Angola 2025: sombras e esperanças económicas

1-O momento definidor de Angola

Angola encontra-se num momento particularmente turbulento. Na política, os sinais de instabilidade e incerteza abundam pela indefinição da sucessão de João Lourenço na liderança do MPLA e do país, e pela força renovada das oposições que se sentem a um passo de tomar o poder.

Na economia, há sinais mistos, apresentando-se a conjuntura pessimista, mas havendo a concretização de projetos infraestruturais de relevo, que procuram contrabalançar a negatividade conjuntural, e na ordem social, a sensação de anarquia e permanente descontentamento é a predominante.

Esta análise reporta-se ao aspeto económico que desde 2015 ensombra Angola, não tendo o governo de João Lourenço, no poder desde 2017, sido capaz de inverter uma trajetória de desconforto económico, apesar das várias iniciativas estruturantes tomadas e algum apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI), bem como da abertura ao mundo que promoveu.

2- O falhanço da política económico-financeira conjuntural

Angola está num tempo decisivo da sua trajetória económica, marcado por uma conjugação entre crescimento económico, tentativas de reformas estruturais e investimentos estratégicos que visavam transformar o país de forma sustentável e inclusiva, mas, também, com números desanimadores em termos de inflação, desemprego e índices de pobreza. A inflação em julho deste ano situava-se ainda nos 19, 48%, o desemprego em 28, 8% e o índice de pobreza monetária nos 40,6%[1].

Em 2024, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 4,4%, impulsionado por uma recuperação vigorosa da produção petrolífera — que voltou a ultrapassar os 1,2 milhões de barris por dia — e pela revitalização do setor não petrolífero, com destaque para a agricultura, construção civil e comércio. Esta dinâmica de diversificação, há muito ambicionada, pareceu ganhar corpo, refletindo-se na acumulação de reservas internacionais que atingiram 15,8 mil milhões de dólares, o valor mais elevado desde 2013, e num saldo positivo da balança corrente de 5,4% do PIB, reforçando a resiliência externa do país[2].

Contudo, o primeiro semestre de 2025 trouxe más notícias e interrompeu esta curta recuperação. A queda de cerca de 18% nas receitas petrolíferas, provocada por uma descida abrupta do preço do barril Brent para níveis abaixo dos 70 dólares, combinada com o aperto nas condições de financiamento externo — agravado pela subida das taxas de juro nos mercados internacionais — pressionaram fortemente as contas públicas, e fizeram reduzir as perspetivas de crescimento para uns meros 2.1%, número que não acompanha sequer o crescimento populacional (3,05%)[3], o que volta a demonstrar a excessiva dependência do petróleo, apesar das tentativas de diversificação.

O défice fiscal projetado para 2025 é de 2,8% do PIB, revertendo a tendência de equilíbrio observada em 2023. A inflação, embora em trajetória descendente, ainda se mantém acima dos 12%, exigindo prudência na condução da política monetária por parte do Banco Nacional de Angola (BNA), que manteve a taxa de juro de referência nos 17%[4].

O Fundo Monetário Internacional (FMI), na sua última missão ao país, reconheceu que a capacidade de reembolso da dívida externa angolana permanece adequada, mas alertou para riscos crescentes, sobretudo num cenário de persistente instabilidade nos preços do petróleo e dificuldades operacionais na produção. A dívida pública total ronda os 66% do PIB, com uma exposição significativa a credores multilaterais e bilaterais, incluindo a China, que detém cerca de 40% da dívida externa.

A fragilidade da economia e das finanças públicas é notória e tudo continua demasiado ligado ao preço do petróleo e ao serviço da dívida.

Apesar dos discursos políticos de reforma económica, o governo não conseguiu diversificar acentuadamente a economia, nem confrontou a questão da dívida chinesa, limitando-se a pagá-la com sacrifício do bem-estar do país.

A receita que o FMI apresenta não muda e não resolve nada. O Fundo continua a apostar na redução da despesa pública e critica o adiamento da reforma dos subsídios aos combustíveis para 2028 — uma medida que representa cerca de 2,5% do PIB em encargos anuais.  Defende que esta reforma, embora politicamente sensível, é crucial para libertar espaço fiscal e deverá ser acompanhada por mecanismos robustos de proteção social, como o reforço do programa Kwenda, que já abrange mais de 1 milhão de famílias em situação de vulnerabilidade.

Por fim, o FMI sublinha a importância de políticas cambiais flexíveis, com o câmbio a funcionar como amortecedor de choques externos. A política monetária deve manter-se cautelosa para sustentar a desinflação, enquanto a supervisão dos riscos sistémicos e o fortalecimento do quadro de estabilidade financeira são essenciais para garantir a solidez do sistema bancário, que apresenta uma taxa de crédito malparado inferior a 10%, abaixo da média regional[5].

Na verdade, estas receitas estão a ser tentadas com a supervisão do FMI desde 2019, e sem sucesso. A despesa pública real não é controlada devido aos mecanismos constitucionais e legais que permitem ao Presidente da República a decisão quase absoluta sobre os gastos públicos, tornando impossível uma efetiva racionalização da despesa do estado sem provocar embates com a figura presidencial. Portanto, a realidade é que a despesa pública continua descontrolada e dependente duma “canetada” do Presidente.

A dívida externa, onde a China representava um peso enorme, não foi renegociada, mas paga. Pode parecer uma opção sensata, mas não o é, atendendo ao custo de oportunidade enorme para um país com índices de pobreza e desemprego enormes. Primeiro, devia-se tratar o do emprego e do povo e só depois da dívida.

A completa flexibilização do câmbio do Kwanza foi desastrosa, levando à extinção da classe média e da quase totalidade do poder de compra dos angolanos, num país dependente de importações. Só os muito ricos sobreviveram com conforto[6].

Ao mesmo tempo, não foram criados mercados internos livres e eficientes, a burocracia e o clientelismo continuam a predominar, os tribunais são vistos como lentos e não necessariamente justos e nota-se uma grande falta de espírito empresarial em Angola.

Estes são os aspectos negativos, aqueles que poderemos chamar de política económica e financeira, e que clamam urgentemente por mudanças.

3-As realizações das políticas estruturantes

Há uma outra face a considerar, e que tem resultados positivos, e, espera-se, iguais consequências favoráveis; podemos chamá-la de políticas estruturantes. São temas essencialmente de médio e longo-prazo, cujos efeitos ainda não se sentem, mas permitem alguma esperança, acerca dos quais se dará de seguida, alguns exemplos avulsos, mas abrangentes.

No plano energético, Angola deu um passo histórico com a inauguração da Refinaria de Cabinda, um investimento multimilionário que marca uma viragem na capacidade de refinação nacional. Com uma produção inicial de 30 mil barris por dia e previsão de duplicação até 2026, esta infraestrutura reduz significativamente a dependência de combustíveis importados, que em 2023 representavam cerca de 80% do consumo interno[7].

Paralelamente, a exploração de novos blocos petrolíferos, como o Ndungu Early Production pela ENI, com uma produção estimada de 20 mil barris por dia, e o projeto Begónia da TotalEnergies, com início previsto para o segundo semestre de 2025, reforçam a confiança no potencial energético do país. As campanhas sísmicas da ExxonMobil na Bacia do Namibe, com investimentos superiores a 200 milhões de dólares, apontam para novas descobertas que poderão alterar o mapa energético nacional nos próximos anos[8].

No setor mineiro, Angola alcançou um feito notável ao concorrer com o Botswana como maior produtor de diamantes da África Austral, com uma produção anual superior a 10 milhões de quilates. As operações nas minas de Lulo e Catoca, bem como as novas concessões em Tchitengo e Luaxe, estão a dinamizar o setor. As negociações em curso com a De Beers, com vista ao Estado angolano tomar uma participação na companhia, visam consolidar a presença angolana no mercado global e garantir maior valorização dos seus recursos naturais, através de parcerias estratégicas e transferência de tecnologia[9].

A nível financeiro, a privatização parcial do Banco de Fomento Angola (BFA), através da maior Oferta Pública Inicial (IPO) da história da Bolsa de Dívida e Valores de Angola (BODIVA), representa um marco na abertura do mercado de capitais. Com uma valorização superior a 300 milhões de dólares, esta operação pode atrair investidores nacionais e estrangeiros, sinalizando confiança no sistema financeiro angolano[10].

No setor da saúde, nos últimos oito anos, Angola deu um pulo enorme em termos de saúde, resultante de enormes e visíveis investimentos. A mortalidade infantil caiu de 44 para 32 por 1.000 nados-vivos, a mortalidade de menores de cinco anos passou de 68 para 52 por 1.000 nados-vivos e a mortalidade materna de 239 para 170 por 100.000 nados-vivos.

A expansão do sistema de saúde foi visível. O Serviço Nacional de Saúde aumentou de 2.612 unidades sanitárias em 2017 para 5.958 em 2024, das quais 15 novos hospitais do nível terciário e centros ortopédicos reabilitados, dando prioridade aos cuidados de saúde primários com mais de 50% das novas unidades. O país aumentou em 46,1% a força de trabalho em saúde desde 2017 e iniciou um amplo projeto de especialização que visa formar até 2028 cerca de 38 mil quadros do setor, entre médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, com prioridade para a medicina geral e familiar, visando acelerar progressos no alcance da Cobertura Universal da Saúde. Igualmente, nos últimos oito anos, foram instalados 538 monitores de hemodiálise em 12 províncias, mais 20.224 camas hospitalares perfazendo hoje um total de 44.222 camas em todo o país, acrescentou-se 1409 camas nas UTI perfazendo hoje um total de 1609 camas em UTI, em todo o território nacional.

As inaugurações de hospitais modernos, por exemplo, em Cabinda, Cazenga e Viana, com capacidade combinada para mais de 1.200 camas e serviços especializados em pediatria, obstetrícia e cirurgia, reforçaram a capacidade do sistema nacional, além de muitos outros.[11]

Não quer dizer que não persista um sistema dual, em que as camadas dirigentes continuam a não confiar nos hospitais angolanos e prefiram ir para o estrangeiro, e que nos mesmos hospitais angolanos persistam as queixas de falta de material, de recursos humanos e de manutenção. No entanto, as infraestruturas aí estão, faltando a capacidade de organização e gestão, uma das falhas mais significativas da cultura da administração pública angolana.

Na educação, Angola apostou na formação superior com a criação de novas universidades e institutos, designadamente a Universidade Rainha Njinga Mbande e o Instituto Politécnico de Cacuaco. A expansão da Universidade Katyavala Bwila e a instalação de centros técnicos e laboratórios visam preparar os jovens para os desafios da inovação e da diversificação económica.[12]

Também na educação as lacunas ainda são grandes e o problema da gestão das organizações e da excessiva centralização das decisões aliadas à incompetência e nepotismo existe. Tal como na saúde, os passos de escala são evidentes, falta a capacidade de gestão e atenção ao detalhe.

Em termos de infraestrutura, o país investe na reabilitação de mais de 2.000 km de estradas, construção de pontes estratégicas como a de Cazombo sobre o rio Zambeze, e expansão das redes de água e energia, com destaque para o projeto de eletrificação rural que já beneficiou mais de 500 mil habitantes. Em Luanda, as obras de requalificação urbana em zonas como Sambizanga e Cazenga têm impacto direto na qualidade de vida das populações, com melhorias no saneamento, iluminação pública e espaços verdes.

O Corredor do Lobito, que liga Angola à República Democrática do Congo e à Zâmbia, pode ser um exemplo de integração regional e promoção do comércio transfronteiriço, com potencial para movimentar mais de 1 milhão de toneladas de carga por ano.

4-A extrema relevância simbólica da privatização da Sonangol

A inclusão da Sonangol no Programa de Privatizações (Propriv), com uma primeira tranche prevista para 2026, poderá trazer maior eficiência e transparência à gestão dos recursos petrolíferos, promovendo uma cultura empresarial mais competitiva.

Temos franca esperança no efeito simbólico desta privatização.

A privatização de 30% da Sonangol representa um marco estratégico para a economia angolana, simbolizando a transição para um modelo mais competitivo, transparente e orientado para o mercado. Ao abrir parte do capital da maior empresa pública do país, Angola sinaliza ao mundo o seu compromisso com a modernização da gestão dos recursos petrolíferos e com a criação de um ambiente económico mais dinâmico. Esta operação, inserida no Programa de Privatizações (PROPRIV), tem o potencial de atrair investidores nacionais e estrangeiros, trazendo não apenas capital, mas também conhecimento técnico, inovação e acesso a redes globais. A entrada de novos acionistas impõe padrões mais exigentes de governança corporativa, promovendo melhores práticas de gestão, maior eficiência operacional e prestação de contas.

