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China e Angola: compreender uma relação complexa em tempos de polarização mundial

Rui Verde ( African Studies Centre, University of Oxford) – Palestra proferida da Fundação Rui Cunha em Macau, 22 de Maio de 2023

Este é um resumo de algumas das conclusões de um trabalho em curso sobre as relações entre Angola e a China desde o início dos anos 2000, que estou a desenvolver na Universidade de Oxford. O trabalho abordará três temas: o início das fortes relações económicas entre os dois países, as consequências perceptíveis e a situação actual.

O início

Não seria correcto começar uma análise das relações entre a China e Angola no início do século XXI sem considerar brevemente as interacções anteriores entre os dois países.

Referindo-nos apenas à República Popular da China, e não à China Imperial e aos esforços do Almirante Zheng He no século XV. É de notar que, pelo menos a partir da década de 1960, a China teve algum interesse e influência em Angola, e vice-versa. A célebre viagem de Chou En-Lai a África em 1963-1964, a que WAC Adie se referiu como “o Safari de Chou En-Lai”, resultou na primeira abordagem chinesa contemporânea intensa ao continente africano e deu origem a dois tipos de movimentos em relação a Angola, então uma colónia portuguesa em guerra de libertação.

Portugal, a potência colonial autoritária em guerra em Angola, alimentou a ideia de estabelecer relações diplomáticas com a China comunista. Os dirigentes portugueses tentaram avançar para uma espécie de avant la lettre Nixon-Kissinger, mas acabaram por ser travados pela oposição dos EUA.

Os movimentos de libertação angolanos, por sua vez, começaram a contar com o apoio da China em termos de armamento e treino. Na fase inicial, a China não tinha uma preferência forte e ajudou todos os movimentos, incluindo o MPLA, a FNLA e a UNITA.

A partir de certa altura, dado que a União Soviética tinha ‘posto todos os seus ovos no cesto do MPLA’, a China optou principalmente por apoiar a UNITA como forma de contrabalançar os soviéticos. No entanto, as acções diplomáticas da China foram sobretudo pragmáticas, e as suas tentativas de estabelecer relações com a FNLA e o MPLA continuaram ao longo dos anos.

Com a independência de Angola em 1975 e a transformação do país num campo da Guerra Fria, a diplomacia chinesa viu-se num dilema. A China não queria apoiar os Estados Unidos, mas considerava certamente os soviéticos como o seu principal inimigo. Por isso, adoptou um discurso público de paz e fraternidade e virou-se contra o MPLA, por considerar a organização demasiado pró-soviética.

As relações com o novo governo de Luanda eram pouco inspiradoras; de facto, Pequim ignorou-o durante algum tempo.

O reatamento das relações foi gradual e sem especial intensidade. O último passo no processo de normalização das relações sino-angolanas foi a visita do Presidente José Eduardo dos Santos a Pequim, em Outubro de 1988. Embora a visita tenha sido cordial, não foi recebida com entusiasmo. Durante a década de 1990, a China estava a passar por um importante processo de reforma interna e as interacções com Angola não eram uma prioridade.

Por conseguinte, não existe uma base histórica que permitisse prever que a China se tornaria o parceiro económico mais importante de Angola e que esta relação definisse um possível modelo de intervenção em África.

De muito fracas no início, as relações da China com o governo do MPLA passaram a ser mornas, embora não houvesse qualquer indício de proximidade.

No entanto, surpreendentemente, com o fim da guerra civil em Angola, em 2002, o país voltou-se para a China em busca de apoio económico, que a China forneceu, surgindo uma relação contínua.

A explicação oficial para esta relação repentina e aparentemente estreita é geralmente enquadrada no paradigma de um Estado racional que toma decisões institucionais. Alguns académicos explicam que o regime angolano recorreu ao FMI para financiar a reconstrução do país no pós-guerra; no entanto, insatisfeito com as exigências de responsabilização e transparência do FMI e com a falta de vontade do fundo para se comprometer e acomodar os desejos angolanos, Angola optou por obter financiamento da China num acordo entre Estados.

A realidade parece, no entanto, mais complexa. Quando terminou a guerra civil, Angola não tinha um Estado funcional e institucional, e uma boa parte das funções do Estado foram ‘privatizadas’ e entregues a entidades externas, permitindo aquilo a que hoje se chama ‘captura do Estado’. Por exemplo, a segurança dos diamantes era assegurada por Arkady Gaydamak (empresário franco-israelita de origem russa, e talvez espião de várias agências), o fornecimento de armas por Pierre Falcone (empresário francês) e vários aspectos imobiliários e financeiros pelo Espírito Santo Financial Group, onde se destacava a empresa ESCOM e o seu homem forte Hélder Bataglia.

A par desta “privatização” das funções do Estado, José Eduardo dos Santos, tal como outros membros da elite angolana, desconfiava do Ocidente e das suas instituições.

É neste contexto que se insere o acordo com a China.

A relação era uma espécie de empreendimento privado que ia ao encontro dos desejos de Dos Santos, que não queria estar dependente do FMI ou do Ocidente. Para ele, a aproximação à China era uma questão de segurança nacional.

Por isso, há dois pontos a salientar. O primeiro é que Dos Santos optou por não recorrer ao FMI devido a considerações de segurança nacional; ou seja, o Presidente angolano não queria estar demasiado dependente do Ocidente.

O segundo e mais crucial ponto é que Angola geriu algumas das vantagens trazidas pela China em grande medida como um feudo privado. Aparentemente, os contactos iniciais para este fim foram promovidos pelo então presidente da ESCOM, Bataglia, e pelo traficante internacional de armas Pierre Falcone, do famoso caso Angolagate.

No entanto, Angola apresentou uma fachada oficial à China. Inicialmente, foi estabelecido um acordo de financiamento entre o EximBank e o Ministério das Finanças de Angola no valor de 2 mil milhões de dólares, que foi aprovado pelo Conselho de Ministros de Angola em Março de 2004. Na mesma altura, o Ministério das Obras Públicas de Angola assinou um contrato com uma empresa chinesa, a Jinagsu International, para a construção do Palácio da Justiça em Luanda. Estas duas acções são as primeiras a serem referenciadas pelo Diário da República, no âmbito desta nova relação sino-angolana.

Do lado chinês, o seu interesse em Angola não era específico, de acordo com as fontes chinesas que entrevistámos, mas baseava-se nos três aspectos essenciais seguintes:

  • A sua política económica internacional, que foi concebida por Mao Zedong em “Sobre as Dez Principais Relações”, onde declarou: “Temos de aprender a fazer trabalho económico com todos os que sabem fazê-lo, sejam eles quem forem”. Obviamente, foi também o resultado das Quatro Modernizações que se concretizaram externamente com a política de Jiang Zemin de “Go Out” e a adesão da China à OMC em 2001.
  • A sua necessidade de petróleo e matérias-primas (que Angola possuía em abundância) para sustentar o crescimento chinês.
  • O seu excedente de pessoas e de capital que estava pronto para ser investido.

