Obras estruturantes de combate aos efeitos da seca no Sul de Angola

1-Introdução: caracterização do projeto de construções de captação de águas no rio Cunene

Tem sido uma preocupação desta entidade procurar respostas concretas relativamente aos problemas específicos, para além da retórica intensa em períodos pré-eleitorais. Neste caso, um dos temas que nos interessa é o da Seca no Sul de Angola. Como já referimos em relatório do passado mês de novembro[1], acompanhamos as obras em curso referentes à Seca. Uma delas está quase pronta a ser inaugurada e ficar operacional. É sobre ela que damos conta neste documento.

O presente relatório debruça-se sobre a execução das Obras Estruturantes de Combate à Seca, especificamente o projeto e construção de captação no rio Cunene e construção de canais adutores até às localidades de Cuamato, Namacunde e Ndombondola.

Este projeto compreende 2 Lotes:

  • LOTE 1 – Projeto e Construção de Captação no rio Cunene, Sistema de Bombagem, Conduta Pressurizada, Canal Aberto a partir de Cafú até Cuamato e 10 Chimpacas;
  • LOTE 2 – Projeto e Construção de Canal Adutor a partir de Ombala – Cuamato até Ndombondola, Canal Adutor a partir de Cuamato até Namacunde e 20 Chimpacas

Relativamente ao Lote 1, o Empreiteiro Geral é a SINOHYDRO Corporation Limitada, uma sociedade anónima constituída em 2011 em Luanda cuja propriedade é detida por empresas chinesas. A fiscalização é do Consórcio GWIC – Angola, S.A / SINTEC – Consultoria de Engenharia, Lda. No que diz respeito ao Lote 2, a entidade responsável é a mesma, exceto na fiscalização; neste caso a entidade responsável é a TRIEDE Angola, Lda. Uma empresa prestigiada de origem portuguesa.

O prazo previsto para a conclusão da empreitada aponta para o final do mês de março de 2022. Portanto, espera-se uma inauguração para muito breve.

O valor das duas obras atinge os 140 milhões de dólares norte-americanos.

Figura 1: Lotes 1 e 2 do Projeto (Província do Cunene, Angola)

2-Explicitação dos projetos

O Lote 1 compreende as obras de Transferência de Água do Rio Cunene, na secção do Cafu, para a localidades de Cuamato, e assenta na construção da tomada de água, estação de bombagem, condutas pressurizadas, canais adutores e instalações associadas.

O Projeto é composto pelos seguintes elementos principais:

  • Captação no leito do rio Cunene, incluindo a estrutura da tomada de água, comportas, grelhas e outros equipamentos associados;
  • Estação de Bombagem com capacidade de 2 m3/s;
  • A Estação de Bombagem estará equipada com duas bombas ativas e uma de reserva na primeira fase. As bombas serão do tipo turbina, verticais, com capacidade nominal de 1 m3/s;
  • Canal gravítico revestido para receber 6 m3/s. O comprimento do canal é de 46,54 quilómetros com ligação ao reservatório, considerando-se o alinhamento que minimize movimentos de terras;
  • Um alinhamento Norte-Sul foi estabelecido de Cafu até a região de Ombala-Io-Mungo. No final, o canal gravítico será dividido em dois ramais, servindo as localidades de Namacunde e Ndombondola.

Figura 2: Canal condutor geral | Revestimento manual com betão da classe C20/25, 35 km, 1 frentes km (45.954)

Figura 3: Chimpacas | Estados da Chimpaca

Por sua vez, o Lote 2 compreende as obras dos seguintes canais, que derivam da Estrutura de Derivação (ED) de caudais do Canal Condutor Geral (CCG):

  • Canal Condutor Oeste – CCO (Cuamato / Ndombondola), com a extensão de cerca de 53,04 quilómetros;
  • Canal Condutor Este – CCE (Cuamato / Namacunde), com a extensão de cerca de 53,11 quilómetros.

Figura 4: canal adutor Este (CCE)

Figura 5: Colocação de vedação nas Chimpacas dos canais Este e Oeste

3-Atrasos, avanços e recursos utilizados

Devido a vários constrangimentos ocorridos em 2021, como falta de gasóleo no Sul de Angola, água para produção de betão e respetiva cura, cimento em obra, e precipitações, a conclusão da obra deslizou um pouco, uma vez que a conclusão estava prevista inicialmente para fevereiro. Agora a data de conclusão é para o final do mês de março (talvez início de abril).

Foram afetos às obras um total de 1250 trabalhadores (Lote 1 – 417; Lote – 833), sendo 162 (Lote 1 – 70; Lote 2 – 92) de nacionalidade chinesa e 1088 (Lote 1 – 347; Lote 2 – 741) de nacionalidade angolana. Estão alocados às obras os equipamentos, num total de 388 unidades das quais 135 no Lote 1 e 243 unidades no Lote 2.

4-Benefícios para as populações

         O projeto, como foi apresentado acima, consiste a construção do sistema de transferência de água do Rio Cunene, da localidade de Cafu para a região das Chanas na província do Cunene, em Angola. As intervenções estão incluídas num investimento total superior a 140 milhões de euros realizado pelo governo para fazer face aos longos períodos de seca que afetam de modo dramático pessoas e animais.

            Pretende-se criar as condições propícias para o desenvolvimento da agricultura e pecuária, aumento da resiliência às alterações climáticas nesta região praticamente deserta do Sul de Angola, sujeita a frequentes secas prolongadas, beneficiando centenas de milhares de habitantes e cabeças de gado, bem como fornecendo água para irrigação numa área estimada em 5.000 hectares.

Existe a expectativa que o projeto venha a beneficiar aproximadamente 200.000 habitantes e 250.000 cabeças de gado. Refira-se que o Cunene tem cerca de 900 mil habitantes, pelo que mais de 20% da população é abrangida por esta obra.


[1] https://www.cedesa.pt/2021/11/16/o-combate-estrutural-a-seca-no-sul-de-angola-o-caso-do-cunene/

As novas ameaças e o reforço das Forças Armadas Angolanas

Novas ameaças a Angola

A história de Angola tem sido uma constante de desafios e superações, tendo estado a sua sobrevivência como entidade única ameaçada desde a independência em 1975. Nunca é demais lembrar que a própria independência foi declarada em diferentes horas e vários locais por entidades diversas, com maior ou menor legitimidade. Agostinho Neto proclamou a independência da República Popular de Angola às 23h de 11 de novembro de 1975, em Luanda. Holden Roberto, líder da FNLA, anunciava a Independência da República Popular e Democrática de Angola à meia-noite do dia 11 de novembro, no Ambriz e Jonas Savimbi fazia o mesmo pela UNITA na então Nova Lisboa no mesmo dia, declarando o nascimento da República Social Democrática de Angola.

Imediatamente, seguiu-se uma guerra civil que mais ou menos esporadicamente, abrangendo maiores ou menores áreas, durou até 2002. As tentativas de invasão externa também foram frequentes, a África do Sul ainda antes da independência entrou pela Namíbia e o Zaire de Mobutu fez o mesmo a norte. Depois foi a vez de Cuba, a convite do governo de Luanda também entrar no país para contrapor as outras invasões.[1]As intervenções indiretas das então superpotências, também abundaram, sendo desnecessário recordar as ameaças de desintegração que o país viveu até ao final da guerra civil em 2002.

Depois dessa data as ameaças que se colocaram a Angola diminuíram, embora muitas permanecessem latentes e outras surgissem como as ligadas à captura do Estado e corrupção.[2]

Na atualidade, há um incremento das ameaças externas pós 2002, não assumindo os contornos dramáticos dos anos a seguir à independência, mas colocando exigentes desafios às forças de defesa da soberania, integridade territorial e ordem pública nacional.

Separatismo

A nível interno, vislumbra-se o reacender das tentativas separatistas, quer nas Lundas, quer em Cabinda, que poderão ser rastilho para outras iniciativas. Relativamente a Cabinda surgiram recentemente relatos nas redes sociais, replicados nalguns órgãos de comunicação social de confrontos entre o braço-armado da Frente de Libertação do Estado de Cabinda (FLEC) e as Forças Armadas Angolanas (FAA).[3] Esses ataques, reais ou virtuais, sucedem-se a várias queixas da República Democrática do Congo (RDC) acerca de incursões angolanas no seu território em aparente hot pursuit de membros da FLEC. Em agosto passado, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da RDC, Célestin Mbala Musense, criticava supostas incursões da Marinha angolana em águas territoriais do país em operações contra rebeldes de Cabinda e afirmava que os soldados das FAA estariam a multiplicar as incursões na perseguição aos rebeldes da FLEC. [4]

A par deste eventual recrudescimento militar, que não é certo e sobre o qual não existe informação fidedigna, surge uma corrente de opinião devidamente publicitada que invoca a necessidade de uma solução, embora não se perceba qual seja, ou se apresenta cansada de um confronto.

A verdade é que a Constituição de Angola (CRA) no seu artigo 5.º, n.º 6 é determinante ao prescrever que: “O território angolano é indivisível, inviolável e inalienável, sendo energicamente combatida qualquer acção de desmembramento ou de separação de suas parcelas, não podendo ser alienada parte alguma do território nacional ou dos direitos de soberania que sobre ele o Estado exerce.” Note-se que esta formulação implica que qualquer território permaneça sempre como parte integrante do Estado, mas não proíbe diferentes estatutos e aproximações, como o estabelecimento de autonomias sempre integradas no todo nacional e de autarquias locais, mais ou menos descentralizadas.

Há, portanto, um dever constitucional de combater qualquer tentativa de secessão territorial, admitindo a CRA o uso da força para que tal aconteça (“energicamente combatida”). Neste âmbito as FAA desempenharão um papel crucial em evitar qualquer desmembramento. Além do direito constitucional, também é fácil de perceber que qualquer separação ou “desligamento” de Cabinda face a Angola teria um efeito desagregador do país, que como se sabe, historicamente, é uma construção recente e em progresso.

Isso leva à segunda ameaça do mesmo tipo separatista existente nas Lundas. Em janeiro de 2021, houve um confronto sangrento, cujos contornos foram devidamente descritos no texto de Rafael Marques, “”Miséria & Magia.”[5]Além de aspetos socioeconómicos, o evento tem sido visto como ligado às tentativas independentistas de um autodesignado Movimento do Protetorado Português Lunda Tchokwe (MPPLT).

É evidente que, em primeiro lugar é dever do Estado e do governo tratar os agravos das populações locais atendendo às suas reivindicações de cariz desenvolvimentista, económico e social. Trata-se primordialmente duma questão política e de progresso. Contudo, não vale a pena ignorar que no final haverá sempre que garantir a integridade e soberania nacionais e as FAA poderão ter um papel determinante para assegurar a coesão do território.

É por isso que se considera que uma ameaça real à soberania de Angola são as pulsões ou intenções separatistas de parte do seu território, cabendo às FAA como esteio do Estado garantir a integridade e unidade do Estado.

Captura do Estado e corrupção

A segunda ameaça existente a nível interno liga-se com a referida captura do Estado e combate à corrupção. A opção do poder político foi entregar o combate à corrupção aos meios judiciais comuns, portanto, tal não é uma função das FAA, mas das forças policiais, de investigação criminal e magistraturas. As FAA apenas entram naquilo que se refere à “captura do Estado”. Se porventura forças ou entidades que beneficiarem da corrupção tentem afetar o normal funcionamento do Estado de Direito e da Justiça, fragilizando o poder político, pode-se entender que as FAA terão o dever de defender a constitucionalidade e a legalidade, não intervindo nos processos judiciais concretos, mas garantindo as condições de tranquilidade e paz para que os órgãos judiciários normais façam o seu trabalho. Esta é uma linha difícil de traçar para a atuação dos militares, pelo que a postura aqui deve ser entendida como de vigilância e simbólica de suporte à atividade das forças policiais e não de intervenção direta.

Se o separatismo e a “captura de Estado” são as ameaças à soberania e paz em Angola, do ponto de vista externo existem mais e variadas ameaças que têm que ser elencadas e aumentaram nos últimos anos, obrigando a uma especial atenção das FAA. Destacam-se como ameaças externas:

  1. a instabilidade em países vizinhos, designadamente a RDC;
  2. o alastramento do terrorismo designado como islâmico;
  3. crime e pirataria marítima;
  4. o aumento da concorrência entre as potências mundiais com interesses em bens africanos.

Algumas palavras rápidas sobre cada um destes segmentos:

  1. a instabilidade em países vizinhos, designadamente a RDC

Embora pela primeira vez tenha ocorrido em 2018/2019 uma transição pacífica de poder no Congo (RDC), a verdade é que a situação nesse enorme país está longe de estar controlada. A porosidade com a fronteira de Angola é um facto, habitualmente, referido, mas o problema essencial é que Tshisekedi, o Presidente da República e o aparato estatal parecem não controlar vastas zonas do país que, segundo alguns, estão submetidas a milícias fomentadas pelo Ruanda para buscar riquezas para processamento nesse país. Recente artigo do docente angolano e membro do partido do governo angolano, Benjamim Dunda, refere que “O que alguns não sabem é que Ruanda é a porta de entrada e saída da pilhagem dos excessivos recursos minerais da RDC. Boa parte da interminável instabilidade da vizinha nação de Mobutu, tem as impressões digitais de Kagame. O Exército Patriótico Ruandês (EPR) e militares do Uganda ocupam militarmente parte do território da RDC. O Coltan (columbita e tantalita) é actualmente o minério mais cobiçado mundialmente pelas indústrias de tecnologia. 80% das reservas mundiais encontram-se na República Democrática do Congo.”[6] Sem o tom exaltado de Dunda, Laura McCreedy, do Centro de Operações de Paz do International Peace Institute afina pelo mesmo diapasão, referindo já este mês existiram relatos da retomada da violência por procuração (proxy violence) – atribuída ao Uganda, Ruanda e Burundi – bem como as recentes operações ofensivas contra as Forças Democráticas Aliadas (ADF) pelas forças de Uganda e a suposta presença da polícia ruandesa e tropas burundesas no leste da RDC, o que é particularmente alarmante[7].

O que aparenta é que existe um conflito latente na RDC que está longe de ser resolvido, a que acresce uma espécie de invasão assimétrica, utilizando as técnicas popularizadas por Vladimir Putin na Crimeia e Ucrânia, por forças do Ruanda e talvez do Uganda dentro da RDC. Isto pode provocar a breve trecho uma guerra mais intensa e não tão dissimulada no país com efeitos óbvios em Angola. Não esquecer que Angola esteve presente nas denominadas Primeira Guerra Civil do Congo (1996-1997) e Segunda Guerra Civil do Congo (1998-2003), além de ter intervindo direta ou indiretamente nos momentos relevantes subsequentes da história da RDC. Consequentemente, não será indiferente ao evoluir da situação na RDC e a esta espécie de invasão discreta ou disfarçada que ocorre, tendo as FAA, pelo menos um papel dissuasor.

2. o alastramento do terrorismo designado como islâmico

A realidade religiosa angolana não faria antever um perigo iminente proveniente do terrorismo islâmico. No entanto, existem dois fatores que devem ser tidos em conta para aumentar o grau de perigo do terrorismo islâmico em Angola.