Além disso, a Sonangol torna-se um farol do desenvolvimento económico, ao demonstrar que é possível transformar uma empresa estatal num agente competitivo e alinhado com os desafios da transição energética e da diversificação económica. Esta privatização não é apenas uma operação financeira — será um símbolo de confiança no futuro de Angola, na capacidade das suas instituições e na abertura do país ao investimento e à cooperação internacional.

***

Estas são algumas das políticas estruturantes em curso, que a seu tempo, e se forem bem conduzidas, poderão paulatinamente retirar Angola do sufoco económico em que se encontra, que as políticas do FMI e da equipa económico-financeira do executivo não têm conseguido resolver.

5-O futuro depende da estabilização social e da boa governação

A estabilização social é, talvez, o maior desafio transversal. O desemprego juvenil continua elevado, rondando os 32%, o que exige políticas mais eficazes de integração no mercado de trabalho. Os investimentos em infraestruturas, energia, mineração e educação têm potencial para gerar milhares de postos de trabalho, mas é necessário garantir que esses empregos sejam sustentáveis e distribuídos de forma equitativa.

Sem coesão social e boa governação, qualquer avanço económico permanece vulnerável e instável. Para que Angola construa uma economia verdadeiramente diversificada, resiliente e inclusiva, é essencial ir além dos indicadores macroeconómicos e garantir que todos os cidadãos tenham acesso equitativo à educação, à habitação, à água potável e à energia. No centro desta transformação está a necessidade de uma boa governação — uma governação tecnicamente competente, não clientelar, aberta à inovação e ao escrutínio público, e capaz de servir o povo com transparência e responsabilidade. O progresso sustentável não pode nascer de sistemas autoritários, fechados, moldados por interesses partidários ou familiares. Pelo contrário, exige instituições sólidas, lideranças corajosas e uma visão estratégica que coloque o cidadão no centro das decisões. O futuro de Angola dependerá da capacidade de romper com velhos vícios, enfrentar os desafios com realismo e determinação, e cultivar uma cultura política que valorize o mérito, a participação democrática e a justiça social. Só assim será possível consolidar os alicerces de um desenvolvimento duradouro e verdadeiramente transformador.


[1] Estatísticas oficiais- https://www.ine.gov.ao/

[2] FMI, setembro 2025- https://www.imf.org/en/News/Articles/2025/09/05/pr-25288-angola-imf-executive-board-concludes-2025-post-financing-assessment?cid=em-COM-123-50598

[3] Worldometer. (2025). Demografia de Angola 2025. https://www.worldometers.info/pt/demografia/angola-demografia/

[4] Idem FMI, setembro 2025.

[5] Ibidem

[6] Rui Verde, CEDESA, 2025- https://www.cedesa.pt/2025/07/12/fmi-em-angola-uma-historia-de-falhancos/

[7] RFI. (2025, setembro 1). Angola: Inaugurada primeira fase da Refinaria de Cabinda. RFI África Lusófona. https://www.rfi.fr/pt/áfrica-lusófona/20250901-angola-inaugurada-primeira-fase-da-refinaria-de-cabinda

[8] NS Energy. (2023, setembro 27). Ndungu Early Production Development Project, Angola. https://www.nsenergybusiness.com/projects/ndungu-early-production-development-angola

[9] Gira Notícias. (2025, janeiro 1). Produção de diamantes superior ao comercializado. https://www.giranoticias.com/economia/2025/01/21691-producao-de-diamantes-superior-ao-comercializado.html

[10] Banco de Fomento Angola. (2025). Oferta Pública de Venda – BFA. https://www.bfa.ao/pt/relacoes-com-investidores/investimento/oferta-publica-de-venda-bfa

[11] Ministério da Saúde de Angola. (2022, abril 21). Inaugurado Hospital Geral de Cabinda. https://minsa.gov.ao/web/noticias/inaugurado-hospital-geral-de-cabinda

[12] Universidade Rainha Njinga a Mbande. (2025). Sobre a URNM – Ensino, investigação e inovação. https://uninjingambande.ed.ao

FMI em Angola: uma história de falhanços

Rui Verde

Nota prévia:

O CEDESA não pretende aprovar nem desaprovar as opiniões expressas neste texto. Essas opiniões devem ser consideradas como pertencentes ao autor.

Angola aderiu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em 1989. Desde essa data seguiram-se vários programas de apoio ao país, manifestados de formas diferentes. O traço comum é que todos redundaram num falhanço e não ajudaram ao desenvolvimento sustentado de Angola.

A questão não é que o FMI não tenha excelentes técnicos, plenos de boa-vontade e consciência dos problemas. Trata-se dum problema técnico-metodológico simples. O paradigma que o FMI segue para as suas intervenções não tem nada a ver com África. Parte de modelos teóricos de funcionamento duma economia de mercado avançada no Ocidente que não tem em conta a história, o contexto institucional, o conhecimento das comunidades locais e todo o enquadramento sociopolítico de África. Erradamente, o FMI parte de hipóteses elaboradas para uma economia europeia e não para o Sul periférico, e o que vai testar são respostas comportamentais a intervenções pré-definidas que nada têm a ver com a realidade local concreta[1]. Esta falha técnico-metodológica está na base do insucesso do FMI em África.

AS INTERVENÇÕES DO FMI EM ANGOLA DURANTE OS ANOS 1990

A parir da década de 1990, Angola manteve uma relação conturbada e ambivalente com o FMI. Na altura, o país encontrava-se mergulhado numa prolongada guerra civil e numa transição económica hesitante, fatores que dificultaram a implementação de políticas de ajustamento estrutural sugeridas pelo FMI.

Ao longo dos anos 90, foram realizados vários Programas de Monitorização (Staff-Monitored Programs), que não envolviam desembolso financeiro, mas procuravam avaliar a capacidade do governo angolano em aplicar reformas económicas fundamentais. No entanto, esses programas revelaram-se de eficácia limitada, refletindo falhas institucionais, resistência política e falta de compromisso com as exigências técnicas do FMI, ao mesmo tempo a incapacidade do próprio FMI de se inserir nas dinâmicas próprias de Angola. Essencialmente, esta medidas foram um diálogo de surdos[2]. Como Ennes Ferreira escreveu em 2005: A história das relações entre o Governo Angolano e o FMI tem sido, desde então, um “remake” sucessivo de acusações e contra-acusações sem quaisquer resultados práticos em termos da assinatura de um programa de estabilização e ajustamento[3]

O FMI propôs medidas que incluíam a privatização de empresas estatais, cortes na despesa pública e liberalizações cambial e comercial — propostas que encontraram forte oposição por parte das autoridades angolanas, receosas de perder controlo político e económico num contexto de instabilidade interna.

A recusa em aceitar essas condicionalidades levou a crises sucessivas nas negociações com o FMI. Como relata um académico houve uma permanente “crise nas relações que estavam a ser estabelecidas entre o Governo Angolano e o FMI para um acordo monitorado[4]”. O país não conseguia cumprir os critérios exigidos para desbloquear financiamentos, o que o colocava numa posição de isolamento técnico e financeiro relativamente à comunidade internacional. A ajuda pública ao desenvolvimento (APD) foi parcialmente suspensa e, embora o FMI mantivesse o seu papel consultivo, o impacto dos programas foi superficial.

Na época, FMI atuou como um mero técnico aplicador de um modelo desfasado da realidade angolana, e não como um catalisador de reformas profundas. Nas suas análises técnicas, falhava por desconsiderar a realidade institucional do país, marcada por baixa capacidade administrativa, forte intervenção estatal e níveis elevados de corrupção[5]. Nem sequer as estatísticas eram fiáveis, sendo impossível construir modelos econométricos realistas e adequados, por isso, uma boa parte das análises do FMI não passavam de obras de ficção.

Assim, entre 1989 e 2008, especialmente durante os anos 1990, as relações entre Angola e o FMI foram marcadas por aproximações frustradas e tentativas falhadas de alinhamento. Estas iniciativas revelaram as limitações de aplicar modelos de ajustamento económico convencionais, como os preparados pelo FMI, em contextos de fragilidade institucional e conflito armado.

Só após o fim da guerra civil e diante de crises económicas mais acentuadas, como a queda dos preços do petróleo em 2008, Angola começaria a abrir-se a acordos de financiamento direto — iniciando uma nova fase de relação com o FMI.

A INTERVENÇÃO DE 2009

A intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Angola em 2009, através de um acordo Stand-By, surgiu como resposta à crise económica provocada pela queda abrupta do preço do petróleo nos mercados internacionais. O país, altamente dependente das receitas petrolíferas, enfrentava desequilíbrios macroeconómicos severos, incluindo défices orçamentais, perda de reservas internacionais e dificuldades cambiais. O acordo, no valor de 1,4 mil milhões de dólares, tinha como objetivos restaurar a estabilidade macroeconómica, reforçar a credibilidade externa e promover reformas estruturais nas finanças públicas, no sistema cambial e na gestão da dívida[6].

Inicialmente, o programa foi bem recebido. O governo angolano comprometeu-se com medidas de austeridade, maior transparência fiscal e auditorias externas às principais instituições financeiras, como o Ministério das Finanças, o Banco Nacional de Angola e a Sonangol. O FMI chegou a reconhecer progressos, como a redução da inflação e o aumento das reservas internacionais líquidas. No entanto, apesar dos avanços técnicos, o acordo não produziu os resultados esperados a médio prazo.

Uma das principais razões para o insucesso foi a falta de disciplina orçamental e a persistência de práticas opacas na gestão das receitas petrolíferas. A Sonangol, por exemplo, continuou a realizar despesas em nome do Estado sem justificação clara, o que comprometia a credibilidade das contas públicas. Além disso, o investimento público não foi canalizado para diversificar a economia, mantendo Angola vulnerável aos choques externos. A ausência de políticas eficazes para substituir importações por produção interna impediu a criação de uma base económica sólida e resiliente.

Outro fator crítico foi o regresso aos hábitos antigos após o alívio da crise. O regime de José Eduardo dos Santos, em vez de consolidar as reformas, retomou práticas de saque dos cofres públicos e favorecimento de elites políticas e militares[7].

O FMI, por sua vez, falhou na monitorização rigorosa do processo, permitindo que o acordo servisse mais como um mecanismo de sobrevivência política do regime do que como um verdadeiro catalisador de transformação económica. E mais uma vez aplicou uma cartilha que pouco tinha de real em relação à economia angolana, não abordando as questões essenciais, como a dependência do petróleo, o deep state construído à volta da Sonangol, a fragilidade das instituições, a inexistência de efetivos mercados livres, a falta de fiabilidade estatística. O mundo refletido nos relatórios técnicos do FMI nunca é o mundo da economia real angolana.

Em suma, embora o acordo Stand-By de 2009 tenha oferecido uma oportunidade concreta para reformar a economia angolana, a combinação de falta de vontade política, gestão ineficiente, e monitorização insuficiente por parte do FMI acabou por minar os seus objetivos. O país voltou a enfrentar dificuldades semelhantes anos depois, revelando que sem reformas estruturais profundas e compromisso político genuíno, os programas de assistência financeira têm impacto limitado.

O FMI EM ANGOLA COM JOÃO LOURENÇO

A intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Angola em 2021 marcou o encerramento do Programa de Financiamento Ampliado (EFF), iniciado em 2018 com um pacote total de 4,5 mil milhões de dólares. Embora o programa tenha sido elogiado pelo FMI por promover maior disciplina fiscal, estabilização cambial e avanços na governação económica, os problemas estruturais que há décadas limitam o desenvolvimento do país permaneceram essencialmente intactos, após o encerramento do programa.

Durante o período do programa, Angola conseguiu reduzir significativamente o rácio da dívida pública em relação ao PIB, beneficiando da subida dos preços do petróleo e de uma política orçamental mais prudente. Contudo, a dívida continuou uma ameaça, pois o mesmo FMI aconselhou uma imediata liberalização do câmbio que teve como resultado a desvalorização em flecha do mesmo face ao dólar e por isso, o posterior aumento nominal dos rácios da dívida pública.  No combate à inflação, o mesmo aconteceu, as medidas restritivas do Banco Nacional de Angola, foram muito inconstantes e perturbadas pela mesma flexibilização cambial. Muitas das reformas no setor financeiro, incluindo a recapitalização de bancos públicos e a modernização do quadro regulatório, não saíram do quadro legal. As melhorias técnicas não se traduziram numa transformação estrutural da economia. Os velhos problemas: excessiva dependência do preço do petróleo, estado disfuncional, mercados frágeis, instituições inoperantes, medo do risco empresarial, continuam a assoberbar a economia angolana. Na verdade, a dependência excessiva do petróleo manteve-se como o principal obstáculo. Apesar dos esforços para diversificar a economia, o setor não petrolífero continuou frágil e pouco competitivo. A produção interna não substituiu as importações, e o investimento privado permaneceu tímido, em parte devido à insegurança jurídica, à burocracia e à corrupção persistente. O FMI reconheceu que, sem reformas mais profundas, Angola continuaria vulnerável a choques externos e com crescimento limitado.