Por parte de Angola, o processo-crime lançado no Verão de 2022 contra os generais Kopelipa e Dino, antigos homens fortes de Dos Santos, tornou claros os mecanismos privados que deram origem às intensas relações entre Angola e a China. Foi explicado que, do lado angolano, Bataglia, da ESCOM, com Manuel Vicente (o CEO da Sonangol e futuro vice-presidente do país) e Eugénio Neto, outro homem da ESCOM, realizaram uma famosa primeira visita à China. Foi durante esta visita que foi delineada toda a estratégia de colaboração entre os dois países.

Foram criadas inúmeras empresas, tendo à frente os líderes angolanos Vicente, Kopelipa e Dino (este último terá sido uma figura de proa de Dos Santos). Por exemplo, o China International Fund (CIF) e a China Sonangol são entidades privadas criadas na altura por Vicente, Kopelipa e Dino, embora com designações supostamente oficiais.

A questão é que, para além dos acordos oficiais, existia uma relação paralela que se tornou substancialmente relevante porque as acções não foram conduzidas entre Estados, mas por entidades privadas entre eles.

As consequências perceptíveis

Naturalmente, as consequências do envolvimento da China em Angola foram extremamente positivas para a reconstrução do país após a guerra civil (1975-2002). As empresas chinesas construíram 2800 quilómetros de caminhos-de-ferro, 20 000 quilómetros de estradas, mais de 100 000 projectos de habitação social, mais de 100 escolas e mais de 50 hospitais em Angola. A central hidroeléctrica de Kaculo Kabaça, o aeroporto internacional Agostinho Neto, as cidades de Kilamba Kiaxi e Zango 5, o caminho-de-ferro de Benguela, o porto de Caio, a central eléctrica do Soyo e muitos outros projectos de cooperação foram implementados com êxito. Muitas empresas chinesas investiram em Angola e deram importantes contributos para a diversificação económica e a industrialização do país[1] .

No entanto, algumas obras e actividades emblemáticas que resultaram desta colaboração sino-angolana tornaram-se símbolos de corrupção desenfreada, uma vez que alguns dos altos funcionários públicos angolanos aproveitaram e desviaram vários fundos para actividades corruptas.

Dois exemplos ilustram este facto. O primeiro diz respeito, naturalmente, à compra e venda de petróleo. Segundo as apurações das actuais autoridades angolanas, entre 2004 e 2007, quando Manuel Vicente liderava a petrolífera angolana Sonangol, autorizou a venda de petróleo à China no valor de, pelo menos, 1,5 mil milhões de euros, que foram pagos pela China, mas desviados. Durante este período, a Sonangol vendeu à China um grande número de barris de petróleo bruto à Sonangol International Holding Limited, a título de venda à consignação para a constituição de um fundo de reconstrução nacional. A Sonangol entregou o petróleo à empresa, mas não recebeu qualquer pagamento após a entrega. A empresa intermediária vendeu o petróleo e ficou com o dinheiro da venda, que foi depois creditado nas suas contas no Banco da China. A empresa intermediária pertencia a Vicente e Kopelipa e a alguns outros sócios.

Documentos ainda em estudo, a que tive acesso, indicam que, entre 2005 e 2010, a venda de petróleo angolano à China gerou mais de 85 mil milhões de dólares. Desse montante, provavelmente pelo menos 25,7 mil milhões de dólares terão sido divididos entre dirigentes angolanos através de uma teia de esquemas tecida por vários intermediários.

Noutra situação, a empresa CIF Limited, que aparentemente era maioritariamente detida por ministros angolanos, apropriou-se de 24 edifícios do Estado construídos pela empresa Guangxi na centralidade do Zango. O Estado pagou a construção, mas foi a Delta Imobiliária (empresa de Vicente, Dino e Kopelipa) que vendeu os edifícios à Sonangol EP, através da Sonip Lda, sob a direcção de Vicente, por um valor total de US$475.347.200[2] .

O que é certo é que dos U$2 biliões de dólares de crédito em 2005, Angola detinha U$23 biliões de dólares de stock de dívida pública na China em 2017[3] .

Depois de Xi Jinping ter assumido a liderança da China, foram tomadas medidas para erradicar a corrupção e as autoridades chinesas neutralizaram os elementos corruptos, como Sam Pa (um magnata dos negócios que se crê ser o chefe do 88 Queensway Group) que teria ajudado os angolanos nestes esquemas. As autoridades chinesas também enviaram equipas de auditoria a Angola para fiscalizar as compras de petróleo.

Situação actual

O advento da presidência de João Lourenço englobou uma tentativa de reabertura de Angola ao Ocidente. No entanto, tal não implicou um enfraquecimento das relações com a China, como sugerem alguns estudos recentes, que expõem um certo mal-estar da perspectiva angolana em relação à China. Carvalho et al. falaram de um ‘casamento de conveniência’; Silva afirmou que ‘a lua-de-mel de Angola com a China [tinha] chegado ao fim’; e Fabri disse que ‘A lua-de-mel China-Angola acabou; será que África está a ouvir?[4]

Mais uma vez, a realidade não é tão linear. É certo que se registou um reequilíbrio das relações, mas esse reequilíbrio partiu de ambas as partes e não significou o fim das suas relações.

O acto de abertura da presidência de João Lourenço em relação à China em 2017-2018 foi aparentemente pedir mais dinheiro. Inicialmente, houve um alegado novo empréstimo da China no valor de 11 mil milhões de dólares, que mais tarde se revelou ser de 2 mil milhões de dólares, mas que apenas serviu para pagar as dívidas de Angola a empresas chinesas.

No entanto, a contenção da China não era nova em Angola e nada tinha a ver com João Lourenço, como alguns agora afirmam. Em 2016, o Banco de Desenvolvimento da China tinha suspendido fundos de linhas de crédito a Angola, nomeadamente à Sonangol, acusando a empresa e o Ministério das Finanças angolano de incumprimento dos contratos. Anteriormente, em 2015, como já foi referido, auditores chineses terão estado em Angola para averiguar a dimensão das despesas da Sinopec no país. Suspeitaram de várias irregularidades, como, por exemplo, o facto de a petrolífera chinesa ter pago quase mil milhões de dólares adicionais para financiar uma quota que Sam Pa, através da China Sonangol International, tinha adquirido em certos blocos petrolíferos angolanos que não geravam lucros.

Estas atitudes parecem indicar que houve alguma prudência ou contenção por parte da China relativamente aos negócios em Angola.

No entanto, posteriormente, a China foi generosa ao suspender o pagamento da dívida externa angolana devido à pandemia. Além disso, os bancos chineses concordaram com alguma forma de renegociação da dívida.

O comércio entre a China e Angola cresceu 42% em 2021 e continuou a bom ritmo nos primeiros seis meses de 2022, com um aumento homólogo de 33%. Desta forma, a China continuou a ser o principal parceiro económico de Angola.

Além disso, os números do banco central angolano mostram que, desde 2020, o país pagou cerca de 2 mil milhões de dólares de capital à China. Actualmente, de acordo com os números mais recentes apresentados pelo Ministro das Finanças angolano, Angola está a aproveitar a subida dos preços do petróleo para acelerar os seus planos de redução da dívida e suavizar os reembolsos à China, o seu maior credor.