O primeiro fator é que aquilo que muitas vezes se chama “terrorismo islâmico” não tem uma real conotação religiosa, mas representa uma espécie de franquia ou marca adotada por movimentos ou guerrilhas insurrecionais em zonas degradadas económico-socialmente. Quer isto dizer que é possível que em áreas descontentes em Angola surjam movimentos terroristas “islâmicos”, que de maometano nada tenham a não ser a designação, adotada para infundir o medo e terror nas populações e autoridades. Aliás, parece claro que os vários movimentos terroristas islâmicos que surgem em África não resultam de um comando ou planificação central, antes sendo células mais ou menos autónomas que se imitam e mutuamente inspiram, buscando elementos comuns na propaganda e metodologias. Como dizem os especialistas da Chatham House, Alex Vines e Jon Wallace, “[Em África, a] linha entre o jihadismo, o crime organizado e a política local é muitas vezes turva e ainda mais complicada por fatores globais, como mudanças climáticas, crescimento populacional e migração.[8]”Quer isto dizer que o “caldo” referido pode surgir em Angola, e de repente, a bandeira islâmica ser atrativa para grupos insurrecionais descontentes com o governo.

A este primeiro fator, junta-se o alastramento que vai percorrendo o continente africano relativamente ao terrorismo islâmico e que vai cercando paulatinamente Angola. Na vizinha RDC, embora ainda longe das fronteiras angolanas, já se fala de terrorismo islâmico a propósito da ADF (Allied Democratic Forces), fazendo-se ligações desta organização ao Estado Islâmico. Na Tanzânia referem-se pequenos ataques como os de outubro de 2020, na aldeia de Kitaya na região de Mtwara; ataque que foi reivindicado por extremistas islâmicos que operam a partir do norte de Moçambique. Obviamente, que o caso de Cabo Delgado em Moçambique é paradigmático da combinação que se pode antever para Angola, um descontentamento socioeconómico aliado ao surgimento do terrorismo islâmico. Mais a norte, seja na República Centro Africana, seja no Chade, seja na Nigéria, há uma permanente ameaça de grupos terroristas que se identificam como islâmicos.

A porosidade das fronteiras, aliada às dificuldades socioeconómicas tornam-se magnetos poderosos para a expansão do terrorismo que se pode tornar uma ameaça interna em Angola, e já é certamente uma ameaça fronteiriça e em propagação pelo continente africano.

3. crime e pirataria marítima

De Cabo Verde à costa angolana, os ataques a navios aumentaram nos últimos anos. Nesta vasta região marítima, os piratas – inicialmente concentrados em torno do Delta do Níger – estenderam as suas atividades a todas as costas nigerianas, bem como ao Benin e ao Togo. Desde 2011, não menos de 22 atos de pirataria foram registados no Benin, afetando o tráfego no porto de Cotonou, que caiu 60%. O grande impacto económico do crime marítimo – que inclui pesca ilegal, tráfico de drogas e armas – nas costas da África Ocidental aumenta todos os anos. O Golfo da Guiné é agora considerado a zona vermelha marítima do continente.[9]

A posição de Angola tem sido clara, assumindo-se como motor estratégico do combate à pirataria, apontando para a criação de uma estratégia de financiamento governamental no Golfo da Guiné e na região dos Grandes Lagos, reconhecendo que a criminalidade tem vindo a crescer nesta área, pondo em perigo a própria região do ponto de vista nacional, internacional e regional. É nesta perspetiva que Angola atribui grande importância aos espaços marítimos que têm que ser controlados. De facto, dos 90 por cento dos crimes cometidos no oceano Atlântico, 70 por cento ocorrem no Golfo da Guiné o que é preocupante.

4. o aumento da concorrência entre as potências mundiais com interesses em bens africanos

Esta situação é mais geral e talvez menos iminente em causar disrupção que as anteriores, contudo, existe e a médio-prazo pode ser a principal ameaça para Angola. Alguns autores falam de uma nova “corrida para África”, como aquelas que ocorreram no final do século XIX a propósito da Conferência de Berlim e após as independências no âmbito da Guerra Fria. Angola foi obviamente parte central de ambas as “corridas”. A primeira serviu para lhe delimitar as fronteiras e completar a intervenção colonial portuguesa, enquanto na segunda foi um dos principais palcos de batalha do confronto EUA-União Soviética. A prestigiada revista inglesa The Economist resumia em 2019 a nova, e terceira, corrida para África, escrevendo que há uma terceira onda em andamento. O continente é importante e está a tornar-se cada vez mais importante, principalmente por causa de sua crescente participação na população global (até 2025 a ONU prevê que haverá mais africanos do que chineses). Governos e empresas de todo o mundo estão a correr para fortalecer os laços diplomáticos, estratégicos e comerciais.[10] Na verdade, quem primeiro discerniu as oportunidades do continente foram os chineses que desde o início do século XXI apostam fortemente em África, sendo Angola o seu principal parceiro, pelo menos em termos de dívida. O restante mundo só agora re-acordou para África. Mas de facto, verificamos a Turquia em busca de novos mercados e aliados desde que abandonou o alinhamento com a União Europeia, os países do Golfo Pérsico na mesma linha procurando projetos de diversificação para as suas economias, e a União Europeia, liderada por Alemanha e França, com a Itália e Espanha também com intensidade retomando velhos e arranjando novos contactos, quer por motivos económicos, quer para tentar estancar a imigração clandestina que afeta os seus países e pode fazer perder eleições aos seus governos. Igualmente a Rússia, no misto de retomada imperial e procura de negócios volta a África. Apenas os Estados Unidos da América prosseguem desde Donald Trump uma política adormecida em relação ao continente, não entendendo ainda muito bem o que estão a fazer de substancial, além de alguns ruídos contra a China e/ou a propósito do terrorismo islâmico. No entanto, esta letargia pode terminar.

Neste momento, é a China que vai muito à frente na nova corrida para África. A partir do momento em que europeus e norte-americanos entendam definitivamente- estamos ainda numa fase ambivalente-que a presença chinesa em África é uma ameaça aos seus interesses geopolíticos e económicos, acentuar-se-á a competição. Recorde-se que a China atualmente absorve de África cerca de 60% das exportações de cobalto; 40% de ferro; e 25-30% de suas exportações de cromo, cobre e manganês.

Consequentemente, o papel de Angola como detentor de matérias-primas fundamentais e força estabilizadora da RDC, outro repositório imenso de recursos, será determinante.

O momento atual das FAAs

Face ao exposto, facilmente se compreende que este tempo é de grande exigência para as FAAs que podem ser novamente chamadas a desempenhar funções de sobrevivência nacional.

Neste momento, de acordo com as fontes mais credíveis, as FAAs são compostas por aproximadamente 107.000 soldados ativos (100.000 Exército; 1.000 Marinha; 6.000 Força Aérea); estima-se ainda 10.000 na Polícia de Reação Rápida (2021).[11]

A despesa militar é de cerca de 1,7% do PIB, portanto, abaixo dos 2% que os Estados Unidos pretendem como parâmetro para os países da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte de que obviamente Angola não faz parte, mas cujo parâmetro pode servir de valor ideal de dispêndio militar). Não é uma despesa exagerada, ao contrário, do que se poderia pensar.

A maioria das armas e equipamentos militares angolanos são de origem russa, soviética ou do Pacto de Varsóvia; desde 2010, a Rússia continua a ser o principal fornecedor de equipamento militar para Angola.[12]

Em relação à sua capacidade militar em 2022, Angola está classificada em 66º lugar entre 140 países considerados pela Global Fire Power. [13] As suas forças contam com 320 tanques, 1210 veículos blindados, e várias peças de artilharia. Note-se, contudo, que os tanques são essencialmente antigos, adquiridos na década de 1990 com origem na União Soviética. Da pesquisa que realizámos, apenas conseguimos encontrar um veículo tipo tanque-destroyer razoavelmente moderno (de 2016), o PTL-02 Assaulter comprado à China. Quanto às forças navais, embora possuindo uma costa alargada e responsabilidades no Golfo da Guiné, o país apenas dispõe de 37 barcos de patrulha e nenhum navio de porte médio ou maior como corvetas, fragatas ou cruzador.

Quanto à Força Aérea são contabilizados 299 aviões, dos quais 71 caças, 117 helicópteros e 15 helicópteros de ataque.

Uma recente análise do África Monitor, que, há que anotar, tem refletido uma postura crítica do governo de João Lourenço, apresenta uma suposta factualidade, que mesmo que esteja exagerada ou represente um prisma demasiado pessimista, traça um quadro pouco animador acerca da prontidão e material da Força Aérea e Marinha Angolanas. Segundo, esta publicação, a frota da marinha de guerra tem os seus níveis de operacionalidade cronicamente “prejudicados por incumprimento de exigências de manutenção e/ou impreparação das suas tripulações.”[14] Também na Força Aérea a paralisia será a palavra-chave. De acordo com o mesmo periódico, estarão paralisadas “as unidades da frota de helicópteros de transporte que ainda operavam (Mil Mi-8, de fabrico russo), quer aparelhos da década de 1980-1990, quer unidades recondicionadas posteriormente”, existe uma “incapacidade para assegurar a manutenção de helicópteros de combate (Mil Mi-24)” e  também em “situação de quase paralisia estão(…), há mais tempo, as frotas de caças MiG-21 e MiG-23, de fabrico soviético, e Sukhoi (Su-22, Su-25, Su-30, Su-27).[15]

Especialistas com quem contactámos diretamente e que preferem manter anonimato asseguram que nos últimos anos não existiu qualquer compra significativa de material militar. Assim, aparentemente, pode existir uma necessidade de reforço com estes ramos das forças armadas.

Em resumo, vislumbram-se necessidades nas Forças Armadas de três tipos: material obsoleto e não modernizado, falta de manutenção do equipamento e impreparação de alguns quadros para atividades específicas. Tal torna, obviamente, importante a intervenção nas FAAs no sentido de aumentar o seu orçamento e elevar a sua capacidade operacional face aos desafios descritos.

Vetores de modernização das FAAs

De tudo o exposto resulta dois pressupostos de base que nos levam a uma conclusão simples. Os pressupostos são que as ameaças à soberania e integridade de Angola aumentaram nos últimos anos depois de um período de alguma acalmia após 2002. Hoje o país defronta-se com uma nova “corrida para África” das grandes potências e das emergentes, a ameaça do terrorismo designado como islâmico espalha-se pelo continente e a pirataria e criminalidade no golfo da Guiné ao longo da costa são uma realidade. A isto acresce o renovar das tendências separatistas internas e a forte reação da oligarquia anteriormente dominante ao combate contra a corrupção. A estes factos correspondem, neste momento, umas FAAs com algumas lacunas ao nível de material, prontidão e treino, o que pode, eventualmente, inviabilizar uma reação adequada em caso de incremento de alguma das ameaças expostas.

Resulta da equação destes pressupostos que uma política de modernização das FAA em termos de equipamento, treino e prontidão/ manutenção é fundamental. Ao contrário, do que muitos alegariam é necessário um reforço do orçamento militar e uma reforma modernizadora das Forças Armadas.

O Orçamento Geral do Estado para 2022 ainda não reflete totalmente essas necessidades. Se reparamos, de 2021 para 2022 há um incremento nominal dos gastos de defesa de 19,7%. Basta pensar que a inflação oficial se situa na ordem dos 27% em 2021[16]para se perceber que em termos reais o dispêndio com a defesa diminui, levando provavelmente a cortes na esfera militar. Por sua vez, os gastos com a defesa equivalem a 1,4%PIB.[17]

Entendemos que a modernização das FAA tem um vetor qualitativo que deve ser definido pelos especialistas na área e envolver a prontidão das Forças Armadas, a sua capacidade de implantação e níveis de sustentabilidade, bem como a qualidade da força que pode exercer. Contudo, o vetor que nos debruçamos neste relatório é o quantitativo e apresentamos a sugestão muito simples já adotada pelos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), que é a de situar a despesas com a defesa na ordem dos 2% do PIB.[18] Este não é um número mágico e pode ser objeto de muitas críticas, mas representa um parâmetro objetivo e quantificável, e na verdade confere ao poder político um instrumento mensurável para atingir[19], o que pode ser um avanço nas políticas de boa governação e transparência que se pretendem implementar em Angola.


[1] Cfr. Pedro Pezarat Correia (1991), Descolonização de Angola: jóia da coroa do império português, Lisboa: Inquérito; Silva Cardoso (2000) Angola, anatomia de uma tragédia, Lisboa: Oficina do Livro; «Involvement in the Angolan Civil War, Zaire: A Country Study». United States Library of Congress;

 Donald S. Rothchild (1997). Managing Ethnic Conflict in Africa: Pressures and Incentives for Cooperation. Brookings Institution Press. pp. 115–116; Ndirangu Mwaura, (2005). Kenya Today: Breaking the Yoke of Colonialism in Africa. pp. 222–223; Chester A Crocke, Fen Hampson, Pamela Aall, Pamela (2005). Grasping The Nettle: Analyzing Cases Of Intractable Conflict.

[2] Para uma boa definição destes temas na África do Sul, mas com aplicação conceitual a Angola ver Judicial

Commission of Inquiry into State Capture Report: Part 1  [Zondo Report] (2022).

[3] Simão Lelo, (2022), Ataques em Cabinda: Aumentam apelos para uma solução, Deutsche Welle, https://www.dw.com/pt-002/ataques-em-cabinda-aumentam-apelos-para-uma-solu%C3%A7%C3%A3o/a-60489955

[4] Cópia de documentos na posse do CEDESA e referidos na imprensa, por exemplo, em https://e-global.pt/noticias/lusofonia/angola/chefe-do-estado-maior-congoles-protesta-contra-violacoes-do-territorio-por-angola/

[5] Morais, Rafael, (2021), Miséria & Magia, MakaAngola & UFOLO.

[6] Benjamin Dunda (2022), O que não dizem do Ruanda e de Kagame, https://camundanews.com/noticia/9593/dupla-nacionalidade-da-presidente-do-tribunal-constitucional-nao-viola-constituicao.html

[7] Laura McCreedy (2022), What Can MONUSCO Do to Better Address the Political Economy of Conflict in DRC? https://reliefweb.int/report/democratic-republic-congo/what-can-monusco-do-better-address-political-economy-conflict-drc

[8] Alex Vines e Jon Wallace, (2021), Terrorism in Africa, Chatham House, https://www.chathamhouse.org/2021/09/terrorism-africa

[9] Baudelaire Mieu (2021), Cameroon, Nigeria, Angola: Increased pirate activity along western coasts, The Africa Report, https://www.theafricareport.com/70478/cameroon-nigeria-angola-increased-pirate-activity-along-western-coasts/

[10] The Economist (2019), The new scramble for Africa, https://www.economist.com/leaders/2019/03/07/the-new-scramble-for-africa

[11] Angola. The World Factbook (2022) CIA, https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/angola/#military-and-security

[12] Idem nota supra

[13] Cfr. https://www.globalfirepower.com/country-military-strength-detail.php?country_id=angola 

[14] África Monitor, Nº 1334 |20.JAN.2022 |Ano XIX.

[15] Idem nota supra.

[16] https://www.bna.ao/#/, taxa de inflação apresentada a 28-01-2022  é de 27,03%.

[17] Ministério das Finanças, (2021), RELATÓRIO DE FUNDAMENTAÇÃO

Orçamento Geral do Estado 2022, p.68.

[18] North Atlantic Treaty Organization, (2014) “Wales Summit Declaration,” press release,

September 5, www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_112964.htm

[19] Sobre as críticas e vantagens ver Jan Techau (2015), THE POLITICS OF 2 PERCENT. NATO and the Security Vacuum in Europe. Carnegie Foundation.