Além disso, o impacto social das medidas de austeridade foi significativo. A eliminação gradual dos subsídios aos combustíveis e o aumento de tarifas públicas, como água e eletricidade, geraram contestação popular e agravaram as dificuldades das famílias mais pobres. Analistas alertaram que o programa, embora tecnicamente bem-sucedido, falhou em promover inclusão social e desenvolvimento sustentável, servindo mais como mecanismo de estabilização do que como motor de transformação económica[8].

Em suma, a intervenção do FMI em 2021 ajudou Angola a evitar uma crise financeira imediata, mas não resolveu os problemas estruturais que impedem o país de alcançar um crescimento inclusivo e resiliente. A falta de diversificação, a fragilidade institucional e a ausência de uma estratégia clara para combater a pobreza e a desigualdade continuam a limitar o potencial económico angolano.

Exemplo claro dos erros presentes do FMI é a insistência na retirada dos subsídios aos combustíveis. Tal medida parece ter uma racionalidade financeira de poupança da despesa pública. Muitos economistas a apoiam. Contudo, a realidade é que piora significativamente o padrão de vida do povo, que já é frágil, tem consequências inflacionistas em cascata, e não tem muito sentido, quando o mercado de distribuição dos combustíveis não funciona em concorrência, mas tem uma estrutura de domínio oligopolista. E ao mesmo tempo, o Estado mantém gastos de funcionamento promovidos pelas elites do regime que são insustentáveis e absurdos[9]. Isto cria desequilíbrios fundamentais no sistema político-económico angolano de que o FMI não se apercebe ou não quer perceber.

CONCLUSÕES

O insucesso dos programas do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Angola tem raízes profundas que vão além de questões meramente económicas — envolvem dimensões históricas, políticas, epistemológicas e institucionais. Ao longo das últimas décadas, os programas do FMI foram concebidos com base em modelos macroeconómicos padronizados, centrados na estabilidade fiscal e na liberalização dos mercados, frequentemente ignorando os contextos singulares das economias africanas. Essa abordagem universalista, aplicada a países marcados por uma história de colonização, exploração e fragilidade institucional, revela-se não só inadequada, mas contraproducente em muitos casos.

A imposição de medidas de austeridade como condição para financiamento externo tornou-se uma constante. O governo é instado a cortar gastos públicos, reduzir subsídios e privatizar empresas estatais, numa lógica de contenção orçamental que privilegia números e desvaloriza o impacto social. O resultado é, muitas vezes, o agravamento das desigualdades, o colapso de serviços essenciais como saúde e educação, e a paralisação de investimentos em infraestruturas. Em Angola tais medidas resultaram numa contração económica que perpetua a dependência externa e mina os esforços de diversificação produtiva.

Além disso, o FMI falha ao subestimar a complexidade das instituições africanas. A ausência de capacidades administrativas, a prevalência de corrupção sistémica e a captura do Estado por elites políticas são frequentemente ignoradas ou negligenciadas nos diagnósticos institucionais. A própria escolha dos interlocutores locais reforça estruturas de poder que resistem à reforma, e em alguns casos, como se viu em Angola em 2009, os acordos do FMI acabaram por legitimar regimes autoritários sem exigir transformações profundas em matéria de governação e transparência.

Outro fator recorrente é a espiral de endividamento. Muitos países africanos recorrem ao FMI para refinanciar dívidas anteriores, sem resolver os problemas estruturais que causaram o endividamento inicial. A dependência de exportações de matérias-primas, a fraca industrialização e a volatilidade dos preços internacionais tornam as economias africanas vulneráveis a choques externos, enquanto os programas do FMI raramente incorporam estratégias de desenvolvimento económico de longo prazo.

Como se escreveu anteriormente: “O problema do modelo do FMI não está na teoria. O problema do modelo do FMI está na realidade. Angola não é uma economia livre de mercado. Angola é uma economia oligopolista subdesenvolvida com forte intervenção estatal, com uma enorme pobreza e uma distorção estrutural introduzida pela corrupção. Consequentemente, não se pode aplicar o modelo simples da oferta e da procura de mercado antes de reformar profundamente a economia. Isto quer dizer o seguinte: primeiro, tem de se criar uma economia livre e competitiva em Angola; só depois podem ser aplicadas as chamadas políticas de estabilização macroeconómica propostas pelo FMI (que se resumem a aumentos e despedimentos).

Assim, o apoio do FMI, do Banco Mundial ou de qualquer outra instituição deve ser utilizado para criar uma nova economia, não para aplicar receitas de um modelo a outro modelo completamente diferente. Utilizando uma metáfora médica, estas políticas do FMI para Angola são como cortar a perna a um doente que precisa de um coração novo. O que tem de ser estudado e implementado é um movimento de transição da economia do modelo oligárquico fechado que temos agora para o modelo liberal de mercado.[10]


[1] Para maiores desenvolvimentos ver Devida Dutt, Carolina Alves, Surbhi Kesar e Ingrid Kvangraven, Decolonizing  Economics, Polity, 2025, p. 97 e ss.

[2] Cfr. José Alberto Mafo, As medidas de reformas estruturais em Angola no âmbito

do acordo stand-by com o Fundo Monetário Internacional, ISEG, 2014, https://repositorio.ulisboa.pt/bitstream/10400.5/8182/1/DM-JAM-2014.pdf

[3] Manuel Ennes Ferreira, Realeconomie e realpolitik nos recursos naturais em  Angola.

O Petróleo e o Poder. 2005, p. 83.

http://www.adelinotorres.com/africa/M%20Ennes%20FerreiraRealeconomie%20e%20

 Realpolitik%20nos%20Recursos%20Naturais%20de%20Angola.pdf

[4] Ver nota 2.

[5] Edgar Silva Afonso, Organizações internacionais e modelos de

desenvolvimento: o FMI em Angola de 2000 a 2012, U. Évora, 2014, https://dspace.uevora.pt/rdpc/bitstream/10174/12179/1/Mestrado%20-%20Edgar%20Afonso.pdf

[6] FMI, 2009, https://www.imf.org/external/pubs/ft/scr/2009/cr09320.pdf

[7] Rui Verde, Dos Santos tem medo do FMI, 2016, MakaAngola, https://www.makaangola.org/2016/07/dos-santos-tem-medo-do-fmi/

[8] Rui Verde, FMI em Angola. Os perigos das políticas erradas, MakaAngola, https://www.makaangola.org/2018/06/fmi-em-angola-os-perigos-das-politicas-erradas/

[9] Ver os exemplos de desperdício no governo do Cuando-Cubango descritos por Rafael Marques, Os consumíveis do saque no Kuando-Kubango, MakaAngola, 2025, https://www.makaangola.org/2025/02/os-consumiveis-do-saque-no-kuando-kubango/

[10] Ver nota 7.

IV Congresso Internacional de Angolanística

18 de junho de 2025

Biblioteca Nacional de Lisboa

O IV Congresso Internacional de Angolanística foi um sucesso académico com mais de 30 Comunicações de estudiosos de Angola provenientes de todo o mundo. É um certame único neste âmbito de reunião transversal e plural daqueles que investigam cientificamente Angola.

As Comunicações foram extremamente variadas e estimulantes, desde questões constitucionais e de desenvolvimento até ao uso do TikTok nas línguas nacionais angolanas. Esta diversidade de temas e de abordagens deve ser entendia como um contributo para a competição de ideias livre, que é a génese do desenvolvimento de um país.

O IV Congresso Internacional de Angolanística é um espaço vital para a promoção da pluralidade de ideias e a convivência respeitosa entre perspetivas diversas.

Num mundo em que o debate público tantas vezes se vê ameaçado por polarizações e conflitos, a realização de encontros como este reforça a importância de escutar, dialogar e aprender. O Congresso cria um ambiente onde a troca de saberes deve ocorrer com base na empatia e na razão, valorizando o pensamento crítico e rejeitando qualquer forma de abuso verbal ou coação.

A possibilidade de discutir temas relevantes sobre a história, a cultura e o futuro de Angola num ambiente livre de intimidações incentiva a construção de uma sociedade mais justa e democrática. Aqui, o conhecimento não se impõe, partilha-se; e é exatamente essa partilha que alimenta o progresso coletivo.

A concorrência de ideias distintas — não o domínio de uma só voz — é o motor do progresso. A imposição de diretivas únicas e a tentativa de uniformizar pensamentos apenas produz estagnação e ressentimento.

O Congresso, ao contrário, estimula a convivência das diferenças e fomenta a criação de consensos através do entendimento, e não da força.

Neste contexto, o IV Congresso de Angolanística não é apenas um evento académico, mas um gesto político e cultural simbólico: demonstra que a Angola do futuro se constrói com mais escuta, mais reflexão e mais diversidade. Cultivar a arte do diálogo em paz é, afinal, um investimento no próprio futuro do país.

Angola: A retirada dos subsídios aos combustíveis e a transformação da legitimidade política

Rui Verde

  1. A diminuição das receitas petrolíferas no OGE e a necessidade de financiamento do Estado

Seguindo as orientações do Fundo Monetário Internacional (FMI), o governo angolano está a retirar gradualmente os subsídios aos combustíveis. O FMI defende essa posição porque acredita que essa medida vai gerar poupanças significativas para o governo e melhorar a sustentabilidade fiscal do Estado, uma vez que os subsídios aos combustíveis representam um custo elevado para o Orçamento Geral do Estado (OGE), tendo chegado a 9,1 biliões de kwanzas entre 2021 e 2024. Além disso, há preocupações sobre fugas de combustível para países vizinhos e distorções no mercado interno[1].

Em recente entrevista à LUSA, a ministra das finanças angolana, Vera Daves, confirmou que serão feitos mais cortes nos subsídios aos combustíveis este ano, assumindo que esse é um “caminho que deve continuar”, embora a velocidade dependa de diversos fatores[2].

A verdade é que o OGE de Angola enfrenta desafios cada vez maiores devido à sua dependência histórica das receitas petrolíferas, um fator que compromete a estabilidade financeira do país. Durante décadas, o petróleo representou a principal fonte de arrecadação, financiando investimentos em infraestrutura, saúde, educação e outros setores fundamentais. No entanto, a volatilidade dos preços internacionais do petróleo tornou evidente a necessidade de diversificar as receitas públicas, sobretudo a partir de 2014.

Por isso, nos últimos anos, o governo angolano tem adotado medidas de reforma tributária e fiscal, buscando fortalecer a arrecadação não petrolífera. A criação de impostos específicos, a modernização dos sistemas de cobrança e os incentivos à formalização de empresas refletiram uma tentativa de reduzir a dependência do setor energético. Apesar desses esforços, o déficit orçamental e a pressão sobre as contas públicas continuam a ser desafios preocupantes, como demonstram os atrasos que por vezes acontecem no pagamento dos salários dos trabalhadores do Estado, e os atrasos generalizados no pagamento de fornecimentos e serviços[3].

O resultado prático é que o Estado necessita de cobrar impostos à população e cortar gastos irracionais do ponto de vista económico[4], como é o caso do subsídio aos combustíveis. Este facto modifica a relação pré-existente entre Estado e povo. No passado, o Estado não precisava do povo para se financiar, agora precisa.

 Na realidade, já há em Angola, cerca de 5.205.380 contribuintes individuais e 320.440 contribuintes individuais com atividade comercial, tal significando que mais de 5,5 milhões de pessoas estão registadas para pagar impostos no país[5]. Se é um número assinalável, também é verdade que considerando que existem cerca de 14 milhões de pessoas com potencial para ser contribuintes, havendo ainda uma grande margem para alargar a base tributária. Em simultâneo, em 2022, Angola arrecadou 4.638 mil milhões de kwanzas em impostos não petrolíferos. A província de Luanda foi responsável por 92,2% dessa receita. No primeiro trimestre de 2023, a arrecadação não petrolífera foi de 976 mil milhões de kwanzas, um crescimento de 13% em relação ao mesmo período do ano anterior.[6][7] O ponto essencial é que a arrecadação não petrolífera em Angola tem mostrado um crescimento significativo nos últimos anos[8].