Angola deve actualmente à China 18 mil milhões de dólares, ou seja, cerca de 40% da sua dívida externa total, depois de ter liquidado empréstimos no valor de 1,32 mil milhões de dólares em 2022[5] .

Todos estes dados mostram que as relações de Angola com a China estão a entrar numa nova fase – uma fase madura, mas que não está a terminar.

 Acontece que esta nova fase não depende apenas da vontade de Lourenço de se abrir ao Ocidente ou do mal-estar de Angola com a China, como alguns argumentaram; depende também dos compromissos chineses e da estratégia mundial.

É importante abordar primeiro a questão da chamada “armadilha da dívida” e depois os desenvolvimentos mais recentes na relação sino-angolana.

A verdade é que, tal como os credores ocidentais do passado em relação a África e à América Latina, a China está numa curva de aprendizagem e, dado o pragmatismo que parece guiar as suas relações, será necessário que a China evite cenários dramáticos e considere os remédios habituais de renegociação e perdão da dívida.

Não há lugar para falar de uma “armadilha da dívida”. Sabe-se que, no século XIX, a Grã-Bretanha foi confrontada com problemas de dívida de países terceiros, nomeadamente na América Latina e no Egipto. A solução passou muitas vezes pelo envio de canhoeiras ou pelo controlo da governação dos países endividados.

No final do século XX, os Estados Unidos tinham grandes problemas de endividamento com os países do chamado Terceiro Mundo. Neste caso, a solução foi mais racional, com ênfase no Plano Brady (Brady Bonds).

Obviamente, é agora a vez de a China enfrentar o mesmo problema, mas não se fala de canhoeiras ou da criação de qualquer protectorado.

Também se poderia estabelecer um paralelo com as relações da União Soviética com o Presidente Nasser do Egipto. Sabe-se que, durante o governo de Khrushchev, a União Soviética financiou largamente Nasser e a barragem de Assuão; no entanto, mais tarde, com Brezhnev, prevaleceu uma nova atitude que apelava à austeridade e negava o adiamento do pagamento das dívidas. Isto acabou por conduzir a Sadat e ao declínio da influência soviética no Egipto.

Com estes exemplos históricos em mente, a China está certamente a equilibrar as suas opções, não optando por uma desvinculação. Está a avaliar cuidadosamente a situação e a procurar os mecanismos económicos e financeiros adequados para resolver o problema, tal como os Estados Unidos fizeram na década de 1980.

Em relação a Angola, refira-se que uma das primeiras viagens do novo ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Qin Gang, foi a Angola, em Janeiro último, tendo, na mesma altura, os respectivos governos assinado um acordo segundo o qual a China despenderia 249 milhões de dólares para financiar um projecto nacional de banda larga em Angola.

Em suma, é evidente que as relações entre a China e Angola estão a evoluir, e não a terminar ou a chegar a um beco sem saída, como alguns argumentaram. Este é o momento de calibrar cuidadosamente e renovar a amizade.

Se me for permitido usar uma metáfora baseada no meu vinho português preferido, o Palácio da Brejoeira, pode dizer-se que as relações sino-angolanas tiveram uma fase inicial de pura alegria, depois veio a ressaca e agora é tempo de beber com moderação e sofisticação entre os verdadeiros conhecedores.


[1] Shang, João (2023), A parceria estratégica entre China e Angola tem perspectivas amplas, coexistindo oportunidades e riscos. Comunicação ao III Congresso Internacional de Angolanística (ainda não publicada)

[2] Resumo do processo judicial em Verde, Rui (2022), Delfins de JES acusados na hora da sua morte, https://www.makaangola.org/2022/07/delfins-de-jes-acusados-na-hora-da-sua-morte/

[3] Dados do BancoNacional de Angola, https://www.bna.ao/

[4] de Carvalho, P., Kopiński, D., & Taylor, I. (2022). Um casamento de conveniência nas rochas? Revisitando a relação sino-angolana. Africa Spectrum, 57(1), 5-29.

Silva, Cláudio (2022), How Angola’s honeymoon with China came to an end, The Africa Report, https://www.theafricareport.com/202465/how-angolas-honeymoon-with-china-came-to-an-end/.

Fabri, Valerio, (2022), The China-Angola Honeymoon is over, is Africa listening?, Geopolitica.info, https://www.geopolitica.info/china-angola-honeymoon-over/

[5][5] Idem, ver nota 3.

Acelerar o turismo em Angola

1-Enquadramento: as necessidades e os agentes da promoção do turismo em Angola

Angola procura gradualmente diversificar a sua economia escolhendo o turismo como uma das principais prioridades da ação estruturante da política económica. Como é sabido, a reconstrução encetada a partir de 2002, não se concentrou no turismo, mas sim na indústria petrolífera, mineração e construção civil. Esgotado esse modelo, a diversificação tornou-se a palavra-chave do desenvolvimento.

Sendo evidente que Angola tem uma enorme potencialidade turística, a verdade é que a sua concretização implica a remoção de diversos obstáculos e criação de condições adequadas. Referimos dois eixos essenciais para criar essas condições: o primeiro é a criação de condições propícias ao investimento no setor turístico, isto implica a revisão da lei de investimento que já ocorreu, a retirada de barreiras de entrada no mercado e a facilitação de crédito bancário para novos projetos.

O segundo eixo é de natureza infraestrutural e obriga a criar uma rede de transportes, estradas, aviões e barcos adequada, bem como um clima de segurança criminal, além da facilitação de vistos turísticos.

Figura 1:  Os 2 eixos para o desenvolvimento do potencial turístico

Além do mais, o crescimento do turismo não pode estar apenas dependente do Estado, cabe-lhe naturalmente a regulação, fiscalização e a criação de infraestruturas e de condições. No entanto, o papel fundamental é do empresariado privado que deve avançar e estabelecer parcerias para entrar nos circuitos internacionais. E, finalmente, compete também aos dirigentes provinciais, municipais e comunais, incentivarem e potenciarem os seus recursos.

Estado, empresários e dirigentes locais formam a parceria tripartida que se deve unir para lançar o turismo em Angola.

Em 2019, na abertura do Fórum Mundial do Turismo que decorreu em Luanda, o Presidente da República, deixou bem claro aquilo que o executivo almejava para o sector: no quadro da diversificação da economia, o turismo deveria assumir um papel promotor do desenvolvimento e gerador de receitas e de emprego. Para que isso se concretizasse, o governo deveria apostar no curto e médio prazo, na expansão das infraestruturas hoteleiras e na infraestruturação dos pólos turísticos de Cabo Ledo, Calandula e do Projecto Transfronteiriço de Okavango Zambeze, com o propósito de aumentar a oferta e as opções de diversidade de turistas e clientes, em geral[1]

Recentemente debateu-se uma eventual crise no turismo na Europa, admitindo-se que Grécia, Itália, França, Espanha e Portugal sejam afetados pelas sanções à Rússia decorrentes da guerra na Ucrânia (o que em relação, pelo menos a Portugal, é duvidoso, pois o país não estava dependente do turismo russo), o Egito ainda não recuperou totalmente do medo dos atentados bombistas, a Indonésia tem dificuldades em conter o fundamentalismo muçulmano, a Índia debate-se com níveis de poluição crescentes, o Quénia e Senegal podem ser invadidos por agitação islâmica, destinos de eleição como a Turquia, Israel, Tailândia e Dubai estão algo saturados. Este panorama está descrito de forma algo enfática, contudo, abre oportunidades para o turismo em Angola, pois representa uma certa tendência verificável.

