem havido muita discussão e talvez mal-entendidos ou interpretações erróneas. Portanto, é importante sublinhar as determinações essenciais da lei.

Em primeiro lugar, as mesas de voto, ao contrário do que se poderia pensar face a algumas análises publicadas, desempenham um papel fulcral no processo. Desde logo, o Delegado de Lista presente na Mesa de Voto pode solicitar esclarecimentos e apresentar, por escrito, reclamações relativas às operações eleitorais da mesma Mesa e instruí-los com os documentos convenientes, sendo que Mesa não pode recusar-se a receber as reclamações, devendo rubricá-las e apensá-las às atas, junto com a respetiva deliberação, cujo conhecimento será dado ao reclamante. (artigo 115.º da LOEG).

Isto quer dizer, que há uma fiscalização direta por cada um dos partidos em cada uma das Mesas de Voto. Aquilo a que poderíamos chamar uma fiscalização atomista. Cada átomo da eleição está a ser verificado.

Depois, é ainda na Mesa de Voto que se procede à abertura das urnas e contagem dos votos, também ao contrário do que tem sido afirmado.

Na verdade, encerrada a votação, o Presidente da Mesa, na presença dos restantes membros, procede à abertura da urna, seguindo-se a operação de contagem por forma a verificar a correspondência entre o número de Boletins de Voto existentes na urna e o número de eleitores que votaram naquela Mesa de Voto. (artigo 120.º da LOEG).

Em seguida, o Presidente da Mesa de Voto manda proceder à contagem dos Boletins de Voto, respeitando as seguintes regras:

a) O Presidente abre o boletim, exibe-o e faz a leitura em voz alta;

b) O primeiro escrutinador aponta os votos atribuídos a cada partido numa folha de papel branco ou, caso exista, num quadro grande;

c) O segundo escrutinador coloca em separado e por lotes, depois de os exibir, os votos já lidos correspondentes a cada um dos partidos, os votos em branco e os votos nulos;

d) O primeiro e o terceiro escrutinadores procedem à contagem dos votos e o Presidente da Mesa à divulgação do número de votos que coube a cada partido.

Terminada esta operação, bem detalhada na lei, o Presidente da Mesa de Voto procede ao confronto entre o número de votos existentes na urna e a soma do número de votos por cada lote. Os Delegados de Lista têm direito a verificar os lotes sem podendo reclamar em caso de dúvida para o Presidente da Mesa que analisa a reclamação. (artigo 121.º da LOEG).

Consequentemente, temos um ato eleitoral que é fiscalizado e os votos contados localmente em cada Mesa de Voto com a presença dos delegados de cada partido.

É isto que a lei define.

Após esta operação local, é elaborada uma ata da Mesa de Voto pelo Secretário da Mesa e devidamente assinada, com letra legível, pelo Presidente, Secretário, Escrutinadores e pelos Delegados de Lista que tenham presenciado a votação, sendo depois colocada em envelope lacrado que deve ser devidamente remetido, pela via mais rápida, à Comissão Provincial Eleitoral. (artigo 123.º da LOEG). Em sequência, compete à Comissão Nacional Eleitoral a centralização de todos os resultados obtidos e a distribuição dos mandatos (artigo 131.º da LOEG). Em síntese, o apuramento nacional é realizado com base nas atas-síntese e demais documentos e informações recebidas das Assembleias de Voto (artigo 132.º da LOEG).

Verifica-se assim que a contagem dos resultados é efetuada ao nível local, não havendo centralização da abertura de urnas nem das contagens, a centralização é realizada a posteriori, tendo como base os resultados obtidos nas Mesas de Voto.

Olhando para as disposições legais mencionadas vislumbra-se um mecanismo transparente e devidamente fiscalizado ao nível local.

A este mecanismo acresce que norma do artigo 116.º da LOEG que torna obrigatório que as tecnologias a utilizar nas atividades de escrutínio atendam aos requisitos da transparência e da segurança.