2-A necessidade de impostos e cortes de subsídios e a mudança do paradigma da legitimidade política

A legitimidade política do sistema de governo angolano residia desde 2002 em dois fatores, a vitória na guerra civil e o acesso direto aos proventos do petróleo.[9] Em termos reais, o povo não fazia parte da equação da legitimação do poder. José Eduardo dos Santos podia governar sem o povo e sem precisar dele. Bastava-lhe a vitória militar e o dinheiro do petróleo. As legitimações formais do poder, como as eleições de 2008 ou a Constituição de 2010 eram isso mesmo, meros atos validatórios duma realidade anterior que se impunha.

Juridicamente, o governo assentava na soberania popular e na Constituição, e todos o atos jurídico-formais iam sendo tomados ao longo do tempo com válido fundamento legal: eleições, Constituição, legislação, votações no parlamento, etc. Contudo, havia a noção que o sistema constitucional e de governo estava assente num pacto anterior em que a vitória na guerra e o acesso aos fundos do petróleo davam o poder ao governo que em troca garantia o desenvolvimento do país e a evolução da sociedade. É neste contexto que se percebe a racionalidade política do subsídio aos combustíveis.

A questão é que desde 2014, quando o preço do petróleo desceu enormemente e Angola entrou em quase dez anos de crise, que esta legitimidade política foi destruída. Por um lado, a geração e as recordações da guerra foram diminuindo. A larga percentagem da população angolana nasceu depois do final da guerra civil (2002). Cerca de 65% dos angolanos (mais de 2/3) têm menos de 25 anos, o que quer dizer que 21 milhões de angolanos estão abaixo dessa faixa etária. Tal significa que a legitimidade da guerra já lhes diz pouco ou nada, não reconhecendo ao vitorioso qualquer direito ao exercício do poder.

A isto acresce que a necessidade de ir buscar receitas ao povo e retirar-lhe subsídios muda o pacto social de 2002, se o poder político precisa do povo, então o povo vai participar no poder político. Não há volta a dar a esta equação que se tem afirmado ao longo da história.

O pagamento de impostos tem sido historicamente um fator determinante na formação de sistemas políticos e na consolidação de direitos democráticos. Na Inglaterra medieval, a necessidade de arrecadação fiscal levou à criação de instituições como o Parlamento, onde os representantes da nobreza e dos burgueses discutiam os pedidos do rei de dinheiro para pagar casamentos reais ou guerras. A Magna Carta de 1215 foi um marco ao estabelecer que a tributação deveria contar com algum nível de consentimento dos súbditos, reforçando a ideia de que a autoridade governamental não poderia impor impostos arbitrários sem representação. Esse princípio evoluiu ao longo dos séculos, influenciando diretamente o desenvolvimento do parlamentarismo moderno[10].

No contexto da democracia, o conceito de “sem representação não há tributação”, sem representação” tornou-se central. A Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra consolidou o Parlamento como um órgão fundamental na governação, restringindo os poderes absolutos do monarca e reforçando o papel dos cidadãos na tomada de decisões fiscais. A ideia de que os impostos deveriam ser debatidos e legitimados por representantes eleitos ajudou a moldar sistemas democráticos na Europa e na América do Norte. À medida que as nações buscavam maior participação popular, o controlo sobre tributos tornou-se um mecanismo crucial para definir os direitos dos cidadãos e fortalecer a democracia representativa.

A relação entre tributação e independência tornou-se especialmente evidente na Revolução Americana (1775-1783). Os colonos britânicos na América rejeitaram os impostos sem sua participação direta nas decisões do Parlamento britânico. Legislação como o Stamp Act de 1765 e o Tea Act de 1773 foram vistos como violações da autonomia colonial, levando a protestos como a Boston Tea Party. A recusa em aceitar a tributação sem representação resultou no movimento revolucionário que culminou na independência dos Estados Unidos, consagrando a ideia de que a legitimidade de um governo depende da participação dos cidadãos na definição das políticas fiscais.

Assim, ao longo da história, o pagamento de impostos não foi apenas um meio de financiar Estados e governos, mas também um catalisador para transformações políticas significativas. O parlamentarismo, a democracia e a independência de diversos países foram moldados por debates sobre quem deveria ter o poder de definir e arrecadar tributos. A luta pelo direito de influenciar políticas fiscais contribuiu para a criação de instituições que garantiram a participação popular efetiva no governo e base da sua legitimidade.

3-Conclusão: a transformação do paradigma da legitimidade política em Angola

A legitimidade política em Angola encontra-se num momento de transformação significativa. O conceito de “direito a governar”, anteriormente associado ao MPLA, perdeu a sua validade. Esta mudança reflete a crescente consciência da população angolana pagante de impostos (e não recipiente de subsídios de combustíveis) sobre o seu papel na sustentação do Estado, especialmente através do pagamento de impostos. A relação entre a contribuição fiscal dos cidadãos e a capacidade do Estado de funcionar tornou-se um elemento central na dinâmica política do país, ultrapassando ideologias e manifestações públicas.

Essa transformação marca uma nova fase na política angolana, onde o poder da população se manifesta de forma mais concreta. A voz dos cidadãos, fundamentada na sua contribuição económica, vai redefinir os arranjos políticos e a estrutura de governança. Este fenómeno destaca a importância de uma legitimidade que vai além da mera legalidade, exigindo uma conexão mais profunda entre os governantes e os governados.

As eleições de 2027 representarão um marco histórico nesse contexto. Pela primeira vez, a legitimidade política será debatida nas urnas, transcendendo a esfera jurídica. Este evento promete ser um ponto de inflexão na história política de Angola, onde o peso da transformação social e económica terá um impacto direto na escolha dos líderes e na definição do futuro do país.


[1] https://www.msn.com/pt-pt/pol%C3%ADtica/governo/governo-angolano-confirma-mais-cortes-nos-subs%C3%ADdios-aos-combust%C3%ADveis-este-ano/ar-AA1DGdmi

[2] https://www.angola24horas.com/sociedade/item/31715-governo-angolano-confirma-mais-cortes-nos-subsidios-aos-combustiveis

[3] https://observador.pt/2024/08/02/governo-angolano-diz-que-salarios-de-julho-dos-funcionarios-publicos-ja-foram-pagos/

[4] Temos dúvidas sobre este corte antes da reforma da estrutura de mercado dos combustíveis tornando-o num mercado concorrencial, mas é assunto que não discutimos aqui. Ver:  https://www.makaangola.org/2025/03/a-obsessao-do-fmi-cortar-subsidios-dos-combustiveis/

[5]https://www.ucm.minfin.gov.ao/cs/groups/public/documents/document/aw4x/mju4/~edisp/minfin1258130.pdf

[6] https://expansao.co.ao/angola/detalhe/luanda-arrecadou-922-do-total-da-receita-fiscal-nao-petrolifera-em-2022-60224.html

[7] https://forbesafricalusofona.com/impostos-arrecadados-pela-agt-em-angola-atingem-os-13-bilioes-kz-em-2022/

[8] https://www.opais.ao/economia/arrecadacao-nao-petrolifera-acima-dos-4-bilioes-de-kwanzas/

[9] Rui Verde, 2021, Angola at the Crossroads. Between Development and Kleptocracy, IB.Tauris. London.

[10] Rui Verde, 2000, The Harmonious Constitution. Judges and the Protection of Liberty. Newcastle upon Tyne.

Economia angolana: tempo de reformas aceleradas

1-O relatório do Fundo Monetário Internacional sobre Angola (Fev.2025)

Nenhuma das várias intervenções do FMI em Angola teve sucesso em alterar a estrutura económica do país e ajudar a lançá-lo numa senda de desenvolvimento, demonstrando a fragilidade dos modelos de actuação do FMI em África.[1]

Quando os resultados equívocos do FMI surgem, este escuda-se em comunicados ambíguos que permitem leituras diferenciadas e, certamente, desresponsabilizam a instituição. É o que se passa com o mais recente comunicado da organização sobre Angola, que é um verdadeiro exercício de ambivalência.

Contudo, apesar disso, ou sobretudo, devido a isso, o presente comunicado[2] é um instrumento valioso de onde se podem retirar algumas conclusões e pistas para o futuro da economia angolana, essencialmente, a necessidade de aceleração efectiva e real da reforma económica num sentido de concorrência, produtividade e modificação radical do funcionamento financeiro do Estado.

Em 24 de fevereiro de 2025, o Conselho De Administração do Fundo Monetário Internacional (FMI) concluiu a consulta referente a Angola, ao abrigo do Artigo IV. Nessa sequência produziu um comunicado, agora tornado público.

 Como aspectos positivos, o FMI realça que a economia de Angola recuperou em 2024, devido, principalmente, ao sector petrolífero. Estima-se que o crescimento do PIB tenha atingido 3,8 por cento, superando as projeções anteriores, sendo certo que este crescimento se estendeu ao sector não petrolífero. O rácio dívida pública/PIB diminuiu em 2024, beneficiando de um maior crescimento nominal do PIB e de excedentes fiscais primários sustentados. Estas são as boas notícias, a economia a crescer devido ao sector petrolífero, simultaneamente, imprimindo um efeito spill over aos restantes sectores.

Fig. n.º 1- Evolução da economia real de Angola em percentagem. Fonte: FMI 2025

Ao mesmo tempo, o FMI mostra-se cauteloso e algo assustado com variados problemas em que destaca o seguinte:

-Derrapagem do Orçamento Geral do Estado (contas públicas) derivadas de despesas de capital mais elevadas e atraso na remoção do subsídio aos combustíveis.

-Inflação elevada devido a pressões cambiais e preços dos produtos alimentares.

-Expectativas adversas no mercado e um serviço elevado da dívida externa colocam grande pressão no valor da moeda angolana.

Devido aos perigos iminentes, o FMI “convida” o Executivo angolano a acelerar as reformas estruturais da economia, em que enfatiza a consolidação orçamental (corte nas despesas públicas ou aumento dos impostos), a retirada dos subsídios aos combustíveis, a racionalização do investimento público e a melhoria da eficiência da despesa, o reforço da gestão das finanças públicas, incluindo o quadro de contratação pública e as reformas das empresas públicas. Igualmente, reafirma a necessidade de a política monetária manter um viés de restritivo para garantir uma desinflação duradoura.

A tónica principal, segundo o FMI, deve ser colocada em políticas pró-mercados orientadas para simplificar a regulamentação empresarial, reforçar a governação, combater a corrupção, desenvolver o capital humano e aprofundar a inclusão financeira. É igualmente necessária uma maior capacidade estatística para apoiar a elaboração de políticas sólidas.

2-Para além do FMI. As reformas necessárias

O próprio comunicado do FMI contém contradições que relevam a sua dificuldade em obter uma visão realista da economia angolana. Por exemplo, atribui a inflação à liberalização da taxa de câmbio e à subida dos preços alimentares. Lembremo-nos que foi o FMI que recomendou a adopção abrupta de uma taxa de câmbio totalmente flexível, sem reparar que uma boa parte da alimentação angolana era importada…portanto, é uma política do FMI que segundo o próprio gera inflação….

No entanto, mais abaixo fala da necessidade de uma política monetária restritiva, que é obviamente o grande problema angolano e a fonte final de toda a inflação, a atitude laxista do BNA que convive com taxas de juro de referência negativas em termos reais (taxa de juro de referência BNA, 19,5% para uma inflação de 26,48%) e tem dificuldades em controlar a massa monetária[3].

Fig. n.º 2-Evolução dos agregados monetários em percentagem/fim do período. Fonte: FMI, 2025

Também, é de estranhar a obsessão com o subsídio aos combustíveis, sendo evidente que a retirada dos mesmos gerará ainda mais fortes pressões inflacionistas e possíveis convulsões sociais.

Mesmo o alerta para a derrapagem orçamental parece descontextualizado. Se repararmos, o saldo para o Orçamento Geral do Estado (OGE) de Angola para 2025 é de -1,3% do PIB, nada de relevante. Na verdade, Angola não precisa de menos despesa ou de austeridade, pelo contrário, necessita sim de maior despesa eficaz.

Fig. nº 3- Saldo Global Orçamental, percentagem do PIB. Fonte: FMI, 2025

Os problemas da economia angolana não se situam nestes eixos, mas noutros que o FMI também aborda, mas não destaca.