Os bloqueios e a reforma da justiça angolana

1-Introdução. O foco na justiça

A visão inicial do papel da justiça em Angola ficou estabelecida na lei constitucional inicial a seguir à independência em 1975, a Lei Constitucional de 11 de novembro de 1975. Esta lei fundamental considerou os tribunais como órgãos de Estado, cabendo-lhes em exclusivo o exercício da função jurisdicional com vista à realização duma justiça democrática (artigo 44.º), sendo assegurado que no exercício das suas funções os juízes são independentes (Artigo 45.º).

Curiosamente, o princípio básico referente ao poder judicial não é muito diferente do atualmente consagrado na Constituição da República de Angola de 2010 (CRA), apesar das mudanças de sistema político entretanto ocorridas. Os tribunais continuam a ser órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artigo 105.º e 174.º) e “no exercício da função jurisdicional, os tribunais são independentes e imparciais, estando apenas sujeitos à Constituição e à lei.” (artigo 175.º). Há uma continuidade estrutural na conceptualização essencial do poder judicial desde a independência, embora as suas formas e práticas tenham variado ao longo do tempo[1].

Em termos de relevância, talvez o denominado “combate à corrupção” anunciado em 2017 pelo Presidente João Lourenço tenha trazido um foco para a justiça que nunca tinha existido anteriormente, e por isso, hoje seja fundamental discutir a reforma da justiça.

Pelo que se vê pela referência sumária que se fez aos textos constitucionais, não houve ao longo do tempo especial preocupação doutrinal ou mesmo prática com os juízes e a aplicação da justiça. Aliás, em 1977, ficou famoso ao dito atribuído ao então Presidente da República Agostinho Neto, a propósito dos eventos do 27 maio, em que foi fuzilada uma multidão de pessoas: “Não vamos perder tempo com julgamentos[2]”. A justiça ocupou sempre um papel secundário nas preocupações principais dos governos angolanos e provavelmente da opinião pública.

Só após o início de processos sobre os “famosos” (Filomeno dos Santos, Augusto Tomás, Manuel Rabelais, e no cível Isabel dos Santos) e algumas acusações e julgamentos é que a justiça se tornou o palco da luta política e centrou atenções. É um facto muito interessante que João Lourenço tenha escolhido entregar o combate contra a corrupção à justiça ordinária e com isto desafiando-a a ser eficaz. Mais tarde, a luta política ainda entrou mais nos tribunais, com o famoso acórdão do Tribunal Constitucional sobre a UNITA que declarou nula a eleição de Adalberto da Costa Júnior[3].

Estes dois factos convergentes, a entrega do combate à corrupção aos tribunais ordinários e a destituição de Adalberto da Costa Júnior pelo tribunal constitucional originaram dois fenómenos inovadores no mundo judicial angolano.

Em primeiro lugar, ligou-se uma espécie de luz muito forte que passou a iluminar as atividades do poder judicial. O que antes se passava na obscuridade e ininteligibilidade do linguajar jurídico passou a estar visível para o grande público, e muitos defeitos do sistema surgiram a olho nu: a lentidão, a falta de especialização técnica ou a ausência de meios materiais.

Em segundo lugar, os tribunais tornaram-se o objeto do forte ataque de todos os que não concordavam com as decisões ou não teriam medo de ser abrangidos por elas. Assim, uma boa parte da elite angolana, que tem receio de ir parar a um tribunal, começou a criticar ferozmente os tribunais, as suas decisões, o seu funcionamento, a sua independência. O objetivo destas atitudes é muito simples: deslegitimar as decisões judiciais., desvalorizando o seu peso. A isto juntam-se as declarações bombásticas de muitos dos advogados de defesa, que não hesitam na crítica cerrada às decisões que não beneficiam os seus constituintes. Ao mesmo tempo, este desagrado e “campanha” anti- tribunais foi acelerada pelo descontentamento com a decisão do tribunal constitucional referente à UNITA.

Consequentemente, os tribunais tornaram-se um campo de luta política e legal. É falso e errado afirmar aquele velho jargão que “a justiça e a política não se misturam”. Na realidade, em Angola estão bem misturadas, como em Portugal ou nos Estados Unidos[4].

Todos estes factos levam ao questionamento do papel da justiça em Angola, sublinhando-se, sobretudo, a sua lentidão e eventual politização. Na verdade, esta discussão acaba por ser benéfica porque do questionamento, surge a discussão e a necessidade de reforma.

O que há que garantir é que esta justiça em que a política entrou, se mantém imparcial e independente, tomando as suas decisões sem influências, de forma transparente e tecnicamente fundamentada no direito. É com esse desiderato que a justiça angolana poderia ser reformada.

2-Os bloqueios: o paradigma legal, os meios materiais e orçamento, a corrupção, a questão política.

Com o intuito de se propor uma reforma adequada da justiça angolana, haverá que prioritariamente identificar os bloqueios e impedimentos ao bom funcionamento desta, pois será nestes “nós górdios” e não em declarações gerais e abstratas que se deverá centrar o processo reformista.

             Identificámos cinco bloqueios que impedem o bom funcionamento da justiça em Angola:

             1-O paradigma legal inadequado;

             2-A falta de meios materiais e gestão eficiente do orçamento;

             3- A corrupção;

             4- A questão política.

              Vamos analisar, ainda que sumariamente, cada um destes bloqueios.

2.1-O paradigma legal inadequado

O primeiro bloqueio do sistema judicial angolano é aquele que não se vê, pois envolve todo o sistema e por isso deixa de haver a perceção da sua existência. Trata-se do paradigma legal em que o direito angolano se move. É fácil entender que apesar de alguma proximidade com as fórmulas marxistas entre 1975 e 1992, o direito angolano se manteve essencialmente idêntico ao direito português, quer nos grandes corpos legislativos, quer na doutrina, quer na formação.

Em termos de legislação é um facto que durante décadas após a independência, as leis portuguesas continuaram a ser as leis angolanas. O Código Civil e o Código de Processo Civil ainda são os recebidos do Portugal na década de 1960, enquanto o Código Penal da Monarquia e o Código do Processo Penal do início do Estado Novo apenas foram substituídos em 2021, e por textos muito semelhantes, quando não cópias, dos textos entretanto aprovados em Portugal após o 25 de abril de 1974.

Se ao nível legislativo impera a influência portuguesa, ao nível doutrinal também. Os professores portugueses são os mais citados na jurisprudência angolana. Basta exemplificar com o acórdão do Tribunal Constitucional referente à UNITA (Acórdão n.º 700/2021), cuja doutrina citada é principalmente portuguesa. São referidos Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, Carvalho Fernandes, Abílio Neto, Alberto dos Reis, Ana Prata, todos portugueses, para consubstanciar a deliberação dos juízes. Apenas um angolano, Raul Araújo, é mencionado. Naturalmente, que este pequeno detalhe doutrinal revela o quanto o direito angolano ainda é subsidiário de Portugal.

O mesmo acontece em termos de formação. Uma boa parte dos Manuais utilizados no ensino ainda é de autores portugueses ou escrito em colaboração entre angolanos e portugueses o que já é uma evolução. No direito constitucional pontifica o manual do professor Bacelar Gouveia, português, ou dos professores Jónatas Machado, Nogueira da Costa e Esteves Hilário, aqui uma colaboração mista Portugal-Angola, como acontece com o manual fundamental de direito administrativo de Carlos Feijó e Diogo Freitas do Amaral. Ao mesmo tempo, ainda é tido como a graduação mais prestigiante obter um mestrado ou doutoramento em direito nas universidades de Lisboa ou Coimbra.

Não haveria aqui problema especial se o direito português correspondesse às exigências da modernidade e a sua prática se traduzisse em simultâneo em algo de justo e eficaz. O problema é que o direito português, e por absorção o direito angolano, vivem num paradigma burocrático e pouco prático. As normas e formas de agir do direito português estão desatualizadas, a interpretação da lei tornou-se exageradamente subjetiva, nunca se sabendo exatamente ao que se vem, as normas processuais implicam longos julgamentos, e a tendência, na área criminal tem sido de diminuição dos direitos dos arguidos, chegando-se a uma situação em que nem os processos terminam em tempo útil para a justiça, nem já os arguidos têm defesas e garantias adequadas. No direito criminal português caiu-se no pior dos mundos, processos lentos, inquisitórios e arguidos sem direitos, dependendo do bom-senso dos magistrados e pouco mais. É um direito injusto. Por sua vez, o direito processual foi transformado, sobretudo pelo famoso professor coimbrão Alberto dos Reis numa ciência demasiado elaborada a que poucos iniciados têm acesso, atravancando os processos, e em que os objetivos de velocidade e justiça deixaram de existir.

O sistema jurídico português, em cujo paradigma Angola se move, é lento, confuso e pouco adequado aos tempos atuais, geralmente não sendo justo, nem célere, deixando em demasia tudo nas mãos dos juízes. Ora, esse é o problema essencial com que se debate o sistema judicial angolano e o primeiro bloqueio a superar.

2.2-A falta de meios materiais e gestão eficiente do orçamento

Tem sido persistente a contenção de que a justiça angolana está depauperada e não tem meios. No, agora longínquo ano de 2017, a 26 de maio, entrara no Tribunal Provincial da Comarca de Luanda um requerimento da Associação dos Juízes de Angola, com vista ao procedimento de uma “notificação judicial avulsa” à República de Angola nas pessoas dos seus ministros da Justiça e das Finanças. Essa notificação lembrava que variados subsídios legalmente previstos e outros instrumentos necessários para realizar o trabalho dos magistrados não eram postos à disposição pelo poder político. Segundo a descrição dos juízes, não viria longe o dia em que estariam a viver em casas sem luz e sem água, e em que não poderiam dirigir-se para o tribunal, por não terem carro nem qualquer outro meio de deslocação[5]. Afirmavam os magistrados judiciais que, desde 2013, se veem na obrigação de custear as despesas com o material de trabalho. Concretamente: papel, tinteiros, fotocópias das folhas processadas (com timbre dos vários modelos usados nos tribunais), deslocações dos oficiais de justiça para efeitos de citações e notificações, compra de telefones celulares e um plano mensal de recarga para auxiliar nas citações/notificações dos advogados e utentes, combustível para os geradores (nas salas em que estes existem). Ainda na época, referiam que a sala do Julgado de Menores, sita no Zango 3, em Viana, estava sem energia elétrica regular no período diurno, em horário de expediente. Tal impossibilitava que os magistrados pudessem desempenhar cabalmente as suas funções, obrigando-os a redigir à mão as audiências, designadamente interrogatórios, julgamentos, instrução processual, inquéritos sociais… O gerador encontrava-se avariado. Acresce que, devido à distância, os funcionários que lá trabalhavam faziam-se transportar numa das viaturas da instituição, cujo combustível e manutenção era suportado a suas expensas.

A situação não melhorou significativamente desde aí, apesar do novo foco na justiça. Em julho de 2021 houve protestos públicos de juízes e magistrados do ministério público; queixavam-se da “falta de condições técnicas e até de baixos salários (…) O presidente do Sindicato Nacional dos Magistrados do Ministério Público (SNMMP), José Buengas, afirmou mesmo que a maior parte dos tribunais e das procuradorias” de Angola funcionam com dinheiro dos próprios magistrados que “tiram do seu bolso para comprar papel e tinteiro. O dia em que deixar de fazer isso e ficar à espera de que uma resma de papel para o mês todo chegue para imprimir todos os documentos, os constituintes, os advogados e a população vão ficar à espera, com todas as consequências que disso pode advir`”[6]

O Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2022 prevê uma dotação de 1,21 % das receitas para os órgãos judiciais, equivalendo a 113.777.899.457,00 Kwanzas. Tal representa uma subida em mais de 100% em relação ao ano de 2020 em que apenas 0,37% das receitas eram imputadas aos órgãos judiciais, representando 49.414.027.773,00 Kwanzas. Considerando que a inflação acumulada neste período terá andado entre os 45% a 48%, a verdade é que temos um aumento real dos gastos com a justiça superior a 50%.

Comparando, por sua vez o ano em curso (2021) e o previsto para 2022 temos um gasto monetário previsto de 133,8 mil milhões de kwanzas, contra 55,9 mil milhões de kwanzas em 2021. Tal corresponde a um aumento nominal de 103,5%. E corresponde respetivamente a 1,2%, 0,6% e 0,2% da despesa fiscal, despesa fiscal e percentagem do PIB[7].

Portanto, temos aqui um certo paradoxo que se transforma num obstáculo ao eficiente funcionamento da justiça. Por um lado, há uma persistente e constante queixa dos magistrados, que pode ser comprovada em muitos tribunais visualmente, acerca da falta de meios materiais, por outro, há um efetivo esforço do Estado em aumentar os meios disponíveis para o setor da justiça, tendo procedido a uma orçamentação que prevê a duplicação dos gastos com a justiça em dois anos (2020-2022), que aliás acelera na transição de 2021 para 2022.  

2.3- A corrupção

A corrupção na magistratura angolana é um fenómeno pouco estudado, mas muito falado. Um curto inquérito fechado levado a cabo por este centro em relação à corrupção na magistratura angolana entre operadores judiciais permitiu chegar à conclusão que a maioria acredita que os juízes se deixam influenciar por razões monetárias ou políticas (este último veremos abaixo), e nesse sentido muitas das decisões são tomadas com base nessas influências, não tendo em conta o direito aplicável. Existiram mesmo referências por parte de magistrados de tentativas variadas de ofertas de presentes ou quantias monetárias.

Este inquérito não tem uma amostra suficientemente alargada para permitir retirar conclusões científicas, apenas nos dá uma impressão das opiniões existentes entre advogados, magistrados e funcionários judiciais.

A outro nível, o portal do jornalista investigativo Rafael Marques, MakaAngola, tem contado várias histórias de decisões judiciais inexplicáveis, que possivelmente, só poderiam ter sido tomadas devido a estímulos externos[8].

O certo é que esta é uma situação de que muito se fala, mas sobre a qual existe pouca informação, mas tem criado uma imagem de insegurança jurídica junto dos operadores judiciários e investidores e por isso é fundamental ser ultrapassada.

2.4- A questão política

Na ordem do dia está a questão da politização dos tribunais angolanos. Não existe dia que não surja uma opinião publicada, geralmente, ligada à oposição, indicando a falta de credibilidade, sobretudo, dos tribunais superiores, e nestes do tribunal constitucional, devido à sua politização[9].

          A argumentação centra-se em dois eixos fundamentais.

O primeiro eixo liga-se à filiação partidária dos juízes. O caso da presente Presidente do Tribunal Constitucional, Laurinda Cardoso, tem sido invocado à sociedade, pois até ao momento da sua nomeação estava filiada no MPLA e além de ser membro do governo de João Lourenço, estava também nos órgãos superiores do partido. O facto de ter suspenso a filiação não a tem absolvido das críticas de comprometimento político, especialmente tendo em conta que um dos seus primeiros atos foi subscrever o já mencionado acórdão n.º 700 que destituiu Adalberto da Costa Júnior da liderança da UNITA.