A mesma norma impõe a auditoria dos programas-fontes, dos sistemas de transmissão e tratamento de dados e dos procedimentos de controlo e torna imperativo que antes do início de cada eleição, o Plenário da Comissão Nacional Eleitoral realize uma auditoria técnica independente, especializada, por concurso público, para testar e certificar a integridade dos programas- -fontes, sistemas de transmissão e tratamento de dados e dos procedimentos de controlo a utilizar nas atividades de apuramento e escrutínio, a todos os níveis.

iii) A transparência da eleição do Presidente da República

O Boletim de Voto é impresso a cores, em papel liso e não transparente, de forma retangular com as dimensões apropriadas para que nele caibam todas as candidaturas admitidas à votação e cujo espaçamento e apresentação gráfica não induzam os eleitores em erro na identificação e sinalização exatas da candidatura por si escolhida.

Em cada Boletim de Voto são impressos o número de ordem, a designação estatutária do partido político, o nome do candidato a Presidente da República e a respetiva fotografia tipo passe, a sigla e os símbolos do partido político ou coligação de partidos políticos, dispostas verticalmente, umas abaixo das outras, pela ordem do sorteio efetuado pela Comissão Nacional Eleitoral, após a aprovação das candidaturas pelo Tribunal Constitucional (artigo 17.º da LOEG).

Isto significa que apesar do método de eleição presidencial próprio escolhido pela Constituição, o eleitor sabe manifestamente em quem está a votar para Presidente da República. Tem a face e o nome indicado.

 iv) O contencioso eleitoral

A apreciação da regularidade e da validade das eleições compete, em última instância, ao Tribunal Constitucional (artigo 6.º LOEG). Esta norma comete o Tribunal Constitucional (TC) todas as decisões finais sobre eleições, não é a Comissão Nacional Eleitoral (CNE).

Ser o TC a ter a palavra final e não a CNE é uma garantia jurisdicional acrescida. No presente momento, como veremos adiante, isso tem relevo porque o TC tem sido objeto de um grande escrutínio público, sendo-lhe mais difícil, acreditamos, tomar decisões que não tenham fundamento legal.

Escrutínio Público

É natural, que sobretudo para os adeptos duma visão realista do Direito[4], em que nos incluímos, segundo a qual o importante não é o que está escrito na lei, nem sequer os princípios meta-legais em que esta assente, mas a sua aplicação e resultado prático, não se fique satisfeito com a mera enumeração legal, mesmo que esta surja bem construída e promissora, como se nos afigura acontecer com a presente Lei Orgânica das Eleições Gerais.

Torna-se necessário invocar outros fatores reais que permitam realizar uma avaliação mais objetiva do fenómeno eleitoral em Angola como esperado para 2022.

Entendemos que o fator chave é o do escrutínio público que o processo eleitoral está a ter. Escrutínio público entendido como exame minucioso e averiguação diligente de um fenómeno realizado pela sociedade em geral, e não apenas por órgãos específicos que poderão ou não estar alinhados com determinada opção política ou ideológica.

O nosso argumento é que quanto maior for o escrutínio público a que um fenómeno eleitoral esteja sujeito maior será a sua transparência e democracia e menores as probabilidades de fraude, havendo uma relação direta entre escrutínio e transparência.

Ora, o breve excurso que realizámos pelas várias eleições ocorridas em Angola, e retirando a de 1992, que pela sua especificidade e contexto histórico não tem lugar nesta comparação, e considerando que alguns dos nossos colaboradores acompanharam pessoalmente as eleições de 2012 e 2017, permite-nos avançar com algumas tendências em relação a aspetos escrutinadores por parte de integrantes da sociedade civil ou órgãos estruturantes não políticos da comunidade. Esses temas levam-nos a uma comparação qualitativa entre 2008 e 2017.

Em primeiro lugar, destaquemos a Igreja Católica. Possivelmente, fruto de certas acusações de colaboração com o poder colonial e de algum embate com a ideologia marxista pós-independência, a Igreja Católica, na sua generalidade, tinha-se remetido nas anteriores eleições a um papel discreto e pouco interventivo publicamente, não contribuindo para um forte debate acerca do processo eleitoral nas anteriores eleições (2008 a 2017).

Isso não acontece em 2022, seguindo as passadas da sua congénere na vizinha República Democrática do Congo (RDC) em que a Igreja Católica teve um papel determinante na transição eleitoral de 2018/2019 entre Kabila e Tshisekedi, a Igreja Católica angolana tem assumido um manifesto protagonismo na preparação das eleições angolanas. Os seus bispos e padres estão ativos na sua pastoral e nas homilias e têm uma atividade pública intensa, exigindo eleições adequadas[5].