  • O primeiro problema da economia angolana é o da racionalização da despesa pública. Uma boa parte da despesa é descontrolada, não se sabe o seu destino, é resultado de sobrefacturação, esquemas corruptos, negociatas endógenas[4]. Muito mais do que nos Estados Unidos de América, é em Angola que seria fundamental um programa como o de Elon Musk e o seu DOGE (Departamento de Eficiência Governamental) com vista reduzir a burocracia e optimizar a máquina pública de Angola cortando gastos fantasmas e inventados e reformulando agências governamentais.
  • Ao nível da contratação pública é essencial introduzir mecanismos de concorrência. Se, porventura, o concurso público é demorado e um obstáculo ao desenvolvimento, permita-se uma contratação simplificada, mas com concorrência, talvez realizada através de leilões ou mecanismos electrónicos, revendo profundamente a actual lei da contratação que é burocrática, lenta e inaplicável.
  • Outro aspecto relevante é o da renegociação da dívida externa. Não se pode continuar a pagar os biliões em capital todos os anos, com o custo de oportunidade que é o desenvolvimento angolano. O pagamento da dívida externa nos termos em que está a ser feito é um obstáculo ao crescimento do país.
  • A nível interno, a economia privada tem de ser estimulada, criando-se as condições pró-mercado de que fala o FMI, com um grande esforço de desburocratização, liberdade de criação de empresa, fomento do crédito bancário, despolitização do empresariado e algum proteccionismo às indústrias nascentes em Angola. Mercado livre interno com protecção externa, tem de ser a receita para os anos iniciais.
  • Igualmente, há que perceber a rentabilidade das grandes companhias estatais, Sonangol, TAAG, entre outras, promovendo a eficiência da sua gestão e privatizando pelo menos 1/3 do capital.

Ainda agora, a presente demonstração de resultados da Sonangol apresenta mais dúvidas do que certezas, Sonangol encerrou 2024 com uma dívida de 4,5 mil milhões de dólares representando um aumento de 15,4% face ao ano anterior. Ao mesmo tempo, viu ainda as receitas caírem até aos 10 mil milhões de euros no ano passado, num recuo de 8,6% no espaço de um ano. O EBITDA (lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização) também recuou 8,8% em termos anuais até aos 3,2 mil milhões de euros[5]. Sejamos claros, estes resultados não são bons. Não é a catástrofe de 2015, mas é algo de pouco estimulante.

 A eficiência das empresas pode ser optimizada através da privatização parcial, uma vez que uma gestão com parceiros privados tende a ser mais ágil e focada em resultados, possivelmente, a inovação será incentivada em empresas mistas. A introdução da concorrência de visões (estatal e privada) pode levar à redução de custos e à eliminação de burocracias desnecessárias. De igual modo, a venda de partes de empresas estatais pode gerar receita para o governo, aliviando restrições orçamentais e reduzindo a necessidade de financiamento público. A privatização parcial pode levar a melhorias na qualidade dos serviços, pois as entidades privadas concentram-se na satisfação do cliente. Finalmente, as empresas mistas apresentarão maior flexibilidade para se adaptarem rapidamente às solicitações do mercado.

No essencial:

  1. Haverá que reestruturar totalmente a função financeira do Estado, quer ao nível de gastos, quer ao nível de dívida, quer ao nível de contratação, possivelmente, criando um departamento de eficiência como o de Elon Musk nos EUA.
  2. Introduzir em Angola um mercado livre com perfeita independência para os empresários criarem e gerirem as suas empresas sem burocracia e interferência do Estado e a criação de mecanismos que lhes tragam capital (bancos, bolsas, capital de risco, fundos e parcerias estatais autónomas).
  3. Privatizar até 1/3 do capital das grandes companhias estatais, incluindo a Sonangol.

Todas estas reformas deveriam ser aceleradas nos dois anos e meio que faltam para o Presidente da República João Lourenço terminar o seu mandato.


[1] Cfr. https://actionaid.org/publications/2023/fifty-years-failure-imf-debt-and-austerity-africa

[2] Ver https://www.imf.org/en/News/Articles/2025/02/24/pr-2541-angola-imf-executive-board-concludes-2024-article-iv-consultation?cid=em-COM-123-49743

[3] https://www.makaangola.org/2024/03/bna-o-culpado-da-inflacao-em-angola/

[4] Exemplo recente de puro desperdício: https://www.makaangola.org/2025/02/os-consumiveis-do-saque-no-kuando-kubango/

[5] https://www.jornaldenegocios.pt/economia/mundo/africa/detalhe/sonangol-ve-divida-aumentar-para-43-mil-milhoes-em-2024

Câmbio flutuante é grande erro em Angola


O que é o Câmbio Flutuante? Uma taxa de câmbio flutuante significa que o nível de preços da moeda nacional é determinado pelo mecanismo de oferta e procura sem interferência do banco central, quer localmente, quer no ambiente externo.

Conhecidas moedas internacionais, como o dólar norte-americano nos Estados Unidos, o euro na União Europeia, são negociadas através de bolsas de divisas internacionais num sistema flutuante. Contudo, os seus governos tentam determinar frequentemente os preços das moedas, através de mecanismos indirectos de política monetária, para obter benefícios económicos. Por exemplo, os EUA apenas através de aumento dos juros podem diminuir os lucros dos países terceiros que usam dólares americanos.

O Banco Nacional de Angola introduziu o novo regime de sistema monetário em 2018. No dia 1 de janeiro de 2018, um dólar americano trocava-se por 165.92 kwanzas, após a introdução do câmbio flutuante, no dia 30 de dezembro, um dólar americano já valia 308 kwanzas. No último ano, o Dólar Americano alcançou um máximo de 954,50 Kwanzas Angolanos por Dólar Americano em 02 Outubro de 2024. A taxa mínima para o câmbio entre USD/AOA foi 827,48 Kwanzas Angolanos por Dólar Americano em 27 Outubro de 2023. A taxa de câmbio geral entre USD/AOA subiu 10 % no último ano.

Tal quer dizer que o Dólar Americano ganhou valor em relação ao Kwanza Angolano. A Moeda kwanza não conseguiu ter capacidade para confrontar as divisas estrangeiras, por isso está continuando a desvalorizar-se.

Outro exemplo, em 2021, o Ministro das Finanças sudanês, Gabriel Ibrahim, anunciou que a libra sudanesa teria câmbio flutuante, um dólar americano poderia ser trocado por 375 libras sudanesas, enquanto antes da decisão de implementar uma taxa de câmbio flutuante, um dólar americano podia ser trocado por 55 libras sudanesas. O preço aumentou 580% na troca de libras sudanesas.

A implementação de taxas de câmbio flutuantes nas economias em desenvolvimento pode trazer riscos de consequências imprevisíveis. A seguir vou explicar o risco do câmbio flutuante.

Que tipos de flutuações monetárias incluem?

Existem dois tipos de flutuação cambial. O primeiro que referimos na definição de flutuação cambial é a flutuação absoluta, e o segundo é a flutuação gerida, ou seja, o banco central intervém para orientar a subida da taxa de câmbio ou para atingir a economia nacional.

A flutuação controlada é geralmente implementada por países economicamente mais fortes, que representam uma fatia considerável do comércio internacional, pelo que tendem a adoptar este método para aumentar ou diminuir a importação ou exportação de bens.

A fim de maximizar as exportações e reduzir as importações, a economia global tem vivido as chamadas guerras cambiais após a crise financeira internacional de 2008.

Os países com economias fracas também podem adoptar sistemas de taxas de câmbio flutuantes, mas isso custar-lhes-á enormemente. É exatamente o caso do Egipto, que depende do investimento estrangeiro para suportar a sua dívida, de forma a estabilizar a taxa de câmbio da libra egípcia.

Como definir taxas de câmbio?

Desde 1971, o mundo abandonou o padrão-ouro para definir as taxas de câmbio e estabeleceu um cabaz de moedas para determinar as taxas de câmbio. Os determinantes incluem as reservas cambiais, as reservas de ouro e o desempenho do produto interno bruto, a existência de produtos locais de maior valor acrescentado, aumentando assim enormemente o valor da sua moeda. Isto deve-se ao facto de a procura externa pelos produtos do país aumentar as reservas cambiais do país, o seu equilíbrio com o exterior.

Existem vários tipos de taxas de câmbio. A primeira é a taxa de câmbio administrativa, que não depende do mecanismo de oferta e procura, mas depende da decisão da autoridade monetária de fixar a taxa de câmbio. O segundo tipo é a taxa de câmbio livre.

A terceira é a taxa de câmbio gerida, ou seja, a autoridade monetária intervém através do mecanismo de mercado aberto para definir a taxa de câmbio. Isto significa que a autoridade monetária intervém na compra e venda de moeda para alcançar um preço que acredita ser equilibrado.

O que inclui os seus efeitos negativos?

A decisão de fazer flutuar uma moeda durante um período de turbulência económica tem normalmente uma série de consequências negativas para a economia e para a sociedade, a mais comum das quais é a inflação elevada. Os mercados externos também serão afetados porque a dívida externa que o país necessita de pagar aumenta, especialmente quando têm escassez de recursos em divisas.

Taxas de câmbio flutuantes ajudam a travar crimes de branqueamento de capitaisQuem beneficia?

Os maiores beneficiários numa taxa de câmbio flutuante são aqueles que tinham poupanças em moeda estrangeira.

A segunda é para os devedores, especialmente aqueles que devem a bancos e instituições financeiras oficiais, pois poderão pagar as suas dívidas por um valor inferior ao valor real das dívidas que receberam e poderão pagar grandes dívidas vendendo alguns dos seus ativos.

O terceiro são os grandes comerciantes, os chamados grossistas, agentes ou grandes importadores.

O quarto são os produtores de matérias-primas para exportação, cuja produção depende da oferta local, mas apenas se tiverem elevada flexibilidade de produção para satisfazer a procura de produtos locais após a flutuação da taxa de câmbio. Depois de implementarem um float, podem aproveitar a desvalorização da moeda para obter maiores quantidades de produtos locais de que necessitam na produção de bens para exportação.

O quinto maior beneficiário é o governo, que reduz a carga sobre o orçamento geral do país ao desvalorizar significativamente a sua dívida interna.

Quem vai sofrer?

Nos países que adotam políticas de taxas de câmbio flutuantes, algumas pessoas também sofrerão perdas, lideradas por aqueles que detêm poupanças em moeda local – as suas poupanças irão desvalorizar devido à redução do poder de compra da moeda. Após a implementação do câmbio flutuante, este grupo de pessoas perde grande parte da sua riqueza.

O segundo são os credores denominados em moeda local, porque o valor da dívida que prestam é inferior ao valor original após a implementação da flutuação, pelo que os ganhos que recebem não podem compensar esta perda. Nestes casos, a dívida de longo prazo é considerada uma perda significativa para os credores.

O terceiro são os detentores de mercadorias que não podem aumentar o seu preço de acordo com a extensão da depreciação da moeda, como aqueles que têm bens imobiliários como ativo. É difícil que essas mercadorias aumentem os seus preços em 100% em poucos dias, o mercado enfrentaria uma recessão severa.

O quarto são os importadores, que se verão confrontados com faturas elevadas pelos bens que importam, enquanto os produtores que dependem de fornecimentos de produção importados também serão prejudicados porque são forçados a aumentar o preço dos seus produtos.

O preço da moeda estrangeira está a aumentar a um ritmo tal que os seus produtos não são competitivos no mercado local ou no mercado internacional, portanto, com a implementação da flutuação da moeda, a actividade industrial diminuirá, enquanto as actividades comerciais e de serviços aumentarão.

O quinto maior grupo a sofrer perdas são os empregados com rendimentos fixos, porque os seus salários não podem ser aumentados na mesma medida que a depreciação da moeda, os seus salários em 50% ou 100%. Então, o que devemos fazer se ocorrer uma situação como a do Sudão, em que uma taxa de câmbio flutuante provoca uma depreciação da moeda em mais de 580%?

Quais as vantagens das taxas de câmbio flutuantes?

A implementação de taxas de câmbio flutuantes nas economias em desenvolvimento pode trazer riscos de consequências imprevisíveis, especialmente em países com instituições políticas fracas, falta de transparência e Estado de direito frágil.

No entanto, no quadro da perspectiva económica, uma série de efeitos positivos podem ser obtidos através da implementação do processo de taxas de câmbio flutuantes, o mais importante dos quais é a eliminação do mercado negro, uma vez que os comerciantes receberão uma taxa única de moeda estrangeira dentro de bancos e todas as outras instituições.

Em teoria, as taxas de câmbio flutuantes podem ajudar a suprimir os crimes de branqueamento de capitais, porque os crimes de branqueamento de capitais constituem uma forma importante de cometer crimes no mercado paralelo ou no mercado negro de taxas de câmbio. No caso das taxas de câmbio flutuantes, as transações cambiais só podem ser realizadas através de canais oficiais, canais que os gangues de branqueamento de capitais não podem utilizar.