O país tem no turismo potencialidades para captar turistas, tal como fizeram Cabo Verde e o Botswana; tem praias paradisíacas, deserto e florestas, rios de grandes caudais, montanhas, fauna e flora exuberantes, e, acima de tudo, um povo acolhedor e uma gastronomia rica e variada.

2-Panorama do turismo angolano

Não existe uma indústria de turismo desenvolvida em Angola. As poucas zonas que são desenvolvidas aproveitaram as belezas naturais do país, rios, cascatas e os 1.650 km de costa atlântica. Como descrevem os folhetos oficiais: “O clima tropical húmido [de Angola] criou uma flora exuberante e fauna rica espalhada por regiões com matas, savanas, serras impressionantes, rios, praias que parecem estender-se sem limites, cascatas, oásis e belas paisagens que parecem prolongar-se até o infinito e são todas imaculadas e intactas. Um verão sem fim de tardes quentes banhadas em brisas quentes para contemplar aventura e descoberta”.

Angola tem uma beleza natural extrema que se revela como um destino turístico promissor. A Ilha do Mussulo e Cabo Ledo são exemplos de locais com uma imensa capacidade de atração de turistas, assim como várias zonas das províncias como Namibe, Benguela, Malanje e Cuanza-Sul. As Cataratas de Calandula em Malanje são particularmente impressionantes.

Contudo, atualmente, a maioria dos viajantes estrangeiros que chegam a Angola não são turistas, mas sim empresários, trabalhadores e consultores. Isso significa que os hotéis estão voltados para negócios e não turismo ou lazer. Como os negócios passaram uma grave crise desde 2015, de que só agora (2022) se está verdadeiramente a sair, quer dizer que nos últimos anos existiu uma taxa de ocupação marcadamente baixa nos hotéis, que passou de 84% em 2014 para 35% em 2017 e 25% em 2018. Esta queda na ocupação refletiu a crise que ofuscou o país, e não a falta de interesse pelo turismo. A queda dos preços do petróleo que se verificou desde 2014 e até ao ano passado levou a uma diminuição da atividade económica em Angola, o que teve como consequência que menos viajantes de negócios ocupassem hotéis.

Os responsáveis reconhecem que presentemente, existem grandes fragilidades no sector turístico, designadamente “carência de medidas concretas de apoio e incentivo, difícil acesso aos lugares, potenciais recursos e atrativos turísticos, falta de valorização dos recursos turísticos, falta de flexibilidade do sistema bancário ao financiamento de projetos turísticos, défice em termos de estabelecimentos de formação hoteleira e turística, dependência excessiva das importações, por força do défice na produção interna, falta de cultura turística, falta de uma maior abertura na concessão dos vistos de entrada nos principais mercados emissores de turistas do mundo e reduzido poder de compra dos angolanos[2]”.

No entanto, esses números e factos pouco animadores não representam nenhuma tendência estrutural. Entre 2009-2014 Angola registara um forte crescimento do sector hoteleiro com receitas superiores a 45 mil milhões de kwanzas (100 milhões de euros ao câmbio da altura), criando cerca de 223 mil postos de trabalho. Assim, há um claro potencial para o negócio do turismo.

3-Localizações turísticas e mercados potenciais

Angola tem inúmeros pontos turísticos, entre os quais podem-se destacar os parques nacionais da Kissama e Iona, Quedas de Calandula, do Ruacaná, Mussulo, Miradouro da Lua ou o Rio Zambeze.

É possível promover o desenvolvimento de hotéis e estâncias balneares turísticas destinadas a veraneantes em algumas das áreas especificamente destinadas ao turismo de sol, mar e areia como Cabo Ledo a 120km de Luanda no concelho da Quiçama, que tem 2.000 hectares de enorme beleza e é um local potencial para o surf mundial, assim que os processos de vistos sejam facilitados.

Outra alternativa voltada para o turismo de natureza é Calandula, Malange que possui as cascatas mais impressionantes de Angola e é o segundo maior da África com 150 metros de altura e 401 metros de largura. Uma área de 1.978 hectares de vegetação infinita e cascatas a perder de vista e que tem um enorme potencial de investimento turístico: alojamento turístico, restauração, animação, golfe e casinos.

Surgiu também a ideia duma rota dos museus. A iniciativa desta rota é despertar e aumentar a cultura de visitas a museus, a fim de se criar identidade patrimonial. Esta rota contempla o Palácio de Ferro, Museu Nacional de História Militar (Fortaleza São Miguel), Museu Nacional de História Natural e o Museu Nacional da Escravatura, passando por várias unidades hoteleiras. Esta rota deverá servir de modelo para implementação em todas as províncias do país.

Os mercados-alvo do turismo angolano deveriam ser a Rússia (após a resolução pacífica da guerra) e a China, que são hoje os países de onde são oriundos mais de 50% dos turistas internacionais, Angola tem tudo para absorver uma fatia substancial desses mercados. Além disso, como se referiu acima, poderia absorver alguma procura europeia, sobretudo na área da aventura e experiências ecológicas novas.

4-Eixos estratégicos e zonas especiais de turismo (ZET)

Como mencionámos acima a estratégia para o turismo deve assentar em dois eixos: o fomento do investimento e a criação de infraestruturas.

Reconhecemos que existe um novo clima favorável ao investimento e também um esforço, sobretudo no âmbito da CPLP, de flexibilização do processo burocrático de emissão de vistos de turismo, ou seja, estão a ser desenvolvidas as condições para uma nova estratégia de captação de turistas.

Segundo um responsável angolano, os documentos necessários para o licenciamento dos empreendimentos turísticos foram reduzidos, passando de 11 documentos antes exigidos para três. Foi alterada a validade dos alvarás de três para cinco anos, está em curso o processo de descentralização do sistema de emissão dos alvarás. Todas essas ações visam a melhoria do ambiente de negócios na área do Turismo. Em relação aos vistos, o mesmo responsável salienta que o processo já foi mais difícil. Fez saber que houve avanços significativos, que precisam de ser melhorados, para atrair mais turistas[3].

Os mesmos responsáveis defendem que em termos de infraestruturas existem lacunas fáceis de resolver; o aeroporto da Catumbela (Benguela) poderá ser dotado de mecanismos para receber voos internacionais diretos, os transportes fazem parte do investimento que cabe aos privados, a linha férrea do Caminho de Ferro de Benguela passa a centenas de metros do aeroporto, liga à Zâmbia e à República Democrática do Congo e vai até à Tanzânia no Índico, o Lobito tem um Porto de grande capacidade, e a própria expansão vai proporcionando investimentos paralelos na saúde, na formação, nos serviços, e na capacidade de produção de mão de obra qualificada e competitiva.