É precisamente este ativismo católico, lembrando que segundo as estatísticas, cerca de 40% da população angolana é católica,[6]que permite concluir que o escrutínio que a Igreja Católica está a fazer das eleições não deixará larga parte da população indiferente e obriga por si só a uma transparência acrescida no processo. Melhor dizendo, o escrutínio católico e das suas múltiplas organizações é, em si mesmo, um fator intrínseco de transparência.

Um segundo fator que notamos diferente em relação às outras eleições angolanas é o papel das redes sociais. Estas abrangerão cerca de ¼ da população votante[7], mas talvez mais daqueles que efetivamente votam. Ora frequentando as redes sociais facilmente se vislumbra a intensidade com que falam das eleições e como discutem a sua realização e necessidade de transparência. Um candidato a deputado pelo partido da oposição e ativista constantemente presente nas redes como Hitler Samussuku tem 52.000 seguidores no Facebook e os seus posts alcançam muitas vezes mais de 1000 likes. Trata-se de um mero exemplo aleatório, mas muitos outros poderiam ser referidos.

Nunca as redes sociais em Angola estiveram tão vivas a ativas como neste período, contestando, discutindo e afirmando posições.

Tal como na situação da Igreja Católica entendemos que este escrutínio digital tem uma dupla função. Por si só é sinónimo de transparência e ao mesmo tempo aumenta a transparência ao colocar no espaço público a discussão sobre as eleições.

Temos aqui dois fatores conducentes intrinsecamente à transparência eleitoral: o ativismo da Igreja Católica e o ativismo digital.

Finalmente, convém referir a questão dos Observadores internacionais. No ano difícil de 1992 estiveram presentes, segundo informações públicas, 400 observadores internacionais[8], em 2017, terão estado mais de 1000 observadores[9],atualmente, segundo as publicações que se debruçaram sobre o assunto estão previstos 2000 observadores nacionais para 2022 e um número ainda não apurado de observadores internacionais. Convém dizer que atendendo ao ativismo acima referido da Igreja e no digital, os observadores nacionais terão um papel muito intenso ao contrário do que poderia acontecer no passado.

Conclusões

A questão que aqui estudámos não é da perfeição platónica das eleições angolanas, mas da evolução da transparência eleitoral desde 2008 com a previsão para 2022.

O que apurámos atendendo a dois índices, a legislação e o escrutínio público, é que, neste momento, existe uma lei suficientemente robusta para realizar eleições livres e justas, e que o escrutínio público, designadamente por parte da Igreja Católica e suas organizações satélite e também pelas redes sociais, nunca foi tão elevado como atualmente.

Nessa medida, mesmo com imperfeições, augura-se que estas eleições serão mais transparentes do que no passado, porque se tal não acontecer a opinião pública sentirá melhor e mais profundamente do que no passado.


[1] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/proximas-eleicoes-em-angola-deverao-ser-as-menos-transparentes-e-crediveis-avisa-investigadora-de-oxford_n1413623

[2] https://arquivos.rtp.pt/conteudos/unita-diz-que-houve-fraude-nas-eleicoes/

[3] Não discutimos neste trabalho o problema do desequilíbrio do serviço público na época da pré-campanha. Será, possivelmente, objeto de outro estudo apontando soluções e necessidades de uma visão holística da situação englobando todas as fontes de notícias: públicas, privadas, estrangeiras e digitais.

[4] Ver por exemplo, Rui Verde, Juízes: o novo poder, 2015.

[5] https://www.rtp.pt/noticias/mundo/bispos-angolanos-pedem-eleicoes-transparentes-e-participacao-responsavel-dos-cidadaos_n1381285; https://www.vaticannews.va/pt/africa/news/2022-06/angola-eleicoes-bispos-convidam-a-moderacao-respeito-e-sentid.html ; https://www.dw.com/pt-002/angola-bispo-de-cabinda-nega-crispa%C3%A7%C3%A3o-entre-igreja-cat%C3%B3lica-e-o-executivo/a-61651439

[6] https://observatoriodaafrica.wordpress.com/2016/04/04/maioria-da-populacao-angolana-e-catolica/

[7] https://marcasemaccao.com/utilizadores-de-redes-sociais-cresce-36-em-angola/

[8] http://www.angonoticias.com/Artigos/item/48509/primeiras-eleicoes-em-angola-realizaram-se-ha-23-anos

[9] https://www.voaportugues.com/a/mais-de-mil-observadores-as-eleicoes-em-angola/3926114.html

O sector económico e financeiro na revisão constitucional angolana – Em especial, a consagração da independência do banco central

1-Introdução. Revisão constitucional em Angola

A presente Constituição angolana (CRA) data de 2010 e nunca tinha sido revista. Recentemente, o Presidente João Lourenço anunciou ter tomado a iniciativa de propor uma revisão constitucional.