Mas na realidade, o câmbio flutuante não conseguiu evitar branqueamento de capital, por isso no dia 25 de outubro de 2024, o Grupo de Acção Financeira Internacional anunciou ter colocado Angola na lista cinzenta da instituição por motivo de lavagem de capitais, financiamento ao terrorismo e proliferação de armas.

Ao mesmo tempo, o câmbio flutuante em Angola também causou grave iliquidez cambial, os empresarios nacionais e estrangeiros não podem mandar divisas para fora comprar as mercadorias, e para manter os negócios têm de usar o mercado informal.

Quando não mandam o dinheiro para fora para comprar as mercadorias novas, os preços no consumidor interno sobem fortemente. Atualmente esta situação já perdura há muito tempo em Angola. O motivo principal é que o Kwanza é uma moeda fraca frente às moedas ocidentais, por isso desde que em 2018 introduziu o câmbio flutuante até agora o kwanza está desvalorizando e nunca para. Cancelar este sistema de câmbio flutuante é uma prioridade.

O problema da recuperação dos ativos de Isabel dos Santos em Portugal

No recente discurso perante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, o Presidente da República de Angola, João Lourenço, foi incisivo a propósito da recuperação de ativos angolanos no estrangeiro.

“No que diz respeito à recuperação de activos, tivemos dois casos de sucesso, em que contámos com a atitude bastante responsável e de respeito à nossa soberania por parte das Autoridades do Reino Unido (…) Lamentavelmente nem todos os países que aceitaram receber esses activos da corrupção sem questionar na altura as origens dos mesmos, respeitam hoje as sentenças dos nossos tribunais que são de cumprimento obrigatório. Alguns desses países se arrogam mesmo ao direito de questionar a credibilidade dos nossos tribunais, quase que querendo rever as sentenças emitidas pelos mesmos, como se de órgãos de apelação extra-territoriais se tratassem.[1]

É óbvio que esta questão se coloca, e se coloca no caso dos ativos de Isabel dos Santos em Portugal, não pela existência de decisões de tribunais portugueses que coloquem em causa os tribunais angolanos -o que não aconteceu até ao momento- mas pelo funcionamento ou não funcionamento de várias regras processuais penais. Convém analisar com o detalhe possível o que se tem passado com os ativos principais de Isabel dos Santos em Portugal, para se tentar chegar a algumas conclusões.

A VENDA DO EUROBIC

Recentemente, um facto chamou a atenção da opinião pública.  A venda da participação de Isabel dos Santos no banco português EuroBic à ABANCA, banco espanhol.

Na venda da participação de Isabel dos Santos ao banco espanhol foram identificadas algumas entidades como tendo Isabel dos Santos como beneficiária última, tratava-se da Santoro Financial Holding, SGPS, S.A. com 25% do capital social do banco e da Finisantoro Holding Limited com 17,5% do capital do banco, totalizando 42,5%[2]. Estas participações estavam sujeitas a um arresto preventivo decretado em vários processos criminais portugueses, designadamente os nº 210/20.4TELSB, nº 26310/21.5T8LSB e nº 10314/22.3T8LSB.

Aparentemente, segundo a informação pública disponível, o montante recebido por Isabel dos Santos pela venda à ABANCA, cerca de 127,5 milhões de euros, terá ficado arrestado nos termos anteriores de participação,[3]embora os termos exatos não sejam totalmente claros.

Em relação a este ativo e à sua eventual recuperação colocam-se duas questões. A primeira é a natureza do arresto preventivo realizado à ordem de processos criminais.

O arresto preventivo é uma medida de processo penal, prevista no artigo 228.º do Código de Processo Penal português que procura garantir pagamentos em que o arguido advenha no futuro quer sejam referentes a qualquer pena pecuniária, custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, quer relativos à perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente.

Assim, é uma medida provisória que pode ser revogada por um juiz ou declarada extinta. Não entrando em demasiadas considerações legais, o certo é que este arresto não garante factualmente que, no final, o Estado angolano receba qualquer destes montantes, quer por os processos criminais em Portugal não se concluírem, prescreverem ou mesmo por Isabel dos Santos ser absolvida.

Como a situação se apresenta neste momento, o montante só será retirado definitivamente de esfera de Isabel dos Santos em caso de condenação com trânsito em julgado dos processos referidos, o que provavelmente demorará dez anos ou mais.

Outras situações como a prescrição, absolvição ou arquivamento, implicam a entrega dos montantes a Isabel dos Santos.

Além do mais, mesmo em caso de condenação, a verdade é que estes processos correm em Portugal, e os custos a eles associados serão primeiro ressarcidos pelo Estado português.

Efetivamente, há uma fragilidade legal nas medidas tomadas pelas autoridades de ambos os países em relação a Isabel dos Santos, que poderá ter como consequência que com o decorrer do tempo não existam benefícios de toda esta atuação judicial, pelo menos, para Angola.

Outro aspeto, ainda ligado a esta venda, é que ela não se reduziu a Isabel dos Santos, mas sim a 100% do capital do banco.[4] Quer isto dizer que os outros acionistas também venderam as suas posições e receberam os seus montantes. A sua lista é pública, como é público que não são alvo de qualquer processo criminal no âmbito do Luanda Leaks ou aparentados.[5] Não recai qualquer suspeita sobre estes outros acionistas.

O ponto relevante é que são antigos associados de Isabel dos Santos, que com ela fundaram o BIC em 2005 em Angola e, que depois avançaram com ela para o então Banco Português de Negócios (BPN) que compraram e rebatizaram como EuroBic. Por exemplo, a propósito, o Luanda Leaks escrevia: “The bank’s[Eurobic] then-chairman, Fernando Teles, was a dos Santos business partner.[6]

A questão que fica em aberto, face à informação publicada, é a do relacionamento financeiro entre esses acionistas e Isabel dos Santos, uma vez que são considerados “Business partners” e sobretudo se as autoridades judiciárias se debruçaram sobre o tema. Não havendo resposta pública, presume-se que não exista qualquer relação, mas teria sido bom que essa vertente tivesse sido clarificada.

A conclusão essencial a que se chega é que a recuperação dos ativos de Isabel dos Santos em relação ao Eurobic pode acontecer a longo prazo, mas é muito frágil.

EFACEC

Outro ativo conhecido era o da EFACEC. A história é conhecida e atualmente contestada por órgãos fiscalizadores do Estado português.[7]Não seguimos a posição do Tribunal de Contas português a este propósito. Na realidade, na altura a nacionalização da companhia era a melhor forma de salvaguardar a permanência da empresa e os postos de trabalho. É preciso não esquecer o impacto mediático do Luanda Leaks e de toda a investigação à volta de Isabel dos Santos que funcionou como um vórtice que tudo fazia desaparecer. As questões que o Tribunal de Contas coloca poderão ter sentido a jusante da decisão, em problemas de gestão pública, em desatenção posterior, mas no momento, foi a melhor decisão possível.

O certo é que a EFACEC foi nacionalizada pelo Decreto-Lei n.º 33-A/2020, de 2 de julho. De acordo com este normativo apenas haverá direito à indemnização de acordo com o valor dos respetivos direitos, avaliados à luz da situação patrimonial e financeira da pessoa coletiva à data da entrada em vigor do ato de nacionalização, sendo que no cálculo da indemnização a atribuir aos titulares das participações sociais nacionalizadas, o valor dos respetivos direitos é apurado tendo em conta o efetivo património líquido (art.ºs 4.º e 5.º da Lei n.º 62-A/2008, de 11 de novembro). Ora atendendo ao que o Tribunal de Contas diz no seu relatório agora apresentado, segundo o qual foi necessário um “financiamento público de 484 milhões de euros, havendo o risco de subir até aos 564 milhões de euros[8]”, facilmente se conclui que o valor à data da nacionalização era negativo, não havendo nada a indemnizar aos proprietários da empresa (Isabel dos Santos) ou a quem esta deva por força de qualquer processo criminal (Estado angolano).

A situação da EFACEC é linear. Nada será devolvido ao Estado angolano, porque a empresa estava em situação líquida negativa quando foi nacionalizada.

A NOS

Finalmente, com relevo na ordem jurídica portuguesa temos a participação de Isabel dos Santos na NOS. A informação oficial da empresa dá conta que em março de 2024, a posição de Isabel dos Santos correspondia a 26,7% através da ​ZOPT, SGPS, S.A. por  conseguinte,  às  sociedades  Kento Holding Limited e Unitel International Holdings, BV, bem como a Isabel  dos  Santos,  sendo  (i)  a  Kento  Holding  Limited  e  a  Unitel  International Holdings, BV, sociedades direta e indiretamente controladas por Isabel dos Santos, e (ii) a ZOPT, uma sociedade controlada pelas suas acionistas Kento Holding Limited e Unitel International Holdings, BV[9].

A situação da posição de Isabel dos Santos nesta empresa merece alguma atenção, porque sofreu uma evolução assinalável, que, provavelmente, terá passado despercebida a muitos.

Numa primeira fase, em “4 de abril de 2020, a SONAECOM, SGPS, S.A. (“Sonaecom”)  detentora de 50% do capital da ZOPT, SGPS, S.A. (doravante “ZOPT”), foi informada por esta sua participada da comunicação recebida do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa (doravante Tribunal) de proceder ao arresto preventivo de 26,075% do capital social da NOS, SGPS, SA, correspondente a metade da participação social na NOS detida pela ZOPT e, indiretamente, pelas empresas Unitel International Holdings, BV e Kento Holding Limited”, controladas pela Eng.ª Isabel dos Santos.[10]

Depois.

“Em setembro de 2022, a Sonaecom informou que em reunião da Assembleia Geral da ZOPT se deliberou proceder à amortização da participação da Sonaecom naquela sociedade e à restituição das prestações acessórias efetuadas pela Sonaecom, por uma contrapartida que inclui a entrega das ações representativas de 26,075% do capital da NOS. Em decorrência da referida amortização, que ficou dependente dos trâmites legais aplicáveis, a Sonaecom deixa de ser acionista da ZOPT, que passa a ser integralmente detida pela Unitel International Holdings, BV e pela Kento Holding Limited, sociedades controladas pela Eng.ª Isabel do Santos.

Já em dezembro de 2022, a Sonaecom, no culminar do cumprimento dos trâmites legais, informou que passou a deter diretamente 134.322.268 ações ordinárias da NOS, correspondentes a 26,07% do capital social.”

O resultado desta evolução é que a participação de Isabel dos Santos deixou de estar integrada num bloco que controlava o capital e a gestão da NOS e a SONAE passou a deter sozinha o controlo efetivo da empresa (37,37%​), uma vez que 31,56% do capital está distribuído por outros que não chegam individualmente aos 5%. Houve uma evolução qualitativa de posição de Isabel dos Santos, possivelmente, para pior.

Portanto, a posição de Isabel dos Santos deixou de ser estratégica e de controlo, passando a ser uma posição financeira (possivelmente) “adormecida”, enquanto a posição SONAE saiu reforçada.

Sem dúvida que o grupo português SONAE agiu de forma inteligente numa situação complicada, enquanto, a posição de Isabel se degradou em termos de real valorização.

De notar, que no mesmo relatório que se vem citando (1S2024), o Conselho de Administração nota que “não tem conhecimento de eventuais desenvolvimentos no processo de arresto preventivo acima referido.” Portanto, parece que o arresto se mantém, mas nos mesmos termos que o arresto do Eurobic, querendo isto significar que as mesmas considerações se aplicam.

CONCLUSÃO

A conclusão a que poderemos chegar é que para o Estado angolano, a probabilidade de obter a recuperação de ativos de Isabel dos Santos em Portugal é longínqua em termos de prazo, e depende de várias vicissitudes jurídicas que se podem ou não verificar, havendo, por isso, justificado receio que as palavras do Presidente da República João Lourenço na ONU se concretizem.

Na verdade, só o acionamento do chamado “confisco sem condenação judicial” previsto nos artigos 109.º e 110.º do Código Penal português poderá inverter a situação e levar a um imediato confisco desses ativos.


[1] http://www.embaixadadeangola.pt/discurso-presidente-joa%CC%83o-lourenc%CC%A7o-na-79a-sessa%CC%83o-da-assembleia-geral-da-onu/

[2] https://www.eurobicabanca.pt/eurobicabanca/informacao-financeira

[3] https://expresso.pt/economia/sistema-financeiro/2024-07-29-verbas-pagas-pelo-abanca-a-isabel-dos-santos-para-comprar-o-eurobic-estao-congeladas-7b33fe1d

[4] https://www.eurobicabanca.pt/eurobicabanca/noticias/ABANCA-conclui-compra-do-EuroBic

[5] https://www.icij.org/investigations/luanda-leaks/

[6] https://www.icij.org/investigations/luanda-leaks/how-africas-richest-woman-exploited-family-ties-shell-companies-and-inside-deals-to-build-an-empire/

[7] https://www.tcontas.pt/pt-pt/MenuSecundario/Noticias/Pages/n20240930-2.aspx

[8] https://www.tcontas.pt/pt-pt/MenuSecundario/Noticias/Pages/n20240930-2.aspx

[9] https://www.nos.pt/pt/institucional/investidores/nos-em-bolsa/estrutura-acionista

[10] Ver p.96 do Relatório e Contas da NOS do 1.º Semestre de 2024.