O segundo eixo é de cariz mais institucional, e assenta na argumentação que direta ou indiretamente a larga maioria dos juízes acaba por depender da nomeação do Presidente da República ou do partido maioritário na Assembleia Nacional, o MPLA. De facto, ao nível do Tribunal Constitucional, a CRA determina que quatro juízes em onze são designados pelo Presidente da República e outros quatro por uma maioria de 2/3 na Assembleia Nacional, que o MPLA tem detido desde sempre. Nessa medida, pelo menos 8 dos 11 juízes estariam alinhados com o poder político. Já quanto ao Tribunal Supremo, o Presidente e Vice-Presidente são nomeados pelo Presidente da República de entre 3 candidatos selecionados por 2/3 dos Juízes Conselheiros em efetividade de funções.

Atendendo a estes vários fatores tem crescido nalguma opinião pública o sentimento da dependência do poder judicial face ao poder político, servindo para variados ataques deslegitimadores das decisões judiciais.

3-Os eixos da reforma judicial: mudança paradigma legal, reforço dos meios materiais e nova gestão pública, combate à corrupção, transparência na politização: o modelo alemão.

Mudança de paradigma legal: a “desberlinização” do Direito

A primeira prioridade de uma reforma do sistema judicial é a mudança do paradigma legal, ou dito de outro modo, a modificação da mentalidade jurídica e dos padrões utilizados. Defendemos que a excessiva cópia dos modelos, normas, doutrinas e professores portugueses é perniciosa para Angola, pois não dota a cultura jurídica do país de instrumentos e formas de pensar adequados aos desafios concretos em que está envolvido.

Assim, há que buscar novas inspirações noutras paragens. Uma investigação alargada deveria ser realizada em relação a casos de estabilidade e/ou sucesso na própria África, como é o caso da Namíbia e sobretudo do Botsuana. Parece ter lógica jurídica verificar o tipo de princípios e normas, bem como de organização judicial adotado no Botsuana e adaptar aquilo que se entenda para Angola. Outra ordem jurídica que poderia ser explorada de forma mais profunda, designadamente no que diz respeito à organização judiciária e processual, bem como ao direito criminal é o Brasil, especialmente, na perspetiva do combate à corrupção e dos vários instrumentos normativos que tem “importado” do direito norte-americano.

Naquilo que diz respeito ao combate à corrupção, o sistema jurídico angolano tem de se “americanizar”, investindo no direito premial, na delação premiada, nos acordos de sentença, e nas polícias específicas.

A fim de acelerar a mudança de paradigma ao nível dos juízes, estes deveriam passar a contar com assessores especializados que estudem e preparem as decisões de acordo com o novo paradigma legal.

Uma sugestão seria instituir uma comissão de reforma do direito não apenas contendo as luminárias angolanas assessoradas por portugueses, como acontece agora, mas admitindo contributos multinacionais. Assim, a comissão de reforma do direito deveria conter especialistas angolanos e portugueses, mas também do Botsuana, Namíbia, Brasil e se possível dos Estados Unidos da América e Grã-Bretanha. O mais importante de tudo é haver uma renovação da pluralidade de contributos e de fontes meta-legais para o direito angolano.

Reforço dos meios materiais e novo modelo de gestão

Em relação ao reforço dos meios materiais e de um novo modelo de gestão haverá três itens a considerar[10].

O primeiro é natural e trata-se do reforço do Orçamento Geral do Estado para a justiça. De sublinhar que o governo parece ter sido sensível a este aspeto, porquanto, como acima se referiu, em 2022 temos um gasto monetário previsto de 133,8 mil milhões de kwanzas, contra 55,9 mil milhões de kwanzas em 2021. Há, portanto, mais do que uma duplicação nas verbas destinadas à justiça, o que é de aplaudir.

Uma segunda medida já foi tomada, e também é de aplaudir, exceto num detalhe. Em causa está o Decreto Presidencial n.º 69/21, de 16 de março, que aprova o regime de comparticipação atribuída aos órgãos de administração da justiça pelos ativos, financeiros e não financeiros, por si recuperados. A ideia subjacente é positiva. Trata-se de entregar aos órgãos de justiça alguns dos bens obtidos no combate à corrupção, criando um estímulo para atuação efetiva e eficiente na recuperação de ativos, além de dotar a justiça de meios que não teria doutra forma. Esta disposição está certa. Os órgãos de justiça devem beneficiar dos bens que apreendem, apenas deviam ter ficado de fora os magistrados judiciais que são quem decide as apreensões e perdas a favor do Estado, pois pode-se argumentar que a sua imparcialidade ficaria obstruída ao decidir que alguém perde determinado bem, sabendo que eventualmente determinado magistrado iria beneficiar direta ou indiretamente dele. Salvaguardado expressamente esse aspeto, esta ideia é de fomentar, e vem no seguimento do que temos defendido em anteriores relatórios no sentido de ser necessário colocar os fundos obtidos no combate contra a corrupção ao serviço direto do interesse público.

Em último lugar, além do reforço de verbas, seja através do Orçamento Geral do Estado, seja através dos bens recuperados nos processos da corrupção, deve ser encarado um novo modelo de gestão dos dinheiros da justiça que garanta a racionalidade e eficiência da alocação de recursos.

Não se defende a entrega da gestão aos juízes. Mas a criação de um instituto autónomo e com gestão transparente da administração da justiça, que geriria as receitas orçamentais, as receitas do combate contra a corrupção e poderia ter receitas próprias ligadas às atividades da justiça. Este instituto teria gestores profissionais e seria auditado por uma empresa internacional de auditoria. O seu funcionamento seria descentralizado com um gestor adstrito a cada tribunal de comarca e tribunal superior.

Haveria assim, a par do reforço de verbas, uma autonomização da gestão dos dinheiros da justiça que seriam administrados por um instituto com gestores profissionais constituído para o efeito e que funcionaria de forma descentralizada em cada tribunal.

Combate à corrupção no sistema judicial: uma polícia própria dependente da Assembleia Nacional

Este é um tema difícil. Como se viu acima é um tema de que muitos falam, mas não existem provas concretas. Além disso, é complicado ter um sistema de combate à corrupção dentro da magistratura que não afete de algum modo a independência dos juízes ou seja vista como uma intromissão no poder judicial. No entanto, acreditar na autorregulação em termos de combate à corrupção na magistratura judicial também não parece remediar o problema, pois haverá tendência a soluções corporativas de encapotamento.

Propendemos para uma solução radical, mas provisória. Essa solução seria a criação de uma Polícia Anticorrupção na Magistratura (PACOM) dependente da Assembleia Nacional; o poder legislativo é diretamente dependente da vontade soberana popular e por isso com legitimidade para sindicar os juízes. A PACOM seria criada por sete anos, com poderes de investigação dos magistrados judiciais limitados a situações de corrupção (teria um mandato muito restrito para evitar acusações de interferência) e seria controlada pela Assembleia Nacional e também pela sociedade civil. O controlo pela sociedade civil dar-se-ia através de um sistema estilo Grande Júri norte-americano. Qualquer investigação que a PACOM decidisse levar a cabo contra algum magistrado judicial só avançaria depois de validada por um grupo de 12 membros da sociedade civil que funcionariam como filtro e fiscalizador das intenções da Polícia anticorrupção em relação aos magistrados.

Portanto, a investigação da corrupção de determinado juiz, não seria apenas uma decisão policial, mas também da sociedade. Este sistema vigoraria provisoriamente por sete anos, após o que seriam implementados sistemas de autocontrolo dentro da própria magistratura, esperando que no final desse tempo uma nova pedagogia e prática tivessem sido adotadas.

Transparência na politização: o modelo alemão

A politização da justiça angolana, sobretudo dos tribunais superiores, é a acusação que mais frequentemente se faz ouvir atualmente. Contudo, esta questão não é típica de Angola, havendo vários países, especialmente, quando as decisões dos tribunais têm consequências políticas ou se assiste a uma certa judicialização da política em que a politização dos tribunais é tema recorrente. É o caso dos Estados Unidos, em que o Presidente Trump conduziu uma intensa campanha para criar uma maioria de direita no Supremo Tribunal e em que este tribunal está debaixo de intenso escrutínio para ver se entra numa deriva política ou não com a tal maioria de direita, notando-se um forte empenho do seu presidente, John Roberts, em procurar soluções equilibradas nas decisões e evitar essas acusações de politização[11]. A politização foi também um dos epítetos mais usados pelo antigo presidente Lula no Brasil para confrontar as decisões judiciais que lhe foram desfavoráveis a propósito da operação Lava-Jato.

Não sendo um monopólio angolano, a realidade é que a questão da influência política nas decisões judiciais tem sido trazida à colação amiúde. A solução geralmente apontada para solucionar essa suposta influência política tem sido a modificação dos modos de designação dos juízes dos tribunais superiores pelo poder político, seja o executivo, seja o legislativo. Afirma-se que o facto de ser o Presidente da República ou a maioria qualificada de dois terços dos deputados da Assembleia Nacional redunda sempre no mesmo: o MPLA a designar os dirigentes dos tribunais superiores, e no caso do tribunal constitucional, a sua larga maioria.

Como alternativa propõe-se que exista um sistema de autosseleção de escolha dos juízes, ou um modelo estilo concurso público/ comissão independente e ainda que que sejam criados mecanismos institucionais de garantia da independência dos juízes, que os autonomizem e isolem da influência política. No fundo, estas soluções acabam por ser corporativas: os juízes a escolher juízes e os juízes a controlar os juízes. E nessa medida, têm um problema de legitimidade. Não há nenhuma boa razão que justifique que sejam os juízes a escolher os seus pares ou que constituam um círculo fechado em que ninguém tenha uma palavra a dizer.

 A magistratura, como qualquer órgão soberano tem de ter uma justificação política que legitime a sua escolha. No sistema idealizado por Platão do rei-sábio[12], poder-se-ia pensar numa espécie de exames de alta qualificação em que aqueles que se mostrassem os mais sábios se tornariam juízes. Teríamos a legitimidade platónica do rei-filósofo, que de certa forma, foi também adotado pelas fórmulas confucionistas do mandarinato na China, a partir da dinastia Sui, e apenas baseado no mérito após os Song[13]. No entanto, não se vive nem no modelo idealizado por Platão, nem na China imperial, mas em estados de direito democrático. E a realidade é que a prevalência do princípio democrático impõe que os juízes assentem, em última instância, a sua legitimidade no processo democrático. E nessa medida o poder político deve sempre intervir na escolha dos juízes. Afastar o poder político da escolha judicial é retirar-lhe democraticidade, logo legitimidade. O poder político tem de estar presente no processo de escolha dos magistrados, pois é daí que deriva a sua legitimidade popular e democrática.

Por outra via, não parece que a fórmula de escolha dos juízes ou os órgãos de controlo e gestão sejam verdadeiramente determinantes da sua independência. Acaba por ser melhor existir transparência, saber-se o que pensa e defende cada juiz e aferir o seu trabalho pela análise da fundamentação das decisões que toma, do que criar inúmeros mecanismos que só servem para confundir. É melhor existir um Presidente da República ou um Parlamento a nomear um juiz, o que confere mediatamente legitimidade democrática ao juiz e saber-se a que partido o juiz pertence, do que se criarem ficções de independência que apenas tornam as nomeações e decisões opacas.

O que interessa essencialmente à sociedade é aferir da independência do juiz nas suas decisões judiciais. Por isso, essas devem ser publicadas, conhecidas e sujeitas a discussão; à parte disso, o juiz é uma mulher ou homem como outro qualquer e isso deve ser assumido e dito.

Neste sentido, o sistema em vigor na República Federal da Alemanha acaba por ser o mais honesto. Neste país, que detém uma das magistraturas mais reputadas do mundo,” é permitido aos magistrados serem filiados em partidos políticos, bem como pronunciarem-se publicamente sobre questões políticas. Os juízes com aspirações a serem nomeados para os tribunais superiores podem até considerar de alguma vantagem a filiação partidária, principalmente se for em um dos dois maiores partidos (SPD e CDU). Neste enquadramento legal também não existe qualquer impedimento para um juiz exercer um cargo num partido político[14]”. Por exemplo, a seção 36 da Deutsches Richtergesetz (Lei dos Juízes Alemães) admite que um juiz seja candidato ao parlamento, concedendo-lhe as férias necessárias para preparar sua eleição nos últimos dois meses antes da eleição, sem remuneração.

O sistema alemão, podendo parecer bizarro, tem duas vantagens. A primeira já se referiu é a da transparência. A segunda, é de cariz mais técnica e obriga a que o direito seja dito de forma universalmente aceite e compreensível, sujeito à maior discussão e publicidade crítica. O que se pretende é que os juízes sejam técnicos independentes nas suas decisões, por isso, haverá modelos de decisão e lógica jurídica que todos seguirão, adotando os mais altos critérios da ciência do direito. O que aqui interessa é que o juiz decida de acordo com a lei e de forma metodologicamente correta, daí a importância das regras de metodologia e interpretação na doutrina alemã. Quer-se aplicar uma conduta de raciocínio sindicável e que garanta a autonomia. O treino e a preparação técnica dos juízes são a garantia da sua independência.[15]

Parece-nos que este método seria mais honesto para Angola, exigência jurídica e desconsideração dos aspetos políticos que dificilmente não existirão.

Conclusões

Face ao exposto uma reforma real da justiça angolana envolverá a mudança do paradigma de cultura legal, a “desberlinização do direito”, procurando-se outras novas influências além das portuguesas, como de países vizinhos africanos com sucesso tal como o Botsuana, além do Brasil e dos Estados Unidos.

A isto acrescerá o reforço orçamental e a criação de um instituto autónomo e descentralizado para a administração financeira da justiça.

É também advogada uma polícia própria assente na Assembleia Nacional e com a participação da sociedade para combater a corrupção

E finalmente a assunção do modelo alemão de transparência e exigência técnica para garantir a não politização das decisões judiciais, admitindo que os juízes podem estar filiados em partidos políticos.


[1] Sobre a evolução dos textos constitucionais angolanos ver Adérito Correia e Bornito de Sousa, (1996), Angola. História Constitucional. Almedina.

[2] São inúmeras as referências a esta afirmação de Agostinho Neto, ver por exemplo Edgar Valles, (2020), 27 de Maio: reconciliação e perdão em Angola? PÚBLICO, https://www.publico.pt/2020/05/27/opiniao/noticia/27-maio-reconciliacao-perdao-angola-1918297

[3] Acórdão n.º 700/2021 do Tribunal Constitucional, https://jurisprudencia.tribunalconstitucional.ao/wp-content/uploads/2021/10/ACORDAO-No-700.pdf

[4] J.A.G. Griffith,(2010), The politics of the judiciary, Fontana Press; Rui Verde, (2015) Juízes: O Novo Poder

Ensaio sobre a acção e reforma do poder judicial em Portugal. RCP Edições

[5] MakaAngola (2017), A reivindicação dos juízes. https://www.makaangola.org/2017/06/a-reivindicacao-dos-juizes/

[6] Deutsche Welle, Borralho Ndomba (2021), Falta de condições para juízes põe em causa combate à corrupção em Angola, https://p.dw.com/p/3yYSJ

[7] Ministério das Finanças de Angola, https://www.minfin.gov.ao/PortalMinfin/?fbclid=IwAR1C597oUjdNas8WFrR9R4u0B_1gb_NH-82fQEVyUGl52HUBcazWITEYo4I#!/materias-de-realce/orcamento-geral-do-estado/oge2022

[8] Cfr. por exemplo, Rui Verde, (2019) Ignorância ou corrupção na justiça, MakaAngola, https://www.makaangola.org/2019/01/ignorancia-ou-corrupcao-na-justica/ ou Moiani Matondo, (2020),A droga de justiça, MakaAngola, https://www.makaangola.org/2020/07/a-droga-da-justica/

[9] A título exemplificativo, Sousa Jamba, (2021) Tribunal Constitucional. MakaAngola (2020), https://www.makaangola.org/2020/07/a-droga-da-justica/ ou Kajim Ban-Gala (2021) Laurinda Cardoso: antinomia, filiação partidária e incompatibilidade, https://www.correioangolense.co.ao/2021/12/27/laurinda-cardoso-antinomia-filiacao-partidaria-e-incompatibilidade/

[10] Ver sobre o tema Nuno Coelho (2015), Gestão dos Tribunais e Gestão Processual, CEJ, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/Gestao_Tribunais_Gestao_Processual.pdf e E B McConnell (1991), Court Management: The Judge’s Role and Responsibility, Justice System Journal Volume: 15 Issue: 2.