Um primeiro comentário que esta ação suscita é que o presidente angolano tem uma política corajosa enfrentando os vários desafios que lhe têm sido colocados: combate à corrupção, reforma económica, rapidez na reação à Covid-19. Neste momento, ainda não colhe os frutos desse enfrentamento determinado, e aí reside algum paradoxo, um presidente reformista arrisca-se a ser submerso pelas suas próprias reformas.

A presente proposta de revisão constitucional é minimalista, e assim foi assumido pelo governo. Nesse sentido, arrisca-se a criar expectativas na população que depois não serão satisfeitas. Contudo, representa um passo muito importante na discussão do modelo político angolano e o certo é que a discussão constitucional será mais importante mesmo que as efetivas alterações que no fim serão inseridas na Constituição.

O objetivo do presente texto é destacar e analisar as principais propostas de revisão constitucional na área da economia e finanças.

2-A proposta de lei de revisão constitucional na área económica e financeira

A primeira modificação proposta encontra-se no artigo 14.º da CRA, que diz respeito à propriedade privada. Introduz-se a expressão “promove[1]”, com a significação de ser função do Estado além de garantir e proteger a propriedade privada e livre iniciativa, também a promoção da iniciativa privada. É introduzido um comportamento positivo do Estado, o da promoção da livre iniciativa privada.

Mais à frente, é adicionado ao Artigo 37.º que regula o “Direito e limites da propriedade privada”, um novo número 4. Este número consagra a possibilidade de nacionalização em caso de “ponderosas razões de interesse nacional”. Também introduz o confisco enquanto medida sancionatória, sendo este permitido quando ocorra uma ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado.

Naturalmente, é no Título acerca da Organização Económica, Financeira e Fiscal que são acrescentadas algumas modificações na área económica. O artigo 92.º conterá novos números 2 e 3. A nova redação proposta para o n.º 2, pretende “clarificar o alcance e o sentido do princípio da propriedade comunitária, enquanto tipo de propriedade consagrado no artigo 14.º da Constituição, que define a natureza do sistema económico chamando à regulação do exercício deste tipo de propriedade as normas do direito consuetudinário que não contrariem o sistema económico, o regime social de mercado e os princípios fundamentais da Constituição”. Já o n.º 3 estabelece a existência legal do sector não estruturado da economia, i.e., refere-se à economia informal, apontando para a sua institucionalização progressiva.

Depois temos o artigo 100.º sobre o Banco Nacional de Angola (BNA). No número 1 desse artigo determina-se que o BNA será o “banco central e emissor da República de Angola” e terá como funções primordiais:  garantir a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegurar a estabilidade do sistema financeiro. Portanto, as funções do BNA são delimitadas ao combate à inflação e à estabilidade do sistema financeiro.

De seguida, no número 2 “consagra-se a nova natureza jurídica do BNA, enquanto entidade administrativa independente, de feição eminentemente reguladora, e sinaliza-se o conteúdo do princípio da independência deste tipo de entidades”. Fica doravante proibida “a transmissão de recomendações ou emissão de directivas aos órgãos dirigentes do BNA sobre a sua actividade, sua estrutura, funcionamento, tomada de decisão” acerca das prioridades a adotar na prossecução das atribuições constitucional e legalmente definidas, por parte do Poder Executivo ou de qualquer outra entidade pública.

Os números subsequentes do mesmo artigo determinam que: “O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional.” E estipulam um procedimento detalhado para essa nomeação. Há um dever de audição parlamentar, mas a decisão final é do Presidente da República.

Outra alteração diz respeito ao Orçamento Geral do Estado. No artigo 104.º propõe-se uma alteração “de modo a afastar uma ideia actual de que o orçamento das autarquias locais integra o OGE”. O OGE preverá as transferências a realizar para as autarquias, mas não as receitas e despesas das mesmas.