CEDESA lança portal sobre Obras Públicas e Investimentos em Angola

O CEDESA – Centro de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social de África apresentou, na quinta-feira, 18 de abril, a sua página na internet sobre as Obras Públicas e Investimentos em Angola – https://obraspublicasinvestimentosangola.org/, com o duplo objetivo de fornecer informações independentes a académicos, jornalistas e interessados em geral sobre o que se passa em Angola neste domínio e de servir de documento público de informação à sociedade civil angolana sobre a evolução das grandes obras no país, por via da criação de um mecanismo de abertura participativa.

A apresentação do projeto contou com a presença de membros das Embaixadas de Angola e da China em Portugal bem como do Consulado Geral de Angola em Lisboa, para além de diversos empresários, académicos e jornalistas.

O CEDESA é uma pessoa coletiva de direito privado de natureza associativa, sem fins lucrativos, dedicada ao estudo e investigação de temas políticos e económicos da África Austral e, em especial, de Angola. Nasceu de uma iniciativa de vários académicos e peritos da Angola Research Network (ARN – https://www.angolaresearchnetwork.org/), com o principal objetivo de fornecer análises rigorosas sobre as perspetivas económicas de Angola e países vizinhos a decisores políticos, à comunidade de negócios, a académicos, a estudantes e demais interessados.

Fonte: CEDESA (www.cedesa.pt)

Em busca de um novo paradigma para as relações Angola-China

Ultrapassar a questão da dívida

Aparentemente, está para breve a visita de João Lourenço à China e Beijing já tem, novamente, embaixador em Luanda. Portanto, há movimentos dinâmicos acentuados na relação Angola-China.

Não é a primeira visita do Presidente angolano a Beijing, todavia, é a primeira após a aproximação pública e efetiva aos Estados Unidos, e no momento em que a questão da dívida à China se tornou o aspeto principal das relações entre os dois países.

Sobre a dívida, há um facto indesmentível. Angola procedeu a uma redução substancial do capital em débito desde 2017. Na realidade, nesse ano o montante de capital devido era de 23 204,9 mil milhões de dólares enquanto no final de 2023 apenas se situava nos 17 921,0 mil milhões de dólares americanos, tendo havido assim uma redução exata de 5 283,9 mil milhões de dólares segundo os dados oficiais do Banco Nacional de Angola (BNA), só em capital, não contabilizando juros.[1] Isto significa que mesmo durante anos de crise-não esquecer que a economia angolana se contraiu entre 2016 e 2020[2]– o estado angolano teve capacidade e quis pagar a sua dívida à China.

Portanto, a questão não se coloca ao nível da capacidade, mas do sacrifício, ou melhor dizendo, do custo de oportunidade. O capital retirado do Orçamento Geral do Estado para pagar à China é capital que não é utilizado noutros sectores, como por exemplo, na área do desenvolvimento humano, educação, saúde, saneamento, etc. Além disso, obviamente, a instabilidade orçamental derivada da oscilação dos preços do petróleo coloca sempre uma grande pressão na liquidez do tesouro para cumprir os pagamentos.

É por essa razão, e após o grande esforço angolano de mais de 5 mil milhões de dólares, efetuado durante a presidência de João Lourenço, que este deveria ser o tempo de descompressão no pagamento da dívida à China.

A este acresce outro facto, já suficientemente tratado[3], que é o da chamada “dívida odiosa”. Parece hoje demonstrado que uma boa parte da dívida contraída à China por Angola, terminou de forma ilegal na posse de entidades privadas angolanas que não usaram os fundos para o bem comum, mas para lucro próprio indevido. Notícias recentes dão conta que a estruturação de todo o mecanismo de desvio de fundos teve a participação de entidades chinesas mandatadas pelo Comité Central do Partido Comunista Chinês[4]. A confirmar-se, e não está devidamente certificado, tal ação coloca os montantes de “dívida odiosa” numa categoria à parte, que deverá ser objeto de negociação separada pelas diplomacias dos dois países, para não dar origem a nenhum processo em tribunal arbitral, como está previsto nos acordos bilaterais de financiamento.

Enquadrada a questão da dívida, torna-se evidente que este é o tempo de ir para além da dívida e criar um novo paradigma para as relações entre Angola e China

O novo paradigma entre Angola e China: esvaziar o maniqueísmo China-EUA

Poder-se-ia pensar que a aproximação de João Lourenço a Joe Biden, promovendo um efetivo estreitamento das relações de Angola com os Estados Unidos, levaria a um necessário agastamento e afastamento da China.

Não se partilha dessa opinião. Pelo contrário, entende-se que a visão maniqueísta que suporta essa visão não se sustenta em factos.

Em primeiro lugar, na esfera económica, apesar da retórica americana que começou com a administração Trump e continuou com Biden, o certo é que as relações entre ambos os países- EUA e China- se mantêm intensamente. As companhias americanas -e Ocidentais em geral- continuam muito dependentes dos mercados e das cadeias de produção chinesas. A retórica mais agressiva apenas beneficiou alguns países intermediários que recebem investimento chinês e depois exportam os produtos resultantes desse investimento para os EUA com um “selo não chinês”, sendo que no final os laços se mantêm fortes. Neste sentido, por exemplo, Elon Musk da Tesla está a convidar fornecedores chineses de peças dos seus automóveis para replicarem as suas cadeias de produção da China para o México[5]. Recentemente, o CEO da Apple – Tim Cook – encontrou-se com governantes da China e reafirmou o seu compromisso com o mercado da China, e desejo de estreitamento de laços com o Governo de Beijing[6]. Um outro exemplo atual é a ExxonMobil, o gigante americano do sector da energia que planeia investir num complexo petroquímico de vários milhares de milhões de dólares na província de Guangdong[7]. Com efeito, se tudo correr dentro do previsto, o projeto que tem um investimento total de 10 mil milhões de dólares, e estará com a primeira fase concluída ainda antes do final do ano. Já para não falar da Starbucks, a multinacional norte americana, que hoje em dia está com mais de 6.800 lojas só na China, e que em 2023 investiu mais de 200 milhões de dólares num novo campus na China, sinal de como o consumidor chinês continua a ser crucial para a cadeia global de café, apesar de estar a haver um certo abrandamento económico[8].

A isto acresce que o sucesso do Corredor do Lobito em que quer Angola, quer os Estados Unidos apostam, necessita forçosamente do concurso chinês-que domina o essencial da matéria-prima- para ter sucesso.

Estes factos reais da infraestrutura económica, apontam para uma necessária triangulação entre países intermediários, China e Estados Unidos, que se traduz numa função ideal para Angola, que se posiciona acertadamente como “ponte” entre Ásia e Ocidente. Portanto, poder-se-á ter um benefício desta aproximação recíproca e não uma desvantagem, sabendo Angola aproveitar o seu papel de charneira de modo hábil e inteligente.

O novo paradigma entre Angola e China: trocar os empréstimos por investimento produtivo

O facto essencial é a necessidade de mudança de paradigma. Angola não pode sustentar o seu tesouro e desenvolvimento em empréstimos que forçosamente têm de ser pagos. Isto não quer dizer que não os use e recorra quando precise, mas a estratégia tem de ser outra, e outra quer dizer, investimento. O que se deve querer da China é investimento e não mais empréstimos.

Olhemos para a política da China em Portugal. Aí essencialmente, a China realiza investimentos, compra ações de empresas, torna-se sócia de outras. Leva capital para Lisboa para aplicar no processo produtivo, não para obter juros. Os principais investimentos chineses em Portugal concentram-se em setores como banca, energia e seguros. Atente-se para o caso da EDP. O investimento chinês na EDP – Energias de Portugal, S.A. é significativo. A China Three Gorges (CTG) é a maior acionista da EDP desde 2011. No ano passado, as acções detidas pela CGT estavam avaliadas em 4.634 milhões de euros[9]. No sector da saúde, destaca-se o grupo privado chinês Fosun, que é o maior acionista do Grupo Luz Saúde.  Este grupo que é uma das principais referências da saúde em Portugal, é controlado pelos chineses da Fosun e pela seguradora Fidelidade (que, por sua vez, também tem como acionista os chineses da Fosun)[10]. Atualmente, este grupo gere 30 hospitais, clínicas e unidades de saúde. Em 2022, os seus resultados operacionais atingiram os 600 milhões de euros, mais 11 % face ao ano anterior[11].

Em 2023, Portugal captou mais investimento estrangeiro industrial e o maior veio da China.[12] Trata-se “da fábrica de baterias para carros eléctricos da chinesa CALB, que já arrancou com o processo de licenciamento ambiental de uma nova unidade em Sines, um projecto de 2060 milhões de euros, para o qual foram reservados 90 hectares de terreno e prometidos 1800 postos de trabalho[13]”.
É este género de relação que Angola deve começar a ter com a China. Não uma relação de dependência de empréstimos, mas de investimentos diretos chineses na economia angolana.

Existem várias áreas para o investimento chinês em Angola, mas destacar-se-ia as possibilidades de fábricas de automóveis, sabendo-se o grande incremento que esta indústria está a ter na China e a tornar-se a maior do mundo. Igualmente, importante, o sector das telecomunicações e energia elétrica que tanta falta faz em Angola. Outro setor de aposta poderia ser o têxtil, depois do falhanço da Etiópia, encurtando as linhas logísticas de fornecimento para os EUA e Europa em relação ao Vietnam.

E outras hipóteses deveriam ser estudas, mas ficam estas sugestões para investimento chinês em Angola: criar um cluster de indústria automóvel, telecomunicações e energia elétrica, têxteis.


[1] DÍVIDA EXTERNA PÚBLICA POR PAÍSES (STOCK): 2009 – 2023, https://www.bna.ao/#/pt/estatisticas/estatisticas-externas/dados-anuais                  

[2] https://pt.countryeconomy.com/governo/pib/angola

[3] Cfr. Rui Verde, 2023, O tratamento jurídico a conferir à dívida pública angolana à China que resulta de apropriação privada, Comunicação ao III Congresso Internacional de Angolanística
Biblioteca Nacional /Lisboa

[4] https://www.rfa.org/english/news/china/sam-pa-ccp-02062024151947.html

[5] https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/02/16/elon-musk-atrai-fornecedores-chineses-para-se-instalarem-bem-ao-lado-dos-eua.ghtml

[6] https://www.adrenaline.com.br/hardware/ceo-da-apple-reafirma-seu-compromisso-com-a-china/

[7] https://www.globaltimes.cn/page/202402/1307530.shtml

[8] https://edition.cnn.com/2023/09/19/business-food/starbucks-china-coffee-center-intl-hnk/index.html

[9] Idem.

[10] https://observador.pt/2020/10/21/luz-saude-dos-chineses-da-fosun-foi-quem-fez-mais-negocios-com-o-estado-na-pandemia/

[11] https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/luz-saude-tem-dimensao-para-entrar-no-psi-diz-lider-da-bolsa-nacional/

[12] https://www.publico.pt/2024/03/03/economia/noticia/portugal-captou-investimento-estrangeiro-industrial-maior-veio-china-2082344

[13] Idem.

A necessidade de um mecanismo conjunto da União Africana para a dívida africana à China

O enquadramento e problemas da dívida à China em África

África é um continente que é mencionado múltiplas vezes por causa das suas vastas riquezas naturais. Desafortunadamente, isso não se reflete na riqueza das populações africanas, que consequentemente sofrem variadas privações.