Ao nível do governo, há o reconhecimento do Turismo como sector estratégico no Plano Desenvolvimento Nacional 2018-2022, como garantia de mão-de-obra intensiva, a par da agricultura, das indústrias diversas e das pescas. Constam do Plano de Desenvolvimento Nacional algumas ações pontuais, tais como a melhoria na comunicação com os Polos de desenvolvimento Turísticos, a elaboração de projetos de construção e reabilitação de infraestruturas hoteleiras e turísticas, estatais e mistas, a identificação de zonas de desenvolvimento prioritário, com o intuito de recuperar e desenvolver todo o património da rede hoteleira e turística.

Outro responsável governativo, que, entretanto, cessou funções, sublinhou que além de Angola começar agora a reduzir as restrições e a burocracia, como parte da estratégia para relançar o turismo e promover a atração de investimento para o setor, queria passar a chamar a atenção internacional para o país, contando com a colaboração da supermodelo internacional Maria Borges, que iria ajudar a promover as potencialidades. A estratégia passaria por chamar um nome internacional, Maria Borges, para ajudar a promover a cultura, a história e os principais destinos turísticos do país.[4]

Com a nova estratégia para a promoção do turismo, Angola espera integrar a lista dos principais destinos turísticos em África até 2025[5].

***

No entanto, não se consegue no curto-prazo criar uma infraestrutura nacional completa para o turismo. Há que haver pragmatismo e realismo nas abordagens políticas de promoção do turismo num país em que este tem sido quase inexistente. É nesse sentido que a melhor solução deve ser dupla e com prazos diferentes.

A médio-prazo deve ser desenvolvida uma estratégia nacional de turismo. Contudo, a curto-prazo deve existir uma aposta focada naquilo que denominaremos Zonas Especiais de Turismo (ZET). As ZET seriam cinco áreas do país em que o Estado em parceria com os privados e as autoridades locais se focaria para criar infraestruturas e condições específicas para o turismo. Zonas com fácil acesso, hotéis, restaurantes, segurança garantida e talvez vistos livre-trânsito para se ir visitar essas zonas. Zonas preferenciais eleitas para testar as ZET poderiam ser Malanje, uma área de praia com animação urbana, uma área de praia de estilo paradisíaco, e uma cidade com muita história ou uma zona com interesse ecológico vocacionada para os turistas europeus.

Figura 2: Zonas Especiais de Turismo (ZET)

Estas zonas teriam tratamento fiscal privilegiado e devia-se contemplar a eliminação de vistos para quem fosse para lá até 15 dias. Esta proposta implicaria eliminação de vistos para turistas estrangeiros dos mercado-alvo que se deslocassem para as ZETs por um prazo máximo de 15 dias em turismo. Bastar-lhes-ia apresentar bilhete de avião de volta e comprovativo da reserva em alojamento turístico.

Haveria assim a criação de circunscrições-piloto dedicadas ao turismo, pequenas cápsulas do que poderia ser o turismo global em Angola no futuro.

Conclusões

O turismo pode ser uma das áreas de excelência da diversificação da economia angolana em curso, pois é um sector onde o país tem um enorme potencial. A aposta no turismo deve ser um trabalho tripartido do Estado, empresariado privado e comunidades locais. Os mercados-alvo serão a Ásia e a Rússia (após a solução da Guerra da Ucrânia), bem como os turistas ecológicos ou aventureiros europeus.

Para existir turismo em Angola devem ser proporcionadas condições de investimento (o que está em curso) bem como infraestruturas adequadas em termos físicos e de fácil deslocação.

É aconselhável proceder no curto-prazo à criação de Zonas Especiais de Turismo que funcionem como experiências-piloto da promoção de turismo. Zonas que congregarão hotéis, restaurantes, animação local, segurança e fáceis acessos, e eliminação de vistos para turismo nas ZETs. E depois com os resultados dessas ZET estender a todo o país.


[1] https://e-global.pt/noticias/lusofonia/angola/angola-joao-lourenco-aposta-em-turismo-para-diversificar-economia-do-pais/

[2] https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/os-resultados-da-estrategia-para-o-turismo-ainda-sao-incipientes/ – entrevista à Angop do diretor geral do Infotur – 31-08-2021

[3] https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/o-futuro-de-angola-repousa-no-turismo-e-nao-no-petroleo/

[4] https://pt.euronews.com/2021/06/28/as-apostas-de-angola-para-relancar-o-turismo

[5] https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/o-futuro-de-angola-repousa-no-turismo-e-nao-no-petroleo/

Os novos parceiros estratégicos de Angola e a posição de Portugal

Os novos parceiros estratégicos de Angola: Espanha e Turquia

Duas recentes intensas trocas diplomáticas ao mais alto nível fazem despontar o surgimento de novas parcerias estratégicas para Angola. Já em anterior relatório alertámos para os realinhamentos da política externa angolana.[1] Ora, o que se verifica é que esse realinhamento continua, e a um ritmo intenso. O Presidente da República João Lourenço está claramente a imprimir uma nova dinâmica aos negócios estrangeiros de Angola, que não se vê que esteja a ser afetada por alguma agitação interna que se verifica no caminho para o processo eleitoral de 2022.

Os exemplos mais recentes da atividade diplomática do Presidente são a Espanha e a Turquia. O importante nas relações com estes países não é haver ou não uma visita ao mais alto nível, é haver uma intensidade de visitas de parte a parte e objetivos claros desenhados. Pode-se dizer que na perspetiva mútua, Espanha e Turquia estão a tornar-se parceiros estratégicos de Angola.

Comecemos por Espanha. Em abril último, o primeiro-ministro de Espanha, Pedro Sanchez, que pouco abandonou o país durante a pandemia Covid-19, visitou Angola. A visita foi encarada como marcando uma nova era na cooperação bilateral entre os dois países e originou a assinatura de quatro memorandos sobre Agricultura e Pescas, Transportes, Indústria e Comércio. Teve especial relevância o acordo referente ao desenvolvimento do agro-negócio, para futuramente montar uma indústria que transforme a matéria-prima em produto acabado, contando com a experiência dos empresários espanhóis. Como se sabe, a agropecuária é uma das áreas de aposta do governo angolano para o relançamento e diversificação da economia.[2] Portanto, este acordo dedica-se a um vetor fundamental da política económica angolana.

Mais recentemente, em finais de setembro de 2021, o Presidente da República de Angola visitou Espanha onde foi recebido pelo Rei e pelo primeiro-ministro. Nessa visita, João Lourenço afirmou claramente que estava em Espanha em busca duma “parceria estratégica” que ultrapassasse a esfera meramente económica e empresarial. [3] Por sua vez, as autoridades espanholas consideram Angola como “país prioritário[4]“.

Agora ver-se-á como estas intenções alargadas se concretizarão na prática, mas o certo é que ambos os países estão a apostar manifestamente num incremento das relações quer económicas, quer políticas e as suas declarações e objetivos parecem ter um rumo e um sentido.