[11] Ver as análises contidas em SCOTUSBlog. https://www.scotusblog.com/2021/12/the-lives-they-lived-and-the-court-they-shaped-remembering-those-we-lost-in-2021/ 

[12] Eric Brown, (2017) “Plato’s Ethics and Politics in The Republic”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Edward N. Zalta (ed.), https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/plato-ethics-politics/

[13] Mark Cartwright (2019), The Civil Service Examinations of Imperial China, https://www.worldhistory.org/article/1335/the-civil-service-examinations-of-imperial-china/

[14] Vânia Gonçalves Álvares (2015), O governo da justiça: O Conselho Superior da Magistratura. Universidade Nova. P.33.

[15] Sobre o treino e preparação de juízes na Alemanha ver: Johannes Riedel, (2013). Training and Recruitment of Judges in Germany. International Journal for Court Administration, 5(2), pp.42–54. DOI: http://doi.org/10.18352/ijca.12

Nota CEDESA nº2

A iniciativa Global Gateway da União Europeia e Angola: aproveitar já a oportunidade

A União Europeia (UE) revelou, recentemente, o seu projeto Global Gateway, encarado como uma alternativa europeia para Belt and Road Initiative (BRI) da China.

O Global Gateway é um plano de 300 mil milhões de euros de despesas em infraestruturas que pretende incrementar as cadeias de abastecimento da UE e o comércio em todo o mundo.

A diferença que a UE pretende sublinhar face ao modelo chinês da BRI, é que do lado europeu não se vai conceder empréstimos, mas promover investimentos públicos e privados, apresentando aquilo que considera um financiamento transparente e mais favorável, especialmente para os países em desenvolvimento.

O Global Gateway quer ser uma versão mais moderna do BRI, com foco em investimentos em projetos voltados para o futuro e ambientalmente responsáveis ​​nos setores digital, saúde, educação, investigação científica, energias renováveis e outros.

É evidente que África, e nesta, entre outros, Angola é o alvo lógico desta iniciativa da UE, pois é também onde se verifica uma boa parte da influência chinesa através do BRI. A Comissão Europeia não cita o mercado africano como objetivo prioritário, mas é lógico que o seja, pois foi a chegada de financiamentos chineses que mais prejudicou as empresas europeias, que muitas vezes perderam quota de mercado. E Angola serviu de modelo para a intervenção de China em África, através do estabelecimento do chamado “modelo Angolano”

As autoridades angolanas terão todo o interesse em se colocar em contacto com os responsáveis por este programa da União Europeia para serem as primeiras a desenvolver uma parceria sólida que promova investimentos em três áreas fundamentais para Angola: as energias renováveis, a educação e a saúde.

Eventualmente, o grande salto qualitativo que se quer dar na educação angolana poderia ser a primeira aposta deste projeto europeu. A UE poderia ser a grande financiadora da qualificação das universidades e da investigação científica em Angola, uma vez que é uma adepta do soft power, e seria uma área em que tem uma vantagem competitiva extremamente favorável fácil à alegada concorrência chinesa.

Por outro lado, uma abordagem imediata de Angola para implementação do programa permitirá aferir da seriedade e empenho da União Europeia neste programa, verificando que não se trata de um mero anúncio para efeitos propagandísticos, como muitos alegam.

Em conclusão, recomenda-se vivamente a ação imediata angolana para beneficiar do Global Gateway na área da educação.

Proposta de uma política transversal de juventude em Angola

Muitos países não necessitam de uma política robusta de juventude, ou porque a população jovem não é significativa, situando-se a maior parte dos problemas socioeconómicos nas faixas mais idosas, ou porque têm economias e sociedades saudáveis que estimulam e incorporam facilmente os jovens.

Não é o caso de Angola. Os números sobre a juventude angolana exigem uma especial atenção por parte do poder político a esta faixa etária. Com referência a julho de 2021, estima-se que 47.83% da população angolana tenha entre 0-14 anos e 18.64% entre 15-24 anos; logo 66,47% da população tem até 24 anos, ou dito de outro modo, cerca da 2/3 da população angolana é jovem. É uma massa imensa e impressionante de bebés, adolescentes e jovens adultos que constituem a imensidão do povo angolano.[1]

Fig. n.º 1- Pirâmide populacional de Angola (2021)

A esta demografia impressiva juntam-se os números do desemprego. De acordo, com os dados disponíveis mais recentes, o desemprego afeta 59,2% da população jovem (aqui considerada dos 15-24 anos) no terceiro trimestre de 2021, estando a haver um acréscimo anual homólogo desta situação em 2,8%.[2] É evidente que este número não reflete aqueles que de alguma forma foram absorvidos pela economia informal, no entanto, a sua magnitude será sempre assinalável.

Aliás, do ponto de vista sociopolítico tem-se verificado que as manifestações contra a política governamental em Angola, e o ativismo nas redes sociais é levado a cabo, em larga expressão, por jovens.

A juventude é, portanto, uma força enorme na economia e sociedades angolanas, que está em ebulição.

São estes vários fatores: número extremamente relevante de jovens no total da população, desemprego juvenil e descontentamento sociopolítico que obrigam à consideração de uma política transversal e englobante de juventude para Angola.

***

A política de juventude define-se como o compromisso e prática do governo para garantir boas condições de vida e oportunidades para a população jovem de um país.[3] A política de juventude corresponde a uma estratégia implementada pelas autoridades públicas para proporcionar aos jovens oportunidades e experiências que apoiem a sua integração bem-sucedida na sociedade e que lhes permita ser membros ativos e responsáveis ​​da sociedade e agentes de mudança.[4]

Nestes termos, uma política de juventude procura criar oportunidades para os jovens, promover a sua participação, inclusão, autonomia, solidariedade, além do bem-estar, aprendizagem, lazer, emprego.

O papel do governo será lançar políticas com estes objetivos em relação à juventude e trabalhar em conjunto com os vários atores envolvidos na informação, desenvolvimento e implementação de políticas de juventude, tais como: conselhos de jovens, ONGs de juventude, grupos de interesse, grupos de jovens, trabalhadores jovens, investigadores, escolas, professores, empregadores, pessoal médico, assistentes sociais, grupos religiosos, comunicação social[5].

O modelo que desenvolvemos atribui às políticas de juventude três eixos:

  1. O eixo do emprego;
  2. O eixo do desporto e tempos livres;
  3. O eixo da cultura e formação.

Entendemos que uma política de juventude se deve traduzir em medidas nestes três eixos de modo a proporcionar aos jovens um desenvolvimento pessoal integral e completo.

Em Angola existe um Ministério da Juventude e Desportos (Minjud) cuja principal função é auxiliar o Presidente da República na elaboração e execução da política juvenil do Estado (artigo 2.º do Estatuto Orgânico do Ministério da Juventude e Desportos, Decreto-presidencial n.º 228/20, de 7 de setembro).

Contudo, para além de anúncios ou programas com valor retórico, não se vislumbra uma política de juventude transversal e atuante como a que é necessária em Angola. E tal política é fundamental. As notícias com relevo que se anotam sobre a atividade do Minjud debruçam-se essencialmente sobre futebol e estádios de futebol.

Torna-se por isso urgente ir mais além e lançar uma política de juventude que forçosamente abrangerá vários ministérios e terá de ser coerente e consistente. Como referimos essa política de juventude desdobrar-se-ia por três eixos, prestando atenção ao emprego, desporto e cultura.

***

Propõe-se a adoção de uma política de juventude para Angola descrita nos termos seguintes.

A política de juventude seria transversal aos vários ministérios, não dependente apenas dum ministério, e por isso forçosamente coordenada diretamente pelo Presidente da República. Como mencionado teria três eixos que se complementariam.

  • No primeiro eixo referente ao emprego seria lançado um programa de garantia de pleno emprego para todos aqueles que tivessem entre 22 e 23 anos e terminassem uma licenciatura. O Estado assumiria a responsabilidade de lhes dar emprego na sua estrutura ou de subsidiar durante um período de tempo não inferior a 2 anos um local de trabalho no setor privado.[6] Portanto, o Estado ou asseguraria emprego nas suas diversas administrações, institutos ou empresas públicas, ou subsidiaria as empresas privadas para a criação e contratação de postos de trabalho para jovens. Todos os jovens recém-licenciados com 22-23 anos, além de receber formação e assistência para conseguir trabalho, teriam garantido o trabalho remunerado, devendo o Estado pagar 100% do salário numa empresa privada ou empregar participantes no setor público ou ainda apoiar a criação de uma microempresa. Todos os participantes receberiam pelo menos um salário mínimo fixado de acordo com o Decreto Presidencial que regula a matéria adequado a uma vida com dignidade[7]. Numa segunda fase, estudar-se-ia também a garantia de emprego para todos os jovens de 22-23 independentemente da sua habilitação, embora, aqueles sem habilitações formais devessem frequentar uma formação de aquisição de alguma capacidade em arte ou ofício.
  • No segundo eixo referente ao desporto, promover-se-ia um projeto integrado de desporto na escola e na comunidade. Neste âmbito não se deveria desenvolver uma proposta de fazer tudo em todo o lado, ou como se referia a propósito de um anterior plano “envolver modalidades de andebol, atletismo, basquetebol, futebol, voleibol, ginástica e xadrez” em todas as escolas[8].

O plano apontaria para a utilização racional de meios escassos e com a procura de especialização. Assim, exigir-se-ia que cada escola se dedicasse a um desporto apenas e o desenvolvesse livremente no seu seio. Não se apontariam para campeonatos nacionais, nem grandes estruturas, mas apostar-se-ia no foco e na especialização. Cada escola com o seu desporto. Apenas um, mas aberto a todos os jovens. Ao mesmo tempo e em concorrência com as escolas, cada município também promoveria um desporto aberto a todos os jovens. Teríamos assim um projeto de desporto para todos com uma especialização de cada instituição e sem outra ambição inicial que não fosse colocar os jovens no desporto.

  • Finalmente, o terceiro eixo dedicado à cultura, teria também que assentar na especialização. Aqui procurar-se-ia concentrar recursos na promoção da leitura por parte dos jovens. Começar-se-ia por adotar um projeto lançado pela Fundação Gulbenkian em Portugal em meados do século passado e já por vezes esporadicamente adotado em Angola em iniciativas provinciais, como é o caso do “Giro do Saber” promovido pela Biblioteca Provincial de Malanje.[9]

A leitura para a juventude assente em bibliotecas itinerantes e leituras de rua seria um projeto destinado a incentivar o gosto e os hábitos de leitura por parte da juventude. As bibliotecas itinerantes serão constituídas por carrinhas que se deslocariam pelo país fora com voluntários e livros oferecidos e parariam em cada localidade permitindo a leitura desses livros e explicando alguns deles. Ao mesmo tempo esses voluntários realizariam leituras de rua de livros apelativos para a juventude num espetáculo misto de leitura e música, atraindo assim os públicos-alvo.

Procurar-se-ia que este projeto de leitura fosse financiado pelo sistema penal. Isto é, originasse uma modificação da lei que permitisse que todas as penas de prisão até dois anos em crimes económico-financeiros fossem trocadas por doações de carrinhas, livros e suporte ao voluntariado.

Fig. n.º 2- Descrição de uma política de juventude transversal

Com estas várias medidas, no âmbito do emprego, do desporto e da cultura estaria lançada uma política de juventude que tão necessária é para Angola.

Nada como aproveitar os presentes Congressos partidários para a promoção e discussão destas propostas.


[1] Cfr. https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/angola/#people-and-society

[2] https://mercado.co.ao/economia/desemprego-afecta-592-dos-jovens-em-angola-YX1077607

[3] Finn Denstad, Youth Policy Manual, 2009

[4] Conselho da Europa CM / Rec (2015) 3

[5] https://www.coe.int/en/web/youth/about-youth-policy

[6] Temos desenvolvido as propostas para estes programas de pleno-emprego noutros relatórios CEDESA. Ver por exemplo, https://www.cedesa.pt/2020/11/16/proposta-de-um-esquema-piloto-de-garantia-de-emprego-em-angola/

[7] Ver estudo referido na nota anterior

[8] https://www.angop.ao/noticias/desporto/polidesportivo-desporto-escolar-carece-de-continuidade/

[9] https://www.angop.ao/noticias/lazer-cultura/biblioteca-itinerante-chega-ao-municipio-de-cacuso/

Os novos parceiros estratégicos de Angola e a posição de Portugal

Os novos parceiros estratégicos de Angola: Espanha e Turquia

Duas recentes intensas trocas diplomáticas ao mais alto nível fazem despontar o surgimento de novas parcerias estratégicas para Angola. Já em anterior relatório alertámos para os realinhamentos da política externa angolana.[1] Ora, o que se verifica é que esse realinhamento continua, e a um ritmo intenso. O Presidente da República João Lourenço está claramente a imprimir uma nova dinâmica aos negócios estrangeiros de Angola, que não se vê que esteja a ser afetada por alguma agitação interna que se verifica no caminho para o processo eleitoral de 2022.

Os exemplos mais recentes da atividade diplomática do Presidente são a Espanha e a Turquia. O importante nas relações com estes países não é haver ou não uma visita ao mais alto nível, é haver uma intensidade de visitas de parte a parte e objetivos claros desenhados. Pode-se dizer que na perspetiva mútua, Espanha e Turquia estão a tornar-se parceiros estratégicos de Angola.

Comecemos por Espanha. Em abril último, o primeiro-ministro de Espanha, Pedro Sanchez, que pouco abandonou o país durante a pandemia Covid-19, visitou Angola. A visita foi encarada como marcando uma nova era na cooperação bilateral entre os dois países e originou a assinatura de quatro memorandos sobre Agricultura e Pescas, Transportes, Indústria e Comércio. Teve especial relevância o acordo referente ao desenvolvimento do agro-negócio, para futuramente montar uma indústria que transforme a matéria-prima em produto acabado, contando com a experiência dos empresários espanhóis. Como se sabe, a agropecuária é uma das áreas de aposta do governo angolano para o relançamento e diversificação da economia.[2] Portanto, este acordo dedica-se a um vetor fundamental da política económica angolana.

Mais recentemente, em finais de setembro de 2021, o Presidente da República de Angola visitou Espanha onde foi recebido pelo Rei e pelo primeiro-ministro. Nessa visita, João Lourenço afirmou claramente que estava em Espanha em busca duma “parceria estratégica” que ultrapassasse a esfera meramente económica e empresarial. [3] Por sua vez, as autoridades espanholas consideram Angola como “país prioritário[4]“.

Agora ver-se-á como estas intenções alargadas se concretizarão na prática, mas o certo é que ambos os países estão a apostar manifestamente num incremento das relações quer económicas, quer políticas e as suas declarações e objetivos parecem ter um rumo e um sentido.