3-Análise e comentário das alterações propostas à Constituição económica e financeira

Verifica-se que os artigos a alterar são os 14.º, 37.º, 92.º, 100.º e 104.º

ARTIGO 14.º

  • Em relação ao artigo 14.º passará a incumbir ao Estado promover a iniciativa privada. Além do aspeto retórico de tal afirmação, em termos práticos, esta norma permite que o Estado auxilie o sector privado de forma consistente, por exemplo, ampliando as zonas francas e benefícios fiscais para os privados, subsidiando empresas privadas, criando parcerias com o sector privado. O Estado deverá adoptar uma atitude positiva e activa face ao sector privado e não meramente passiva. É um bom sinal para o mercado.

ARTIGO 37.º

  • O artigo 37.º tem um carácter diferente e constitui a única modificação constitucional diretamente relacionada com o combate à corrupção. Face a uma lacuna constitucional, ficarão agora estabelecidos os princípios gerais em que se podem efetuar nacionalizações e confiscos. Esta última parte é fundamental para concretizar a recuperação de ativos que está em curso em que se torna muito difícil perceber o enquadramento legal.

Agora fica claro que o Estado pode confiscar bens quando tenha havido uma ofensa grave às leis que protegem os seus interesses económicos. Em linguagem simples, fica agora bem esclarecido que aqueles que se tenham locupletado à custa dos fundos públicos podem ficar sem esses bens, não havendo necessidade de um processo criminal transitado em julgado, mas apenas a conclusão que realizaram uma ofensa grave às leis que garantem os interesses económicos do Estado. Esta norma é de aplaudir no presente contexto de combate à corrupção.

ARTIGO 92.º

  • Se a promoção da iniciativa privada e a agilização da recuperação de ativos obtidos nas atividades corruptas são medidas que merecem elogio, mais dúvidas levanta a norma do artigo 92.º referente à economia informal. Mais do que “o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia” (redação proposta do artigo 92.º, n.º3), que significa essencialmente pagamento de impostos e taxas, o que a Constituição deveria propugnar era a adoção de políticas de apoio ao sector informal da economia, que é um verdadeiro amortecedor da falta de  trabalho e  um incubador de potenciais pequenas e médias empresas de sucesso.[2]  

Já se salientou que na África Austral, o sector económico informal constitui um elemento crucial de sobrevivência, dado que 72% de todo o emprego não agrícola reside no sector informal e a maioria dos novos postos de trabalho aparecem aí. A economia informal fornece rendimento e emprego a todas as pessoas, independentemente da sua escolaridade ou experiência. Em Angola, a maioria das pessoas empregadas está igualmente envolvida na economia informal, pois de outro modo não seria capaz de suportar todas as suas despesas. Nessa medida, há que ser muito cauteloso em estabelecer regras sobre a economia informal pois esta auxilia o governo angolano.[3]

ARTIGO 100.º

  • Em termos de opinião pública o cerne da modificação constitucional em termos económico-financeiros estará no artigo 100.º referente ao BNA. Este artigo contém três grandes linhas:
  • O BNA é o “garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro”. Assim, são determinadas precisamente as funções do BNA ligadas à inflação e sistema financeiro;
  • O BNA torna-se uma autoridade administrativa independente e por isso “independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos”. É a famosa independência do banco central, que atualmente, é defendida pela maior parte da doutrina económica.
  • O Governador do BNA é nomeado pelo Presidente da República, ouvida a Assembleia Nacional. Note-se que a Assembleia Nacional não tem direito de veto, mas de audição.

A consagração da independência do banco central corresponde à moderna tendência dominante na doutrina económica. Os argumentos a favor da independência do banco central resumem-se facilmente. Considera-se que os governos tendem a tomar decisões erradas sobre a política monetária. Em particular, são influenciados por considerações políticas de curto prazo. Antes de uma eleição, a tentação é o governo cortar as taxas de juros, tornando os ciclos económicos de expansão e retração mais prováveis. Assim, se um governo tem um histórico de permitir a inflação, as expectativas de inflação começam a aumentar, tornando-a mais provável.

Um banco central independente pode ter mais credibilidade e inspirar mais confiança. Ter mais confiança no banco central ajuda a reduzir as expectativas inflacionárias. Consequentemente, torna-se mais fácil manter a inflação baixa. Há assim a tentativa de introduzir credibilidade adicional na política monetária e acentuar o combate à inflação. Note-se que a inflação é um mal que perdura na economia angolana há demasiado tempo.