O mesmo tipo de relação intensificada se está a estabelecer com a Turquia. Em julho passado, João Lourenço visitou a Turquia, onde foi extremamente bem-recebido. Aí desde logo ficou acordado que companhia aérea Turkish Airlines iria voar duas vezes por semana da Turquia para Luanda. Também foi anunciado que a Turquia abriu uma linha de crédito no seu Exxim Bank impulsionar a relação económica bilateral. Isto quer dizer que o sistema financeiro turco vai financiar os empresários turcos para investir em Angola. Já em outubro de 2021, o Presidente turco Erdogan visitou Angola. Essa visita foi rodeada de toda a pompa e circunstância e manifestou uma excelente relação entre os dois países. Tal como a Espanha a Turquia tem uma estratégia agressiva para África, onde pretende obter espaço para a sua economia e influência política. Os acordos assinados por Erdogan e João Lourenço foram sete, nomeadamente, um acordo de assistência mútua em matéria aduaneira; um acordo de cooperação no domínio da agricultura; um acordo de cooperação no domínio da indústria; uma declaração conjunta para o estabelecimento da comissão económica e comercial conjunta; um memorando de entendimento no domínio do turismo e um protocolo de cooperação entre a Rádio Nacional de Angola e a Corporação de Rádio e Televisão da Turquia[5].

A abordagem com a Turquia, tal como a de Espanha, tem como objetivo imediato e estruturante “que [os Turcos] tragam sobretudo know-how que nos permita diversificar e aumentar com rapidez e eficiência a nossa produção interna de bens e serviços”, usando as palavas de João Lourenço[6].

Nestas duas apostas de João Lourenço há uma determinação óbvia, ou melhor duas.

Em primeiro lugar buscar novas fontes de investimento que amparem a fundamental diversificação da economia angolana. Tal é de extremo relevo, e as economias turca e espanhola são devidamente diversas para puderem corresponder ao modelo pretendido por Angola.

O segundo aspeto da aposta refere-se à necessidade que Lourenço sente de descolar Angola de uma excessiva relação com a China e a Rússia, sem as hostilizar, mas procurando novos parceiros. O peso geopolítico da Guerra Fria e a sequente implementação do modelo chinês em África, com o qual Angola está identificado pesam muito nas avaliações das chancelarias e investidores. Assim, Angola procura novas aberturas e uma “descolagem” dessa marca anterior, até porque a Rússia não tem músculo financeiro para realizar grandes investimentos em Angola, e a China está no meio dum turbilhão económico. Como é público, a “economia chinesa cresceu 4,9% no terceiro trimestre deste ano, a mais baixa taxa num ano, reflectindo não apenas os problemas que está a enfrentar com o endividamento do sector imobiliário, mas também, e já, os efeitos da crise energética.”[7] Isto quer dizer que a China precisa e muito do petróleo angolano, mas não terá disponibilidades financeiras para avultados investimentos em Angola.

Na verdade, as relações entre a China e Angola e a necessidade de uma reavaliação da mesma, sobretudo ao nível do fornecimento de petróleo e da opacidade dos arranjos terá que ser um tema para um relatório autónomo que iremos produzir no futuro próximo.

A posição de Portugal. A desberlinização em curso

Estabelecida que está a relevância da intensificação das relações de Angola com Espanha e a Turquia, coloca-se uma questão óbvia: e Portugal?

Portugal tem tentado ser o parceiro por excelência de Angola, e para isso tem-se acomodado, no passado, aos vários ímpetos da governação angolana.

Atualmente, existem boas relações políticas entre Angola e Portugal. Ainda recentemente, João Lourenço afirmou o seguinte: “Tive a felicidade de durante este meu primeiro mandato termos sabido manter a um nível bastante alto as relações de amizade e cooperação entre os nossos dois países[8].” Acrescentando ainda que as “relações pessoais também ajudam. Portanto, nós soubemos construir ao longo dos anos essa mesma relação com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e com o primeiro-ministro António Costa.” Não existem dúvidas que estão estabelecidas relações favoráveis entre Angola e Portugal.  A isso ajuda também que Portugal conta com três laços que se fazem sentir todos os dias; os laços históricos, os laços culturais, sobretudo linguísticos, e os laços emotivos.

Contudo, e apesar do contentamento expresso pelo Presidente angolano naquilo que diz respeito às boas relações entre os dois países, há questões estruturais que lançam sombras no relacionamento e tornam a posição de Portugal menos relevante para Angola do que no passado, gerando alguma cautela da parte angolana em relação a demasiados envolvimentos com Portugal. Efetivamente, há um declínio da posição portuguesa em Angola, face a Espanha ou a Turquia, ou a Alemanha, França ou Reino Unido. Há uma desberlinização em curso da política externa angolana. João Lourenço verá Portugal como aliado na CPLP, mas não como porta de entrada ou plataforma para a Europa. Aí quer relacionar-se diretamente a cada um dos países europeus em concreto. A velha ideia que perpassava nalgumas chancelarias europeias que os assuntos angolanos eram específicos de Portugal e deviam ser tratados a partir, ou pelo menos, com o concurso de Lisboa (que chamamos berlinização), terminou. Cada um dos países europeus lida agora com Angola sem a intermediação portuguesa e vice-versa.

Este facto resulta essencialmente de três fatores. Um de natureza económica, e dois de natureza política.

Em primeiro lugar, Angola procura nesta sua incursão pelo mundo países com potencialidade e capital para investir. Está à procura de capital para desenvolver a sua economia. Ora Portugal, saltando de crise em crise e tendo uma manifesta falta de capital para o seu desenvolvimento, muito menos terá meios para deslocar para Angola. E no famoso Plano de Recuperação e Resiliência português não se encontra nada específico para investimento em África ou Angola em concreto. Consequentemente, não havendo provisões destacadas para Angola no Plano português, bem se percebe que o país africano terá de ir procurar massivos investimentos noutras paragens.

No entanto, acreditamos que este não é a principal causa para o declínio relativo da posição portuguesa nas prioridades da política externa angolana. Existem outras duas razões, aliás interligadas.

Neste sentido, existe um fator que tem causado a inquietação da atual liderança angolana face a Portugal. Este fator reside no facto de no passado próximo, Portugal ter constituído aquilo a que o Financial Times de 19 de outubro[9] qualifica como o local onde a elite rica (e corrupta) de Angola colecionou troféus em ativos, uma espécie de recreio dos filhos do Presidente José Eduardo dos Santos e de outros membros da oligarquia. Ora, a governação angolana, aparentemente, olha com alguma desconfiança para Portugal devido a isso, sobretudo, considerando a intervenção que bancos, advogados, consultores e toda uma panóplia de prestadores de serviços portugueses tiveram no branqueamento e ocultação de ativos adquiridos com dinheiro ilicitamente saído de Angola. Há o perigo de todas estas entidades estarem a desenvolver esforços para prejudicar o famoso combate contra a corrupção encetado por João Lourenço.