O mesmo tipo de relação intensificada se está a estabelecer com a Turquia. Em julho passado, João Lourenço visitou a Turquia, onde foi extremamente bem-recebido. Aí desde logo ficou acordado que companhia aérea Turkish Airlines iria voar duas vezes por semana da Turquia para Luanda. Também foi anunciado que a Turquia abriu uma linha de crédito no seu Exxim Bank impulsionar a relação económica bilateral. Isto quer dizer que o sistema financeiro turco vai financiar os empresários turcos para investir em Angola. Já em outubro de 2021, o Presidente turco Erdogan visitou Angola. Essa visita foi rodeada de toda a pompa e circunstância e manifestou uma excelente relação entre os dois países. Tal como a Espanha a Turquia tem uma estratégia agressiva para África, onde pretende obter espaço para a sua economia e influência política. Os acordos assinados por Erdogan e João Lourenço foram sete, nomeadamente, um acordo de assistência mútua em matéria aduaneira; um acordo de cooperação no domínio da agricultura; um acordo de cooperação no domínio da indústria; uma declaração conjunta para o estabelecimento da comissão económica e comercial conjunta; um memorando de entendimento no domínio do turismo e um protocolo de cooperação entre a Rádio Nacional de Angola e a Corporação de Rádio e Televisão da Turquia[5].

A abordagem com a Turquia, tal como a de Espanha, tem como objetivo imediato e estruturante “que [os Turcos] tragam sobretudo know-how que nos permita diversificar e aumentar com rapidez e eficiência a nossa produção interna de bens e serviços”, usando as palavas de João Lourenço[6].

Nestas duas apostas de João Lourenço há uma determinação óbvia, ou melhor duas.

Em primeiro lugar buscar novas fontes de investimento que amparem a fundamental diversificação da economia angolana. Tal é de extremo relevo, e as economias turca e espanhola são devidamente diversas para puderem corresponder ao modelo pretendido por Angola.

O segundo aspeto da aposta refere-se à necessidade que Lourenço sente de descolar Angola de uma excessiva relação com a China e a Rússia, sem as hostilizar, mas procurando novos parceiros. O peso geopolítico da Guerra Fria e a sequente implementação do modelo chinês em África, com o qual Angola está identificado pesam muito nas avaliações das chancelarias e investidores. Assim, Angola procura novas aberturas e uma “descolagem” dessa marca anterior, até porque a Rússia não tem músculo financeiro para realizar grandes investimentos em Angola, e a China está no meio dum turbilhão económico. Como é público, a “economia chinesa cresceu 4,9% no terceiro trimestre deste ano, a mais baixa taxa num ano, reflectindo não apenas os problemas que está a enfrentar com o endividamento do sector imobiliário, mas também, e já, os efeitos da crise energética.”[7] Isto quer dizer que a China precisa e muito do petróleo angolano, mas não terá disponibilidades financeiras para avultados investimentos em Angola.

Na verdade, as relações entre a China e Angola e a necessidade de uma reavaliação da mesma, sobretudo ao nível do fornecimento de petróleo e da opacidade dos arranjos terá que ser um tema para um relatório autónomo que iremos produzir no futuro próximo.

A posição de Portugal. A desberlinização em curso

Estabelecida que está a relevância da intensificação das relações de Angola com Espanha e a Turquia, coloca-se uma questão óbvia: e Portugal?

Portugal tem tentado ser o parceiro por excelência de Angola, e para isso tem-se acomodado, no passado, aos vários ímpetos da governação angolana.

Atualmente, existem boas relações políticas entre Angola e Portugal. Ainda recentemente, João Lourenço afirmou o seguinte: “Tive a felicidade de durante este meu primeiro mandato termos sabido manter a um nível bastante alto as relações de amizade e cooperação entre os nossos dois países[8].” Acrescentando ainda que as “relações pessoais também ajudam. Portanto, nós soubemos construir ao longo dos anos essa mesma relação com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e com o primeiro-ministro António Costa.” Não existem dúvidas que estão estabelecidas relações favoráveis entre Angola e Portugal.  A isso ajuda também que Portugal conta com três laços que se fazem sentir todos os dias; os laços históricos, os laços culturais, sobretudo linguísticos, e os laços emotivos.

Contudo, e apesar do contentamento expresso pelo Presidente angolano naquilo que diz respeito às boas relações entre os dois países, há questões estruturais que lançam sombras no relacionamento e tornam a posição de Portugal menos relevante para Angola do que no passado, gerando alguma cautela da parte angolana em relação a demasiados envolvimentos com Portugal. Efetivamente, há um declínio da posição portuguesa em Angola, face a Espanha ou a Turquia, ou a Alemanha, França ou Reino Unido. Há uma desberlinização em curso da política externa angolana. João Lourenço verá Portugal como aliado na CPLP, mas não como porta de entrada ou plataforma para a Europa. Aí quer relacionar-se diretamente a cada um dos países europeus em concreto. A velha ideia que perpassava nalgumas chancelarias europeias que os assuntos angolanos eram específicos de Portugal e deviam ser tratados a partir, ou pelo menos, com o concurso de Lisboa (que chamamos berlinização), terminou. Cada um dos países europeus lida agora com Angola sem a intermediação portuguesa e vice-versa.

Este facto resulta essencialmente de três fatores. Um de natureza económica, e dois de natureza política.

Em primeiro lugar, Angola procura nesta sua incursão pelo mundo países com potencialidade e capital para investir. Está à procura de capital para desenvolver a sua economia. Ora Portugal, saltando de crise em crise e tendo uma manifesta falta de capital para o seu desenvolvimento, muito menos terá meios para deslocar para Angola. E no famoso Plano de Recuperação e Resiliência português não se encontra nada específico para investimento em África ou Angola em concreto. Consequentemente, não havendo provisões destacadas para Angola no Plano português, bem se percebe que o país africano terá de ir procurar massivos investimentos noutras paragens.

No entanto, acreditamos que este não é a principal causa para o declínio relativo da posição portuguesa nas prioridades da política externa angolana. Existem outras duas razões, aliás interligadas.

Neste sentido, existe um fator que tem causado a inquietação da atual liderança angolana face a Portugal. Este fator reside no facto de no passado próximo, Portugal ter constituído aquilo a que o Financial Times de 19 de outubro[9] qualifica como o local onde a elite rica (e corrupta) de Angola colecionou troféus em ativos, uma espécie de recreio dos filhos do Presidente José Eduardo dos Santos e de outros membros da oligarquia. Ora, a governação angolana, aparentemente, olha com alguma desconfiança para Portugal devido a isso, sobretudo, considerando a intervenção que bancos, advogados, consultores e toda uma panóplia de prestadores de serviços portugueses tiveram no branqueamento e ocultação de ativos adquiridos com dinheiro ilicitamente saído de Angola. Há o perigo de todas estas entidades estarem a desenvolver esforços para prejudicar o famoso combate contra a corrupção encetado por João Lourenço.

O que se verificou durante os anos de crescimento feérico de Angola, entre 2004 e 2014, sensivelmente, é que Portugal funcionou como íman para as poupanças e rendimentos dos angolanos. As elites dirigentes angolanas em vez de investir o dinheiro no seu país foram investi-lo, ou meramente parqueá-lo em Portugal, com consequências desastrosas para Angola, que se viu sem o capital necessário para tornar sustentável o seu crescimento. O raciocínio que se poderá atribuir ao governo angolano é que Portugal deixou que o dinheiro angolano obtido ilicitamente fosse branqueado no seu sistema económico e financeiro com tal profundidade que agora é de recuperação muito difícil. Ana Gomes, sensatamente, sempre alertou sobre isto. Na verdade, se repararmos em relação a ativos recuperados por Angola com grande significado ainda não houve notícia pública que algum deles proviesse de Portugal. Houve os 500 milhões de dólares que vieram de Inglaterra, mas em Portugal, a EFACEC foi nacionalizada pelo governo português- e bem do ponto de vista do interesse nacional de Lisboa- mas percebeu-se que Angola não receberia nada daí, como também não se vê um caminho claro de recebimento de outras situações.

A este fenómeno adiciona-se um segundo que se nota presentemente. Lisboa está a servir como plataforma para a articulação mais ou menos dissimulada de fortes ataques da oposição ao governo angolano. Seja através de consultoras, imprensa ou escritórios de advogados. Neste caso, ao contrário eventualmente, do caso dos investimentos e possíveis branqueamentos, essas atividades decorrerão de acordo com a lei e as proteções adequadas dos direitos fundamentais. No entanto, criará um mal-estar na liderança angolana, que possivelmente verá uma ligação entre os dois fenómenos, isto é, entre o facto de Portugal ter sido um safe heaven para ativos angolanos obtidos ilicitamente, no passado, e agora se tornar um local de encontro e conspiração da oposição, sobretudo, à chamada luta contra a corrupção. Percebe-se que muitos dos movimentos ocorrem em Portugal e as suas elites continuam a ajudar aqueles que foram apelidados por João Lourenço como “marimbondos”, seja em termos judiciais, seja na procura de novos locais para esconderem o seu dinheiro.

Em termos concretos, o episódio da nacionalização EFACEC aliado à recente decisão judicial de “descongelar” as contas de Tchizé dos Santos em Portugal, e à generalização de uma corrente anti João Lourenço em largos espaços da comunicação social portuguesa, embora constituam decisões ou atitudes que se justificam em termos políticos, legais ou éticos em Portugal, são eventos que fazem reforçar alguma desconfiança angolana face à atitude portuguesa, que podem ver a antiga potência colonial numa espécie de jogo de sombras.

Estas situações que se têm alargado nos últimos meses, estão a provocar algum desconforto em Angola, que poderão considerar Portugal como uma espécie de porto seguro para atividades que prejudicam o país. Paulatinamente, as conspirações oriundas de território português abundam, como as reuniões, encontros e demais eventos

São precisamente os motivos acima referidos que nos levam a identificar alguma tentativa de distanciamento político do governo de Angola face a Portugal. Não há respostas fáceis a estas equações, embora a sua enunciação tenha de ser feita para reflexão de todos os intervenientes.


[1] CEDESA, 2021, https://www.cedesa.pt/2021/05/18/os-realinhamentos-da-politica-externa-de-angola/

[2] Ver nosso Relatório CEDESA, 2020, https://www.cedesa.pt/2020/06/15/plano-agro-pecuario-de-angola-diversificar-para-o-novo-petroleo-de-angola/

[3] Deutsche Welle, 2021, https://www.dw.com/pt-002/jo%C3%A3o-louren%C3%A7o-em-espanha-em-busca-de-parceria-estrat%C3%A9gica/a-59344760

[4] Idem nota 3.

[5] Presidência da República de Angola, 2021, https://www.facebook.com/PresidedaRepublica

[6] Idem, nota 5.

[7] Helena Garrido, 2021, https://observador.pt/opiniao/o-choque-energetico-e-o-orcamento-em-duodecimos/

[8] Observador, 2021, https://observador.pt/2021/10/22/pr-de-angola-ve-relacoes-de-amizade-e-cooperacao-com-portugal-em-nivel-bastante-alto/

[9] Financial Times, 2021, https://www.ft.com/content/4652e15a-f7ba-4d21-9788-41db251c5a76

Eleições angolanas de 2022 e os Estados Unidos da América

Recentemente, têm circulado por Luanda e obtido o devido eco em portais geralmente bem-informados[1]rumores acerca dum possível interesse acrescido dos Estados Unidos nas eleições angolanas, que levariam a potência ocidental a exigir que as eleições tivessem observadores internacionais imparciais que garantissem a verdade eleitoral, bem como a ameaça de possíveis sanções ao governo de João Lourenço se não acatasse essas recomendações americanas. Em concreto, anuncia-se que a Administração Biden tem estado a ameaçar com a aplicação de sanções financeiras, restrições de vistos e proibições de viagens contra governantes que prejudiquem as eleições nos seus países.[2] Daí extrapola-se que estará a fazer o mesmo em relação a Angola.

Representando esta aparente postura uma rutura com a relativa passividade com que os Estados Unidos da América no passado têm encarado as eleições gerais em Angola, pelo menos desde 2008, é mister tentar perceber se existe verificavelmente essa mudança de política dos EUA e em que termos.

Em primeiro lugar, as fontes que consultamos afirmam desconhecer qualquer inversão da política externa norte-americana relativa a Angola, anotando que os rumores têm origem, essencialmente, em documentos enviados por Organizações Não Governamentais angolanas ao Departamento de Estado, o que sempre aconteceu e acontecerá e também nas auscultações habituais que a Embaixada americana em Luanda efetuou, mas que sempre realizou no passado e realizará no futuro. Nada de novo, portanto.

Em segundo lugar, e isto constitui o objeto do nosso estudo, interessa averiguar se as condicionantes estruturais da política externa norte-americana implicam uma intervenção/preocupação mais acentuada com as eleições e a situação em Angola, podendo levar a desentendimentos graves ente a Administração Biden e o executivo de João Lourenço.

A política externa da Administração Biden, curiosamente, nas suas grandes linhas segue a política adotada por Donald Trump, quebrando apenas em aspetos específicos, como a emergência climatérica ou algum multilateralismo. Deste modo, a política externa Biden assenta num empenho no tratamento da relação com a China, um pragmatismo na generalidade das relações e um desinteresse em África.

A retirada, nos termos em que ocorreu, do Afeganistão é um exemplo típico desta abordagem, em que os americanos não se querem envolver em projetos “nation building” ou de promoção ativa de valores noutros países. Preferem agora uma estratégia que os beneficie comercialmente, garanta a estabilidade e ajude a controlar a China.  

O idealismo dos neoconservadores que acolitaram George Bush filho na sua tentativa de construção de democracias e estados de direito no Iraque e Afeganistão, deixou de fazer parte do guião da política externa americana. Portanto, não se espere que esse idealismo venha existir para África. Não vão existir intervenções em África para promover qualquer tipo de valores americanos, nem sequer intervenções musculadas de qualquer tipo.

O que existe da parte norte-americana é um desejo que o continente africano seja o mais estável possível e o fornecimento de matérias-primas essenciais seja assegurado do modo mais adequado possível.

Ainda este mês de outubro, na prestigiada revista Foreign Affairs, escrevia-se “President Joe Biden’s administration has been similarly slow out of the blocks on Africa. Aside from its focused diplomatic response to the horrific civil war in Ethiopia and a few hints about other areas of emphasis, such as trade and investment, Biden has not articulated a strategy for the continent.” (A administração do presidente Joe Biden tem sido igualmente lenta nos bloqueios de África. Além de sua resposta diplomática focada na horrível guerra civil na Etiópia e algumas dicas sobre outras áreas de ênfase, como comércio e investimento, Biden não articulou uma estratégia para o continente.)[3].

Consequentemente, em termos das linhas estruturais da política estrangeira americana verifica-se que com a retirada do Afeganistão foi abandonada qualquer veleidade de “Nation building” ou intervenção em país terceiro que não ameace diretamente o interesse nacional.

Adicionalmente, o foco foi colocado na China e no seu controlo e mais geralmente na Ásia.