Esta medida está correta e deve ser considerada positiva.

ARTIGO 104.º

  • A última alteração diz respeito à explicitação da diferenciação entre o Orçamento Geral do Estado e as Autarquias, fazendo parte da preparação material para instalação das autarquias.

Conclusão

Minimalista, a proposta revisão constitucional na área da economia e finanças visa reforçar os sinais da economia de mercado e estabilidade macroeconómica, sendo de destacar como elemento essencial desta lei a consagração da independência do banco central e o seu foco no combate à inflação.

*****

Anexo: Nova redação proposta das normas referentes ao sector económico e financeiro

“Artigo 14.º

(Propriedade privada e livre iniciativa)

O Estado respeita, e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e promove a livre iniciativa económica e empresarial, exercida nos termos da Constituição e da Lei”.

“Artigo 37.º

(Direito e limites da propriedade privada)

1. […].

2. […].

3. […].

4. Lei própria define as condições em que pode ocorrer a nacionalização de bens privados por ponderosas razões de interesse nacional e do confisco por ofensa grave às leis que protegem os interesses económicos do Estado”.

“Artigo 92.º

(Sectores Económicos)

1. […].

2. O Estado reconhece e protege o direito de propriedade comunitária para o uso e fruição de meios de produção pelas comunidades rurais e tradicionais, nos termos da Constituição e da lei.

3. Lei própria estabelece os princípios e regras a que fica sujeito o sector não estruturado da economia, visando o seu enquadramento progressivo no sistema estruturado de economia”.

“Artigo 100.º

(Banco Nacional de Angola)

1. O Banco Nacional de Angola, como banco central e emissor da República de Angola, garante a estabilidade de preços de forma a assegurar a preservação do valor da moeda nacional e assegura a estabilidade do sistema financeiro, nos termos da Constituição e da lei.

2. Enquanto autoridade administrativa independente, o Banco Nacional de Angola é independente na prossecução das suas atribuições e no exercício dos poderes públicos a si acometidos, nos termos da Constituição e da lei.

3. O Governador do Banco Nacional de Angola é nomeado pelo Presidente da República, após audição na Comissão de Trabalho Especializada da Assembleia Nacional, competente em razão da matéria, nos termos da Constituição e da lei, observando-se, para o efeito, o seguinte procedimento:

a) a audição é desencadeada por solicitação do Presidente da República;

b) a audição à entidade proposta termina com a votação do relatório nos termos da lei;

c) Cabe ao Presidente da República a decisão final em relação à nomeação da entidade proposta.

4. O Governador do Banco Nacional de Angola envia ao Presidente da República e à Assembleia Nacional, um relatório sobre a evolução dos indicadores de política monetária, sem prejuízo das regras de sigilo bancário, cujo tratamento, para efeitos de controlo e fiscalização da Assembleia Nacional é assegurado nos termos da Constituição e da lei”.

“Artigo 104.º

(Orçamento Geral do Estado)

1. […].

2. O orçamento Geral do Estado é unitário, estima o nível de receitas a obter e fixa os limites de despesas autorizadas, em cada ano fiscal, para todos os serviços, institutos públicos, fundos autónomos e segurança social e deve ser elaborado de modo a que todas as despesas nele previstas estejam financiadas”.

3. O Orçamento Geral do Estado apresenta o relatório sobre a previsão de verbas a transferir para as autarquias locais, nos termos da lei.

4. A lei define as regras da elaboração, apresentação, adopção, execução, fiscalização e controlo do Orçamento Geral do Estado.

5. A execução do Orçamento Geral do Estado obedece aos princípios da transparência, responsabilização e da boa governação e é fiscalizada pela Assembleia Nacional e pelo Tribunal de Contas, nos termos e condições definidos por lei”.


[1] Todas as citações sem fonte específica mencionada são do Relatório de Fundamentação da Proposta de Lei de Revisão Constitucional 2021 tornada pública pelo Governo.

[2]  Alain de Janvry e Elisabeth Sadoulet, Development Economics, 2016, p. 19

[3]  Moiani Matondo, Em defesa das zungueiras e da economia informal, MakaAngola. https://www.makaangola.org/2020/04/em-defesa-das-zungueiras-e-da-economia-informal/