O que se verificou durante os anos de crescimento feérico de Angola, entre 2004 e 2014, sensivelmente, é que Portugal funcionou como íman para as poupanças e rendimentos dos angolanos. As elites dirigentes angolanas em vez de investir o dinheiro no seu país foram investi-lo, ou meramente parqueá-lo em Portugal, com consequências desastrosas para Angola, que se viu sem o capital necessário para tornar sustentável o seu crescimento. O raciocínio que se poderá atribuir ao governo angolano é que Portugal deixou que o dinheiro angolano obtido ilicitamente fosse branqueado no seu sistema económico e financeiro com tal profundidade que agora é de recuperação muito difícil. Ana Gomes, sensatamente, sempre alertou sobre isto. Na verdade, se repararmos em relação a ativos recuperados por Angola com grande significado ainda não houve notícia pública que algum deles proviesse de Portugal. Houve os 500 milhões de dólares que vieram de Inglaterra, mas em Portugal, a EFACEC foi nacionalizada pelo governo português- e bem do ponto de vista do interesse nacional de Lisboa- mas percebeu-se que Angola não receberia nada daí, como também não se vê um caminho claro de recebimento de outras situações.

A este fenómeno adiciona-se um segundo que se nota presentemente. Lisboa está a servir como plataforma para a articulação mais ou menos dissimulada de fortes ataques da oposição ao governo angolano. Seja através de consultoras, imprensa ou escritórios de advogados. Neste caso, ao contrário eventualmente, do caso dos investimentos e possíveis branqueamentos, essas atividades decorrerão de acordo com a lei e as proteções adequadas dos direitos fundamentais. No entanto, criará um mal-estar na liderança angolana, que possivelmente verá uma ligação entre os dois fenómenos, isto é, entre o facto de Portugal ter sido um safe heaven para ativos angolanos obtidos ilicitamente, no passado, e agora se tornar um local de encontro e conspiração da oposição, sobretudo, à chamada luta contra a corrupção. Percebe-se que muitos dos movimentos ocorrem em Portugal e as suas elites continuam a ajudar aqueles que foram apelidados por João Lourenço como “marimbondos”, seja em termos judiciais, seja na procura de novos locais para esconderem o seu dinheiro.

Em termos concretos, o episódio da nacionalização EFACEC aliado à recente decisão judicial de “descongelar” as contas de Tchizé dos Santos em Portugal, e à generalização de uma corrente anti João Lourenço em largos espaços da comunicação social portuguesa, embora constituam decisões ou atitudes que se justificam em termos políticos, legais ou éticos em Portugal, são eventos que fazem reforçar alguma desconfiança angolana face à atitude portuguesa, que podem ver a antiga potência colonial numa espécie de jogo de sombras.

Estas situações que se têm alargado nos últimos meses, estão a provocar algum desconforto em Angola, que poderão considerar Portugal como uma espécie de porto seguro para atividades que prejudicam o país. Paulatinamente, as conspirações oriundas de território português abundam, como as reuniões, encontros e demais eventos

São precisamente os motivos acima referidos que nos levam a identificar alguma tentativa de distanciamento político do governo de Angola face a Portugal. Não há respostas fáceis a estas equações, embora a sua enunciação tenha de ser feita para reflexão de todos os intervenientes.


[1] CEDESA, 2021, https://www.cedesa.pt/2021/05/18/os-realinhamentos-da-politica-externa-de-angola/

[2] Ver nosso Relatório CEDESA, 2020, https://www.cedesa.pt/2020/06/15/plano-agro-pecuario-de-angola-diversificar-para-o-novo-petroleo-de-angola/

[3] Deutsche Welle, 2021, https://www.dw.com/pt-002/jo%C3%A3o-louren%C3%A7o-em-espanha-em-busca-de-parceria-estrat%C3%A9gica/a-59344760

[4] Idem nota 3.

[5] Presidência da República de Angola, 2021, https://www.facebook.com/PresidedaRepublica

[6] Idem, nota 5.

[7] Helena Garrido, 2021, https://observador.pt/opiniao/o-choque-energetico-e-o-orcamento-em-duodecimos/

[8] Observador, 2021, https://observador.pt/2021/10/22/pr-de-angola-ve-relacoes-de-amizade-e-cooperacao-com-portugal-em-nivel-bastante-alto/

[9] Financial Times, 2021, https://www.ft.com/content/4652e15a-f7ba-4d21-9788-41db251c5a76

A questão do capital em Angola

1-Introdução: FMI, políticas económicas sólidas e acumulação de capital

Ao contrário do que se pode entender de algumas análises e previsões económicas presentemente realizadas por algumas consultoras mais ou menos desconhecidas, a atual política económica angolana tem fundamentos sólidos. Tal é demonstrado pela recente avaliação do Fundo Monetário Internacional a propósito do acordo entre o fundo e Angola. A administração do FMI é clara ao declarar[1]: “The authorities [from Angola government] have supported the [economic] recovery through sound policies that aim to further stabilize the economy, create opportunities for inclusive growth and protect the most vulnerable in Angolan society.” (As autoridades [angolanas] têm apoiado a recuperação [económica] através de políticas sólidas que visam estabilizar ainda mais a economia, criar oportunidades de crescimento inclusivo e proteger os mais vulneráveis da sociedade angolana). [ênfase nossa].

Melhor endosso à política económica do governo seria difícil.

No entanto, a estabilização macroeconómica e o relançamento do crescimento económico são realidades diferentes. É necessário que exista um determinado motor que assegure o crescimento económico. É sabido que o modelo essencial de crescimento foi apresentado por Robert Solow (prémio Nobel da Economia em 1987), que explica que o crescimento depende essencialmente da acumulação de capital, sendo que o aumento do PIB resulta do aumento do stock de capital[2].

É conhecido que os últimos números do PIB angolano, respeitantes ao primeiro trimestre de 2021, são negativos em 3,4%. Portanto, a questão que se coloca agora é: como transformar políticas económicas sólidas em acumulação de capital e promover o crescimento do PIB?

2-O capital na economia angolana

O modelo essencial de crescimento da economia angolana, pelo menos a partir de 2021, não foi um modelo assente primordialmente no investimento, mas no consumo derivado de importações e no benefício direto das mais-valias provenientes do elevado preço do petróleo. Tal importou que o investimento que existiu fosse induzido pelo petróleo e não se estendesse à economia como um todo.[3]Refira-se, ademais, que uma boa parte dos ganhos em poupança dessa época não foi transformada em investimento doméstico, tendo sido transferido de Angola para o exterior. Dito de forma coloquial, houve uma fuga acentuadíssima de capitais de Angola para o estrangeiro, designadamente Portugal ou paraísos fiscais off-shore[4].

É público que este modelo faliu a partir de 2014, e levou a anos acentuados de crise recessiva após 2015. Ao mesmo tempo verificou-se que a contribuição da formação bruta de capital fixo (FBCF) em relação ao PIB começou a diminuir a partir desse ano (2015). Se reparamos em cada ano a FBC/ PIB foi respetivamente de 28.21 %,26.21 %,23.24 %, 17.19%. O número de 2018 (17,9%) assusta e torna mais relevante a discussão sobre a necessidade de capitalizar a economia angolana.