A declaração do Departamento de Estado norte-americano de maio deste ano é bem clara sobre a importância da China e o papel que desempenha na abordagem americana: “Strategic competition is the frame through which the United States views its relationship with the People’s Republic of China (PRC).  The United States will address its relationship with the PRC from a position of strength in which we work closely with our allies and partners to defend our interests and values.  We will advance our economic interests, counter Beijing’s aggressive and coercive actions, sustain key military advantages and vital security partnerships, re-engage robustly in the UN system, and stand up to Beijing when PRC authorities are violating human rights and fundamental freedoms.  When it is in our interest, the United States will conduct results-oriented diplomacy with China on shared challenges such as climate change and global public health crises[4].” (“A competição estratégica é a estrutura pela qual os Estados Unidos veem seu relacionamento com a República Popular da China (RPC). Os Estados Unidos abordarão o seu relacionamento com a RPC a partir de uma posição de força na qual trabalhamos em estreita colaboração com nossos aliados e parceiros para defender nossos interesses e valores. Avançaremos os nossos interesses económicos, combateremos as ações agressivas e coercitivas de Pequim, manteremos vantagens militares importantes e parcerias de segurança vitais, voltaremos a colaborar fortemente no sistema da ONU e enfrentaremos Pequim quando as autoridades da RPC estiverem a violar os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Quando for de nosso interesse, os Estados Unidos conduzirão uma diplomacia voltada para resultados com a China em desafios compartilhados, como mudanças climáticas e crises globais de saúde pública.”

Se as linhas estruturantes da política externa americana são as referidas, e África não ocupa um lugar relevante, convém assinalar, no entanto, o que os Estados Unidos desejam ou esperam de África. Essencialmente, pode-se resumir numa frase coloquial: Os EUA desejam que África não lhe dê chatices e propicie alguns lucros económicos.

No seguimento dessa estratégia, os EUA têm entregado uma boa parte da luta anti- terrorista a França e contam que os países africanos garantam a estabilidade local, prosseguindo fortes alianças com alguns deles. Só se o interesse e a segurança nacionais norte-americanas forem afetadas pelo terrorismo islâmico, os Estados Unidos intervirão fortemente. De notar, que também aqui os EUA têm o seu trauma, ocorrido na Somália, e tão bem retratado no belo filme Black Hawk Down[5] magistralmente dirigido por Ridley Scott. Não existe qualquer apetência dos EUA em se colocarem por dentro de qualquer imbróglio em África. Esta ideia é reforçada pelas propostas de donwsizing relativamente ao seu Africom (Comando dos Estados Unidos para a África).

Nesta medida, os EUA têm uma perspetiva muito prática dos equilíbrios de forças e necessidades para África. E na realidade a sua história com Angola isso o demonstra. Na verdade, mesmo quando nos anos 1980s apoiavam declaradamente a UNITA de Jonas Savimbi contra o MPLA de José Eduardo dos Santos tinham o cuidado que tal apoio não perturbasse as atividades das suas companhias petrolíferas a operar em território dominado pelo governo do MPLA. Na altura, Cuba enviou 2 mil soldados adicionais para proteger as plataformas de petróleo da Chevron (em Cabinda). Em 1986 Savimbi chamou a presença da Chevron em Angola, já protegida pelas tropas cubanas, como um “alvo” da UNITA. Portanto, tínhamos Savimbi apoiado pelos norte-americanos a invetivar uma companhia norte-americana protegida pelos cubanos.[6] Mais tarde, correram rumores que uma empresa ligada ao conservador Dick Cheney, futuro vice-presidente de George Bush filho, teria tido um papel na localização e morte de Jonas Savimbi[7].

Isto quer dizer, que a atitude dos EUA face a Angola sempre foi ambivalente, e não será agora que irá enveredar por um caminho de confronto, quando Angola se tornou um aliado importante por dois motivos muito reais.

Em primeiro lugar, Angola, sobretudo com a liderança de João Lourenço tem desempenhado um papel de pacificação na sua zona de influência. Relembre-se que Angola ajudou a uma transmissão pacífica e eleitoral na República Democrática do Congo (RDC), tenta estabelecer alguma tranquilidade entre o triângulo RDC, Uganda e Ruanda, além de ter contribuído decisivamente para a recente paz na República Centro-Africana (RCA). Na verdade, neste último país o Presidente Touadéra destacou o papel fulcral desempenhado pelo Estado angolano na obtenção da paz. Angola é um aliado da paz dos EUA em África e obviamente os americanos não vão desleixar o apoio e colaboração diplomática e militar de Angola para a tranquilidade africana.

Também é um forte baluarte contra qualquer penetração do terrorismo islâmico.

Em segundo lugar, é nítido que Angola segue atualmente uma nova política externa, pretendendo “descolar-se” da excessiva dependência da China. Ora, atendendo à sua experiência com a China de quem foi pioneira da intervenção em África e da tentativa atual duma política estrangeira mais ocidental, Angola constitui uma plataforma experimental por excelência para a política dos EUA face à China, onde se testarão as verdadeiras implicações dessa política e até onde irá o empenho americano para contrabalançar a China.

Nessa medida, um falhanço americano com Angola será um falhanço global da sua aproximação estratégica à China. Aqui, tal como na Guerra Fria em relação à União Soviética, se vai medir a realidade da ação americana relativamente à China.

Assim, tudo ponderado não parece que a Administração Biden embarque em qualquer hostilização ou mudança em relação ao governo de João Lourenço, pois isso não corresponde aos interesses americanos face a África e mesmo em relação à China. Todos rumores noutro sentido, devem ser vistos como parte da luta interna angolana e não qualquer posicionamento musculado americano.


[1]CLUB-K, 2021,  https://club-k.net/index.php?option=com_content&view=article&id=46062:eua-ameacam-sancoes-contra-regimes-africanos-que-recorrem-a-fraude-eleitoral&catid=11:foco-do-dia&lang=pt&Itemid=1072

[2] Idem

[3] Foreign Affairs, 2021, https://www.foreignaffairs.com/articles/africa/2021-10-08/africa-changing-and-us-strategy-not-keeping?utm_medium=promo_email&utm_source=lo_flows&utm_campaign=registered_user_welcome&utm_term=email_1&utm_content=20211026

[4] USA State Department, 2021, https://www.state.gov/u-s-relations-with-china/

[5] Black Hawk Down, 2001, https://www.imdb.com/title/tt0265086/

[6] Franklyn, J. (1997), Cuba and the United States: a chronological history

[7] Madsen, W. (2013). National Security Agency surveillance: Reflections and revelations 2001-2013

Liberdade de imprensa, direito e bom-senso

Os recentes acontecimentos resultantes da manifestação promovida pelo partido UNITA no passado sábado, nos quais elementos de televisões foram alegadamente impedidos de realizar o seu trabalho e agredidos, devem ser encarados duma perspetiva institucional e com bom-senso, distinguindo os vários planos.

Do ponto de vista da responsabilidade pessoal e criminal, compete às eventuais vítimas e seus empregadores acionarem os mecanismos legais ao dispor com vista ao ressarcimento dos danos e eventuais punições. Essa responsabilização realiza-se através do Ministério Público e dos Tribunais e aí deve ter lugar.

Plano diferente é o institucional. Neste âmbito deve funcionar o bom-senso.

Por um lado, o partido organizador da manifestação, confirmando o ocorrido, deve apresentar as suas desculpas às vítimas e aos seus empregadores, garantindo que no futuro assegurará o livre exercício de liberdade de imprensa nas suas atividades.

Por outro lado, as televisões, designadamente, TPA e TV Zimbo devem reafirmar o seu comprometimento com a liberdade de imprensa e o pluralismo, abstendo-se de comportamentos violadores destes princípios constitucionais, deixando eventuais queixas e aflições para os Tribunais, não exercendo justiça privada sob a forma de retaliação. Deve predominar o bom-senso e a razoabilidade.

Lisboa, 14 de setembro de 2021

Angola quer novo rumo para a CPLP

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), cuja presidência rotativa será assumida por Angola até 2023, tem sido até agora um misto de despedida imperial, tal como a sua congénere britânica Commonwealth, e de clube de simpatias a oportunidades fotográficas, não demonstrando ser uma estrutura capaz de alavancar o progresso político ou económico dos seus membros.

Ora, a intenção de Angola e da presidência que agora começa parece ser mudar essa aparente letargia e dotar a CPLP de instrumentos, ou pelo menos objetivos concretos e práticos, que promovam o interesse e prosperidade dos países que lhe pertencem.

Nesse sentido, há uma clara aposta em tornar a CPLP uma organização económica que promova a colaboração económica e financeira entre os seus vários membros, possivelmente, criando no futuro um mercado integrado ou pelo menos uma zona de comércio livre sem taxas entre os membros.

Essa vertente (zona de comércio livre) será provavelmente adicionada com alguns fundos estruturantes que permitam aos países mais ricos da CPLP apoiar o desenvolvimento ou criar parcerias estratégicas com os países mais pobres da comunidade. É preciso não esquecer que dentro da CPLP há potências petrolíferas como o Brasil, Angola, a Guiné Equatorial e mesmo Timor-Leste, há um membro da União Europeia, como Portugal, e há um potencial populacional e de recursos naturais enorme. Por isso, é normal que seja promovida e reforçada a vertente de integração económica e cooperação financeira estratégica entre os vários países da CPLP.

Assim, Angola apostará, certamente, na enfatização da vertente económica da CPLP, apontando objetivos ligados a um mercado livre com reforço da coesão económica e parceria estratégica entre os seus membros.

Um segundo ponto liga-se à livre mobilidade de pessoas. Ultrapassada a Covid- 19 tem todo o sentido começar a aprofundar na prática um projeto de livre circulação das pessoas residentes na CPLP. Obviamente que este projeto tem de ser compaginado com a livre circulação que já existe em Portugal em relação à União Europeia, aliás tal como a maior integração económica, e também afastar medos de pressões demográficas intercontinentais. No entanto, será o exemplo mais prático e palpável que a CPLP é uma organização com futuro e que diz algo às populações.

Não tenhamos dúvidas que um tempo em que os povos anseiam pela melhoria das condições de vida, qualquer organização só tem futuro se abraçar esses desideratos, que se traduzem nos objetivos que enunciámos:

 i) mercado livre na CPLP,

ii) cooperação para a coesão económica e

iii) mobilidade da população.

Serão estes os esteios que permitirão o desenvolvimento da CPLP para além da sua imaginação põs-imperial e que parecem nortear a política angolana para a sua presidência da CPLP, tal como resulta da leitura que fazemos das notas divulgadas  por Angola a propósito da XIII Conferência que Luanda vai albergar sob o lema “Construir e fortalecer um Futuro Comum e Sustentável”, tendo significativamente agendado para 15 de Julho, uma Mesa Redonda sobre a Cooperação Económica e Empresarial, em formato híbrido (presencial e virtual).

Angola parece apostar numa CPLP que ultrapasse o saudosismo pós-imperial e que se erga como motor de crescimento económico e melhoria da qualidade de vida das populações pertencentes à Comunidade.

Os realinhamentos da política externa de Angola

1-Introdução. O reposicionamento geopolítico de Angola

No momento, em que terminamos este relatório, o Presidente da República de Angola encontra-se em Paris com o Presidente da República Francesa. Este encontro representa um dos pontos do realinhamento em curso da política externa de Angola. Basta lembrar que nos últimos tempos de José Eduardo dos Santos, os franceses estavam de “castigo” devido ao seu papel no Angolagate.

Angola não é um país indiferente. Tem desempenhado um papel geopoliticamente relevante ao longo da sua curta, mas intensa história após a independência. Primeiramente, foi um dos palcos violentos da Guerra Fria, onde americanos e soviéticos se digladiaram com a virulência que não podiam adotar noutras localizações geográficas. Angola acabou por ser um bastião soviético de grande nomeada, onde estes na realidade ganharam quando em confronto com os Estados Unidos. Depois da fase soviética, Angola foi mais uma vez inovadora e tornou-se o primeiro país africano a receber a nova China que se abria ao mundo e procurou em África um continente para a sua expansão e teste das suas ideias. Angola tornou-se um parceiro por excelência da China.

            Obviamente, sendo uma simplificação, do ponto de vista das grandes tendências a posição geopolítica de Angola começou por estar alinhada com a União Soviética e após a queda desta, com a China. Não se tratando dum país rabidamente antiocidental, muito longe disso, até porque Angola tem uma profunda influência da cultura europeia, o país ancorou-se em outras paragens ao longo do tempo.

Por várias razões, neste momento, Angola ensaia uma diferente aproximação geopolítica que tende a desvalorizar o papel quer da Rússia, quer da China, e a encontrar novas referências e diálogos políticos. Este texto debruçar-se-á sobre essa desvalorização, os novos vetores que influenciam o reposicionamento angolano, os países que agora desempenharão um papel mais relevante nas preocupações externas de Angola, além de uma curta nota sobre Portugal. Não se abordará a influência de Angola na África Austral e o seu papel de estabilização nos Congos.

2-O declínio da relação angolana com a Rússia e a China

O declínio da relação soviética (agora russa) com Angola é fácil de descrever. A aposta da União Soviética em Angola fazia parte de uma estratégia de longo-prazo de envolvimento do Atlântico Norte através dos países do Sul. A incursão em África que foi acelerada pela “perda” da influência no Médio-Oriente nos anos 1970s derivada do corte promovido por Sadat do Egipto e pelo aproveitamento oportuno de Kissinger. De repente, a União Soviética viu-se sem um dos suportes principais que tinha no Médio Oriente e de onde esperava condicionar os americanos. O certo é que essa situação levou a um aprofundamento de várias alternativas entre as quais mais tarde se destacou Angola. Naturalmente, que a queda do Muro de Berlim em 1989 e o final da Guerra Fria, com a consequente desagregação da União Soviética levaram a que o interesse russo em África esmorecesse consideravelmente. A Rússia que emergiu após o colapso de Gorbachev já não estava interessada em qualquer competição mundial com os Estados Unidos, mas na sua sobrevivência e transformação. Rapidamente perdeu o interesse em Angola.

            É certo que atualmente, Putin recuperou alguma da dinâmica imperial e procura alguma influência em África, mas ainda é de curto alcance e tem-se traduzido no envio de mercenários do grupo Wagner, que têm tido pouca eficácia, designadamente em Moçambique. Em Angola, não se nota uma atuação relevante da Rússia, sobretudo como parceiro essencial e determinante. Existem obviamente contactos e relações. Fala-se muito na influência russa em Isabel dos Santos, que será cidadã desse país, mas o certo é que não são visíveis investimentos ou laços russos com Luanda com manifesto relevo. Em 2019, foram anunciados investimentos russos em Angola de 9 mil milhões de euros, mas não se conhece sequência de tal. A isto acresce que a dívida pública externa de Angola à Rússia é zero de acordo com os dados do Banco Nacional de Angola (BNA), tendo sido liquidada na sua totalidade até 2019.

            Mais difícil é concluir pelo declínio da relação com a China. Na verdade, o investimento chinês em Angola tem vindo a crescer, pelo menos até 2020, e a dívida pública externa angolana face à China representava em 2020, 22 mil milhões de dólares, o equivalente a mais de 40% do total. A implantação chinesa em Angola é grande, bastando referir em termos sociológicos a relevância da Cidade da China.

            No entanto, há indícios que a preferência chinesa está a diminuir, ou pelo menos, a ser mitigada. O primeiro indício refere-se às negociações de um novo empréstimo que levou João Lourenço à China no início do seu mandato. As primeiras informações para a imprensa davam conta de montantes avultados a serem disponibilizados pela China, na ordem dos 11 mil milhões de dólares. A realidade é que houve variadas procrastinações nesse empréstimo, que acabou aparentemente para envolver uma quantia reduzida de 2 mil milhões de dólares que terá servido para fazer pagamentos de dívida angolana a empresas chinesas.