Figura 1: Formação Bruta de Capital Fixo em relação ao PIB

“O país tem défice de capital”[5] e esse problema tem de ser resolvido para haver crescimento. Este aspeto tem de ser um dos guias da futura política económica. Há que traçar um objetivo de fazer subir a taxa FBCF/PIB para níveis superiores, possivelmente, para os 25/26% que aconteceram em 2007 ou 2012 que asseguram níveis de crescimento do PIB (embora baseados no petróleo) de 14% e 8%. Agora tem de se proceder a nova capitalização não apenas baseada no petróleo.

É fácil diagnosticar. Angola tem falta de capital e necessita de forte investimento. As respostas é que serão mais custosas.

3-Aumentar o capital em Angola

O que fazer para acumular e aumentar capital em Angola?

A nossa resposta divide-se em duas perspetivas, a de curto-prazo e a de médio- prazo. Concentremo-nos no curto-prazo, fazendo depois uma breve referência ao médio-prazo, embora, seja evidente que há um continuum, pois o que se faz agora tem repercussões ao longo do tempo.

O executivo já tomou algumas medidas, que aliás reportámos em anteriores relatórios[6], como a Lei do Investimento Privado (LIP)-Lei n.º 10/18, de 26 de junho que deixou de exigir a obrigatoriedade de parcerias com cidadãos angolanos ou empresas de capital angolano e no seu artigo 14.º garante que o Estado respeita e protege o direito de propriedade dos investidores privados; o artigo 15.º estabelece que o Estado Angolano garante a todos os investidores privados o acesso aos tribunais angolanos para a defesa dos seus interesses, sendo-lhes assegurado o devido processo legal, proteção e segurança. Também as possibilidades de transferência de dividendos foram ampliadas. Aliás, em termos administrativos, há que anotar que em 2018, todas as solicitações para a transferência de dividendos acima dos cinco milhões de dólares (4,3 milhões de euros) foram concedidas a empresas estrangeiras que operam no país. E, mais importante, desde 2020, passaram a estar dispensadas de licenciamento do banco central angolano a importação de capital de investidores estrangeiros que queiram investir no país em empresas ou projetos no sector privado, bem como a exportação dos rendimentos associados a esses investimentos.

No entanto, tal não é ainda suficiente, e o investimento privado estrangeiro vai tardar, seja porque se está a iniciar um período eleitoral muito turbulento, seja porque há uma distração mundial com a Covid-19. Além disso, o executivo ainda não comunicou com toda a amplificação mundial, a abertura de Angola para os negócios. Mesmo assim, é fundamental que o executivo mantenha a orientação política de abertura ao investimento direto estrangeiro.

É preciso fazer mais no curto-prazo para aumentar o investimento em Angola e o subsequente crescimento económico. E aqui são deixadas três sugestões.

  • A sugestão inicial é a óbvia e assenta num reforço do investimento público. É fundamental que o governo se torne um indutor de investimento e que as mais-valias que surjam da subida do preço do petróleo e de eventuais apreensões na luta contra a corrupção sejam aplicadas em investimentos reprodutivos com resultados a curto-prazo.

As duas sugestões seguintes é que poderão ser mais inovadoras.

 Abordemos a primeira das sugestões mais heterodoxas. Como se referiu, uma boa parte das poupanças obtidas pelos angolanos em Angola foi remetida para o exterior, descapitalizando o país. Ora há que inverter isso.

  • Nesse sentido o governo deveria, em primeiro lugar, vender as participações e património adormecidos ou em que não haja interesse estratégico muito relevante, que tem no exterior. Com o resultado dessa venda constituiria um fundo de investimento para aplicar dentro de Angola. Portanto, a primeira proposta heterodoxa para aumentar o capital disponível em Angola consiste em vender o que haja no estrangeiro pertencente ao Estado (direta ou indiretamente) e colocar na economia angolana. Certamente, a posição da Sonangol no Millennium BCP deveria ser vendida e transformada em capital de investimento em Angola, e possivelmente a participação indireta na Galp, se não for possível chegar a um acordo estratégico com a família Amorim para melhor rentabilizar a posição angolana.
  • A segunda sugestão refere-se ao combate à corrupção. É preciso sair de um certo protelamento em que se entrou e dinamizar a recuperação de capitais.

Assim, o governo deveria abordar diretamente aqueles a que chama “marimbondos” e propor-lhes uma solução negociada para a sua situação. Ou entregam os bens que estão no estrangeiro para investimento em Angola, ou terão de cumprir longas penas de prisão. Em relação a esses bens seguir-se-ia o método acima enunciado: Desde que os preços de mercado fossem aceitáveis, tudo seria vendido e o capital retornaria a Angola para investimento de acordo com uma fórmula acordada entre ambas as partes.

Esta “negociação” não seria levada a cabo pelos meios comuns, mas por uma força especial a constituir em Angola e teria prazos curtos, não os prazos judiciais.

Terá de haver uma radicalização em ambos os sentidos no combate à corrupção. Mais eficácia na punição ou no perdão com repatriamento. Ao contrário do que aconteceu na anterior lei de repatriamento não se ficaria à espera, mas haveria uma atitude proativa por parte do executivo.

A título de mera ilustração poderia ser vendida a participação de Isabel dos Santos na NOS, a do general Kopelipa no banco BIG e em vários empreendimentos hoteleiros, os apartamentos que as antigas figuras possuem no Estoril, etc. O resultado destas vendas retornaria a Angola onde seria investido em termos a acordar entre o Estado e os antigos titulares.

Estas medidas elencadas, poderiam dar algum impulso à economia angolana e assim promover o crescimento económico no imediato.

Ao nível do médio-prazo o essencial é não existir corrupção desenfreada, serem criadas boas infraestruturas de comunicação, um aparato legal amigo do investidor e com tribunais rápidos e não corruptos, uma força de trabalho educada (isto não quer dizer que tenha de ter cursos universitários, mas as aptidões necessárias) e impostos razoáveis. Em resumo, um clima político e social convidativo para o investimento.


[1] IMF, Fifth review under the extended arrangement under the extended fund facility and request for modifications of performance criteria— press release; staff report, and statement by the executive director for Angola, Junho 2021, disponível em https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2021/06/30/Angola-Fifth-Review-Under-the-Extended-Arrangement-Under-the-Extended-Fund-Facility-and-461318

[2] Cfr. A recente reavaliação e descrição em Philippe Aghion, Céline Antonin e Simon Bunel (2021), The Power of Creative Destruction

[3] Cfr. Rui Verde (2021), Angola at the Crossroads. Between Kleptocracy and Development

[4] Cfr. por ex: Isabel Costa Bordalo, Angola com 60 mil milhões USD é terceiro em África na fuga de capitais,  https://www.expansao.co.ao/angola/interior/angola-com-60-mil-milhoes-usd-e-terceiro-em-africa-na-fuga-de-capitais-94979.html

[5] Jonuel Gonçalves (2021), Angola: Não é a Covid que está a provocar a crise económica, https://www.dw.com/pt-002/angola-n%C3%A3o-%C3%A9-a-covid-que-est%C3%A1-a-provocar-a-crise-econ%C3%B3mica/a-58859385

[6] CEDESA, (2020), A nova atractividade para o investimento internacional em Angola https://www.cedesa.pt/2020/03/09/a-nova-atractividade-para-o-investimento-internacional-em-angola/