O certo é que se analisarmos a evolução da dívida pública externa angolana à China verificaremos que um houve um salto assinalável entre 2015 e 2016, de cerca de 11,7 mil milhões de dólares para 21,6 mil milhões de dólares, que a dívida atingiu o pico em 2017, 23 mil milhões de dólares e que desde aí tem vindo a diminuir com uma cadência significativa. Afigura-se que a China não se quer envolver mais com Angola, preferindo ir gerindo o atual envolvimento.

            Se da parte da China se poderá vislumbrar alguma recalcitrância na relação com Angola, da parte angolana também existem obstáculos. O primeiro deles é a natureza da dívida angolana à China. Muitos alegam que uma boa parte desta dívida é o que se chama “dívida odiosa”, isto é, serviu para beneficiar interesses privados corruptos e não o desenvolvimento do país. Existe a impressão que a opacidade com que se fazem os negócios com a China permitiu a criação de situações de corrupção demasiado evidentes e prejudiciais ao país. Assim, a dívida da China é, em parte, vista como dívida da corrupção. A isto acresce que surgiram problemas de qualidade nalgumas construções chinesas em Angola financiadas por dívida chinesa. Não está claro se essa falta de qualidade se deve a qualquer negligência chinesa ou a comportamentos censuráveis por parte de responsáveis angolanos, mas o certo é que a imagem persiste.

            Isto quer dizer que sendo ainda a China um parceiro fundamental de Angola, está-se, neste momento, numa espécie de fase de reavaliação. Forçosamente há que resolver o problema da dívida do passado ligada à corrupção, do modo de agir contratual demasiado opaco por parte da China e também as questões ligadas à qualidade. É uma tarefa exigente, mas necessária para reativar o interesse comum chinês e angolano.

            Se a relação com a Rússia não tem a relevância do passado e com a China está numa fase de reavaliação e recondicionamento, é evidente que Angola, sobretudo, atendendo às mudanças porque passa, terá que buscar novos parceiros ativamente.

3-Os novos vetores de atuação angolana: objetivos e países

A relação angolana com a Rússia e a China coincidiu com a necessidade de afirmar uma soberania própria e independente de interferências externas, e também da obtenção de fundos para a guerra e reconstrução pós-guerra. A atual política externa de João Lourenço coloca-se num patamar ligeiramente diferenciado, em que é importante congregar o apoio externo para as duas grandes reformas que estão a ser levadas a cabo internamente: a reforma económica e a luta contra a corrupção. Ambas as reformas necessitam de colaboração externa, sem o qual podem não sobreviver.

            A reforma económica assenta no chamado consenso de Washington proposto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), embora os intelectuais e burocratas internacionais tenham já abandonado esta designação e a recusem. Ainda assim, implica a adoção de políticas de alargamento dos impostos e restrição da despesa com a respetiva consolidação fiscal. Naturalmente que este tipo de políticas é recessivo, aumenta, no curto-prazo, a crise económica em Angola. A grande forma de ultrapassar este efeito é obter investimento externo e muito. Aliás, diz a teoria seguida, que havendo estas reformas disciplinadoras do FMI, os investidores estrangeiros passam a confiar nos governos que as seguem e sentem-se seguros para investir. Em resumo, o investimento estrangeiro é o contrapeso necessário às reformas do FMI e a chave do sucesso destas. Consequentemente, não admira que um dos principais vetores da política externa angolana seja a aproximação a países com capacidade de investimento reprodutor assinalável e com provas dadas.

            Naquilo que diz respeito à luta contra a corrupção, o panorama que se apresenta é que, de uma maneira geral, são os países com potencialidades para investir em Angola, aqueles em que é necessária a colaboração judicial para recuperação de ativos ou traço de movimentos financeiros ilegais. As oligarquias angolanas que desviaram fundos públicos remeteram-nos para os países mais avançados ou com maior potencial financeiro.

Portanto, há um grupo de países que atualmente interessa de sobremaneira a Angola: são aqueles com capacidade de investimento eficiente e com um sistema financeiro por onde passaram muitos dos movimentos ilícitos de fundos angolanos, bem como onde se sedearam ativos comprados, possivelmente, com esses fundos. Neste momento, nem a China, nem a Rússia são países de onde se espere mais investimento, nem foram os locais escolhidos, aparentemente, para parquear bens ou ativos ilícitos. Ou se foram não há qualquer conhecimento do que lá se passa e está acolhido.

            É neste contexto que tem assumido relevância uma série de países. Um primeiro grupo são os países da Europa Ocidental que se têm destacado em visitas e anúncios de investimentos em Angola. No início deste mês de Abril de 2021, o primeiro-ministro de Espanha, Pedro Sanchez, fez uma visita a Angola. Esta visita foi acompanhada de grande empenho espanhol, afirmando Angola como um dos parceiros preferenciais de Espanha em África, e esta como uma grande aposta espanhola. Anunciou-se que Angola era a “proa” duma empreitada de Madrid a que chamou “Foco África 2023.” No ano passado, tinha sido a vez da Chanceler alemã Angela Merkel visitar Angola no âmbito de um Fórum Económico Angola-Alemanha e mais alargadamente de um Plano Marshall alemão para África. Também, o Presidente Macron anunciou uma visita a Angola, que tem sido adiada devido à Covid-19. Por sua vez o Presidente italiano já havia visitado Angola em 2019. Em relação ao Reino Unido não tem havido visitas deste nível tão elevado, mas começa a notar-se algum interesse por Angola devido às imposições do Brexit, que exigem novos mercados para o Reino Unido, embora haja um enorme desconhecimento.

            Às visitas têm sucedido variadas promessas de investimento da Europa Ocidental. A empresa italiana de petróleos (ENI) prevê investir sete mil milhões de dólares (5,9 mil milhões de euros), nos próximos quatro anos, na pesquisa, produção, refinação e energia solar, anunciou no início de abril de 2021. Antes empresários britânicos afirmaram pretender investir em Angola cerca de 20 mil milhões de dólares. Também a Alemanha e a França têm vários projetos em curso.

            Este eixo da Europa Ocidental tornou-se fundamental na política externa angolana, pois estes países necessitam de novos mercados e investimentos, para saírem da excessiva dependência da China, e no caso britânico, também para procurar alternativas pós-Brexit, e sendo mercado maduros, têm de ir ao encontro de onde está a juventude e o futuro, e isso está em África.

Conseguindo João Lourenço passar a imagem que rege um governo competente e com regras macroeconómicas estáveis e viradas para o mercado livre, os investidores espanhóis, franceses, britânicos, italianos ou alemães sentir-se-ão seguros para investir. Ao mesmo tempo, nestes países residem muitas das fortunas saídas de Angola, portanto, haverá oportunidade de criar mecanismos para a sua recuperação ou redirecção.

            Note-se que ao contrário do que se poderia pensar, esta Ocidentalização da política externa de Lourenço não passa por Portugal, mas indica uma abordagem direta entre os países europeus e Angola e vice-versa.

            A este eixo Europeu Ocidental há que adicionar outro, o eixo do Golfo. Os países do Golfo, em que se destacam os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita. Estes países, previamente dependentes do petróleo, entraram numa política de diversificação. O Dubai já há alguns anos e com tremendo sucesso. A Arábia Saudita ainda dá os primeiros passos, com a chamada Visão 2030, mas o certo é que querem investir fora do seu âmbito tradicional e encontrar novos mercados. Na verdade, o Dubai já tem vários investimentos em Luanda e uma sua empresa tomou agora conta do Porto de Luanda e na Arábia Saudita, Luanda abriu agora uma Embaixada, o que revela bem o interesse no reino. Por outro lado, como se sabe, o Dubai é um centro financeiro internacional de grande nomeada e por onde passou variada movimentação financeira angolana, bem como foi utilizado nos esquemas de fuga ao fisco no comércio de diamantes. Alegadamente, ao contrário do que tem sido a sua prática, o Dubai estará a colaborar com os pedidos de auxílio judiciário angolanos, representando um exemplo típico do novo eixo geopolítico que estamos a descrever, países com potencial de investimento e de colaboração judicial na luta contra corrupção.

            Sumariamente, concluímos que uma nova aproximação geopolítica angolana se centra nos países da Europa Ocidental e do Golfo Pérsico. Mas não se fica por aqui.

4-O potencial da Índia

            A quantidade de comércio entre a África Subsaariana e a Índia tem crescido de forma consistente, e hoje a Índia é um parceiro comercial fundamental de África. Relativamente a Angola, o país é hoje o terceiro exportador na África subsaariana mais importante para a Índia, quando em 2005 não tinha relevância. Em 2017, o Embaixador da Índia emitiu um comunicado no qual destacou: “O comércio entre Angola e a Índia aumentou 100% para US $ 4,5 biliões em 2017, (…) No final de julho, à margem da 10ª cimeira dos BRICS, em Joanesburgo, o presidente de Angola, João Lourenço, reuniu-se com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e os dois reafirmaram a necessidade de aumentar o comércio e a cooperação em áreas como energia, agricultura, alimentos e processamento farmacêutico.”. Há medida que a Índia vai crescendo e se tornando um ator muito importante a nível mundial, é normal que Angola olhe para este país com uma nova visão. Trata-se de um mercado milionário para onde uma imensidão das exportações angolanas pode chegar.

5-Estados Unidos da América. The ultimate prize

            A relação entre Angola e os Estados Unidos tem sido ambígua. Na verdade, mesmo nos tempos em que a administração norte-americana apoiava Jonas Savimbi e a UNITA, havia um relacionamento com Luanda ligado ao petróleo e à proteção das multinacionais americanas a operar em território dominado pelo governo do MPLA.

            Atualmente, os Estados Unidos representam tudo o que Angola deseja, o país do dólar com uma capacidade de investimento e inovação financeira invejável, com uma estrutura jurídica universalizante que permite lançar mão de múltiplos instrumentos legais por todo o mundo para perseguir as fortunas da corrupção. É também dos Estados Unidos que Angola necessita que sejam levantados os vários “sinais vermelhos” que foram sendo erguidos nos tempos de José Eduardo dos Santos e tornaram a vida financeira angolana muito mais difícil. Os Estados Unidos são o país chave para esta nova fase angolana de investimento externo e combate à corrupção, porque daqui pode vir os estímulos definitivos de avanço.

            De certa forma, João Lourenço teve azar em se deparar com Trump, quando necessitava dos EUA. É conhecido que Trump não tinha qualquer interesse em África, que apenas serviu para a sua mulher realizar uma viagem em trajes estilo colonial.  Pior teria sido impossível. Mas a indiferença americana não tem de ser um obstáculo a um maior empenho angolano nas relações com a superpotência. No início dos anos 1970, Anwar Sadat do Egipto também decidiu que se queria aproximar dos Estados Unidos. Estes ocupados com mil e uma crises, entre as quais se destacava o Vietname não deram qualquer atenção a Sadat, que não deixou de seguir a sua linha, expulsando os conselheiros soviéticos e iniciando uma aproximação aos norte-americanos.

Comparações e evoluções históricas à parte-Sadat acabou assassinado por ter assinado um acordo da paz com Israel sobre os auspícios americanos- o que parece mais lógico para Angola nesta fase é acentuar uma aproximação aos Estados Unidos, mesmo que estes não estejam atentos. E não estarão, pois entre a Covid- 19, a China e a Rússia, e múltiplas pequenas crises internas têm muito com que se ocupar. No entanto, o apoio efetivo e real dos EUA à nova política angolana é fundamental para que o país saia do marasmo e deixe de ter os condicionalismos financeiros externos, portanto, uma vigorosa aproximação à administração norte-americana seria aconselhável por parte de Angola, apesar da desconfiança mútua que existe.

6-Portugal é diferente

            A propósito da visita de Pedro Sanchez, primeiro-ministro espanhol, a Angola surgiu algumas críticas ao governo português, acusando-o de inação e de estar a ser ultrapassado por Espanha. Isto é um disparate. Nem Portugal pode pensar ter o monopólio das relações com Angola, nem sequer há qualquer perigo nas relações luso-angolanas. Portugal é sempre um caso à parte, a sua influência vem menos do governo e mais do soft power, da ligação umbilical que se mantém entre os povos de ambos os países. Luanda continua a parar quando o Sporting ganha o campeonato ou o Benfica tem um jogo muito importante, o destino preferido da maior parte dos angolanos é Portugal, as relações pessoais fáceis estabelecem-se entre portugueses e angolanos. Os empresários portugueses olham sempre para Angola como uma possibilidade de expansão dos seus negócios. As relações entre Angola e Portugal têm subjacente um entrosamento entre os povos antes da intervenção dos governos.

            A nível oficial o governo português é geralmente acolhedor em relação a Angola. Em 2005 acolheu os desejos de investimento angolano, atualmente, acedeu aos pedidos de cooperação judicial de Angola relativamente a Isabel dos Santos, como antes acabou por enviar o processo de Manuel Vicente para Angola após grande pressão de Luanda. Digamos que há uma porosidade manifesta da posição portuguesa, adaptando-se com facilidade às posições e necessidades de Luanda. Esta posição aliada ao interesse das elites angolanas em Portugal, tem acabado por consolidar uma boa relação entre os dois países, apesar de um ou outro solavanco. É evidente que após o 25 de Abril de 1974, Portugal desinteressou-se de África, fazendo como sua prioridade número um a adesão à Europa e o tornar-se um país moderno ocidental. Este projeto está um pouco enrodilhado desde 2000, mas não levou Portugal ainda a uma revisão do seu foco europeu, apenas o obrigou a um olhar mais prolongado para África, depois de décadas de desinteresse. Talvez exista um momento em que Portugal queira centrar a sua política externa nos países lusófonos, mas esta não é a altura, como não é para Angola, que quer abraçar outras fonias, como a anglófona e francófona, portanto, o melhor que os governos podem fazer é facilitar o máximo a vida aos seus povos que desejem trabalhar em comum e apoiar mutuamente as solicitações de cada uma das partes, mas pouco mais.

Conclusão

O sumário da nova posição geopolítica angolana é que Angola aposta nos vetores ligados ao investimento externo e combate contra a corrupção, assumindo relevância na política externa parcerias com a Europa Ocidental, Espanha, França, Itália, Alemanha, Reino Unido, com o Golfo Pérsico, Emirados e Dubai, e com a Índia. Ao mesmo tempo, antecipa-se um reforço das relações com os Estados Unidos. Portugal terá sempre um lugar à parte.


Bibliografia utilizada

-Banco Nacional de Angola-Estatísticas- www.bna.ao

-Douglas Wheeler e René Pélissier, História de Angola, 2011

-Ian Taylor, India’s rise in Africa, International Affairs, 2012

-José Milhazes, Angola – O Princípio do Fim da União Soviética, 2009

-Robert Cooper, The Ambassadors: Thinking about Diplomacy from Machiavelli to Modern Times, 2021

-Rui Verde, Angola at the Crossroads. Between Kleptocracy and Development, 2021

-Saudi Vision 2030- https://www.vision2030.gov.sa/en

-Tom Burgis, The Looting Machine. Warlords, Tycoons, Smugglers and the Systematic Theft of Africa’s Wealth, 2015.

-Factos públicos e informativos retirados da Lusa, DW, Jornal de Negócios, Jornal de Angola, Angonotícias e Novo Jornal.