Neste contexto, a questão da dívida dos países africanos à China vai ganhando contornos algo preocupantes. Os empréstimos contraídos pelos países da África Subsariana à China conheceram um grande impulso, principalmente a partir do momento que foi estabelecida a Road and Belt Initiative (RBI), em 2013. Esta ambiciosa iniciativa chinesa, que teve como fundamental motivador, o Presidente Xi Jinping, apresentava como grande objetivo aumentar a influência económica e geopolítica do país. E se os empréstimos conheceram um grande crescimento em 2013 com 17.5 biliões de dólares, tendo mesmo atingido o auge em 2016 com 28.4 biliões de dólares, nos anos seguintes a queda nos valores dos empréstimos foi incessante, atingido os 1.2 biliões em 2021, e no ano seguinte totalizando apenas 994 milhões de dólares (um total de 9 empréstimos), destacando-se como o nível mais baixo de empréstimos chineses desde 2004.[1]

Fig.1 – Evolução anual dos Empréstimos Chineses para África (biliões dólares)

Fonte: Chinese Loans to Africa Database, Boston University

A canalização deste dinheiro chinês para o desenvolvimento de África, designadamente no financiamento de vários projetos de infraestruturas e outros empreendimentos, tem estimulado algum crescimento económico africano. Contudo, têm existido várias “nuvens cinzentas”, muitas delas bem visíveis na economia angolana, mas que também se destacam noutros países. Isso traduz-se num mal-estar muitas vezes indisfarçável nas relações sino-africanas. Alguns países, inclusive, tornaram-se eventualmente reféns da chamada “diplomacia da armadilha da dívida”. A China, ao desencadear a RBI, provocou a ideia de facilitismo de empréstimo a outros estados de economias em desenvolvimento, e de facto, isso acabou por tornar o país asiático no maior credor internacional. No entanto, inúmeras vezes esses empréstimos careceram de transparência: os casos de corrupção foram-se multiplicando, muitas vezes porque os financiamentos não passavam por processos de concurso público. O problema da denominada ‘dívida oculta’ surgiu quando “a China deixou de emprestar aos governos centrais e a empresas estatais ou apoiadas pelo Estado. Estas dívidas não aparecem nos balanços financeiros do governo, embora frequentemente os governos sejam responsáveis por elas caso o devedor oficial não seja capaz de pagar”.[2]

Podia-se pensar que esta situação poderia a prazo trazer benefícios para os chineses, uma vez que têm vários países “presos” a dívidas monstruosas. Contudo, não é bem assim, pois ao mesmo tempo, a China está a enfrentar problemas económicos domésticos muito graves, que enquanto não forem solucionados, será difícil conseguir promover ao mesmo tempo uma redução da dívida estrangeira.[3]

Com efeito, a lenta recuperação após a pandemia, o problema do desemprego jovem, e a falência do sector imobiliário, têm abanado o que parecia ser um crescimento inabalável da China. Assim, é como Christoph Nedopil, fundador e diretor do think tank chinês Green Finance and Development Center (GFDC), argumenta: “será um desafio interno para a China promover simultaneamente a redução das dívidas no exterior enquanto os problemas económicos domésticos não forem totalmente resolvidos”.[4]

Em Dezembro de 2022, a Chatham House publicou um relatório que analisava o desenvolvimento do modelo dos empréstimos chineses aos estados africanos (2000-2020), que numa fase inicial se fundamentavam em fornecimento de recursos, para evoluírem depois para escolhas mais estratégicas, ou orientadas para o negócio.

Fig 2: Os 10 principais beneficiários de empréstimos chineses em África, 2000-20

Fonte: Chatham House: https://www.chathamhouse.org/2022/12/response-debt-distress-africa-and-role-china/02-case-studies-chinese-lending-africa

Note-se, no entanto, que a partir de 2021 a orientação do país asiático alterou-se, por motivos já anteriormente mencionados, e também porque vários estados não estavam a cumprir com os pagamentos. A liderança chinesa, mudou de rumo e passou a deixar de investir em grandes projetos, como caminhos-de-ferro e autoestradas, para se concentrar em empréstimos mais pequenos, com um impacto social e ambiental mais benéfico. A agenda climática foi mais um fator a entrar na equação.[5]

Além disso, o dinheiro começou a mudar de direção; anteriormente a maioria dos empréstimos iam para os países da África Oriental e Austral. A partir de 2021-22 houve uma mudança para a África Ocidental, com países como o Senegal, Benim e a Costa do Marfim a receberem a maioria das verbas.[6]

Muitos dos estados africanos, e não só, entraram em incumprimento da dívida, por isso era imperativo que fossem trilhados caminhos para que se arranjassem soluções para resolver a já chamada ‘dívida odiosa’ da China.

Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), os países pobres mais endividados do mundo têm todos contraído grandes empréstimos junto da China. Esta situação, como já referimos, pode constituir a “diplomacia da armadilha da dívida”, em que a China concede deliberadamente empréstimos a países que sabe não poderem pagar, na esperança de ganhar influência política.[7]

O que tivemos no ano passado foi um crescimento das exportações chinesas para África, que atingiu os 173 biliões de dólares, um aumento de 7,5 % em relação a 2022, enquanto as suas importações do continente caíram 6,7 %, para 109 biliões de dólares (dados fornecidos pela Administração Geral das Alfândegas chinesa).

Embora o aumento anual de 100 milhões de dólares tenha feito do comércio bilateral de 2023 um recorde, o défice comercial de África com a China continuou a aumentar, passando de 46,9 biliões de dólares em 2022 para 64 biliões de dólares no ano passado.[8]

Em 2022, 60% das nações devedoras da China estavam em dificuldades financeiras, contra 5% em 2010.[9]

Como é que algumas destas nações africanas têm enfrentado este problema da dívida, e de que forma a China tem modificado o seu comportamento ao longo do tempo?

Analisemos alguns casos:

Zâmbia:

O Império do Meio tem sido duro nas negociações para a reestruturação da dívida, e a conjuntura, apesar de todas as condicionantes, só não é pior, porque ganham relevância outros atores, que não apenas os estados, tais como instituições económicas, como o FMI, ou o Banco Mundial, ou organizações que promovem a negociação internacional e o diálogo, como por exemplo, o G20.

No caso da Zâmbia, que é o maior produtor de cobre do continente, foi a primeira nação soberana de África no período da pandemia a entrar em incumprimento quando não conseguiu efetuar um pagamento de obrigações de 42,5 milhões de dólares. A dívida acabou por impedir o país de se desenvolver economicamente e de assumir novos projetos. Desse modo, em Junho de 2023, a Zâmbia e os seus credores nos quais se incluía a China, acabaram por chegar a um acordo no âmbito do Quadro Comum do G20, para reestruturar 6,3 biliões de dólares em empréstimos.[10] Este alívio limitou-se a prorrogações de prazos e a um período de carência no pagamento de juros, mas para se chegar a um consenso não houve cortes na dívida,

Todavia, em Novembro, já havia desentendimentos, uma vez que o governo zambiano anunciou que um acordo revisto para retrabalhar 3 biliões de dólares em euro-obrigações não poderia ser implementado devido a objeções dos credores oficiais, incluindo a China.

Estes problemas de reestruturação da dívida da Zâmbia, que tinha sido negociada no âmbito do Quadro Comum do G20, acabou por minar bastante as negociações e atrasar ainda mais a reestruturação da dívida, colocando cada vez mais em agonia a vida do cidadão comum da Zâmbia.[11]

Gana:

No início do ano passado, o Gana devia à China 1,7 biliões de dólares, de acordo com o Instituto Internacional de Finanças, uma associação comercial de serviços financeiros focada nos mercados emergentes.[12] Tal como a Zâmbia, o Gana entrou em incumprimento soberano de 60 biliões de dólares em dívida interna e externa no final de 2022 e procurou logo a seguir uma resolução para este problema, ao abrigo do Quadro Comum para a dívida externa oficial de 5,4 biliões de dólares.[13]

Um acordo com os credores oficiais para a reestruturação da dívida foi estabelecido, seguindo o mesmo figurino da Zâmbia. Contudo, apesar de este acordo ter permitido desbloquear um empréstimo do FMI, o progresso tem sido arrastado.

Atualmente, segundo algumas fontes, “o Gana pretende proceder a uma simples reestruturação da dívida, trocando obrigações antigas por novas notas, numa altura em que o país procura aliviar a dívida de cerca de 13 biliões de dólares a credores privados internacionais”.[14] Todavia, as informações veiculadas têm sido contraditórias, por isso o governo ganês, mostrou-se cauteloso  quanto a uma reformulação da dívida que incluísse uma redução gradual, em que os detentores de obrigações recebessem menos se os resultados macroeconómicos não fossem tão bons como esperado.[15]

Não obstante, o governo disse aos investidores que gostaria de chegar a uma solução, após o acordo sobre a dívida pública alcançado com credores, tais como o ‘Clube de Paris’ e a China.

Etiópia:

A Etiópia é o segundo país mais populoso de África e o décimo maior em termos de área, mas é também dos estados africanos que vive uma maior turbulência a nível geopolítico, militar e económico. A proximidade com o estado chinês já vem de trás. Há tempos a Etiópia fechou vários acordos bilaterais com vários dos seus credores oficiais, entre os quais a própria China. Com as reservas de divisas reduzidas, que têm sido um problema constante no país, e uma inflação elevada, chegou a acordos bilaterais de suspensão do serviço da dívida. Com a China obteve uma suspensão da dívida de dois anos., que rapidamente passam. A Etiópia tem 28,2 biliões de dólares em dívidas externas, metade das quais são chinesas. De acordo com o Banco Africano de Desenvolvimento, o PIB da Etiópia deverá crescer 5,8 % em 2023 e 6,2 % em 2024, principalmente com base na indústria, no consumo e no investimento. Por outro lado, a inflação atingiu os 34% em 2022. Devido às elevadas despesas com a defesa e à diminuição da cobrança de receitas, o défice orçamental foi de 4,2% do PIB em 2022.[16]Perante este cenário, a Etiópia precisa de apoio ao desenvolvimento, alívio da dívida e Investimento Direto Externo.[17]

A situação angolana

A situação da dívida angolana à China é mais antiga do que a iniciativa Belt and Road de 2013, começando a ser desenvolvida a partir do final da Guerra Civil em 2002, constituindo-se a China no principal financiador da reconstrução que se sucedeu. Neste momento, considerando os dados oficiais do Banco Nacional de Angola (BNA), o stock da dívida pública de Angola em relação à China é 18,4 mil milhões de dólares (biliões na designação anglo-americana), correspondendo a 37% da dívida total. Mais do que isso, os números mostram que entre 2019 e 2023 esse montante desceu de 22,4 mil milhões para 18,4 mil milhões. Tal significa que, em quatro anos, Angola pagou – só de capital, sem contar com juros – 4 mil milhões de dólares à China[18]. Tem sido notado por todos o peso que o pagamento da dívida pública tem no Orçamento Geral do Estado, notando-se sérios apertos nas Finanças Públicas angolanas em 2023, e antevendo-se que o mesmo aconteça em 2024, sobretudo a partir de Março, tendo em conta as necessidades de pagamentos à China.

Embora, não entendamos que o pagamento da dívida à China coloca em causa a solvabilidade do Estado angolano, entendemos que tem um efeito crowding out muito significativo, uma vez que retira recursos do Orçamento Geral do Estado que poderiam ser destinados ao desenvolvimento e ao sector social para pagamento de dívida, dívida que em certa parte é polémica, uma vez que houve uma utilização muito questionável dos empréstimos: Parte dessa dívida foi destinada a infraestruturas descartáveis, como estádios e estradas que hoje estão em condições precárias. Além disso, uma parcela significativa desses empréstimos acabou apropriada privadamente por dirigentes angolanos, prejudicando a economia do país.

Há um claro problema angolano com a dívida chinesa, que como acabámos de descrever sumariamente, também existe em relação a outros países africanos.

Fig. 3 – Empréstimos chineses a África e Angola (em USD$ biliões)

Fonte: China Africa Research Initiative – Johns Hopkins University (https://www.sais-cari.org/)

 A criação de um mecanismo comum na União Africana (UA) para negociar a dívida chinesa

Sendo a dívida chinesa uma questão africana, não deve continuar a ser encarada bilateralmente, tornando-se evidente que cada Estado, por si, pode ser demasiado fraco para negociar com a China, uma das potências mundiais da atualidade ou para surgir sozinho nas organizações que os credores promovem. Os credores unem-se, enquanto os países africanos os enfrentam sem apoio, individualmente.

Seria importante que a Conferência da União Africana, órgão supremo da UA composto pelos chefes de estado e de governo (art.º 6 do Acto Constitutivo da UA) criasse um Comité Conjunto de Negociação da Dívida Chinesa (art.º 6.º, d) de si dependente, mandatado para negociar com as autoridades chinesas um quadro global de reajustamento da dívida africana para com a China, que depois seria aplicado a todos os que pretendessem um aligeiramento da divida.

Torna-se evidente que a negociação da divida africana com a China é um processo complexo que envolve a interação entre as diferentes partes com interesses e objetivos distintos. Para alcançar o sucesso é fundamental considerar a unidade africana para exigir a cooperação chinesa. Essa unidade traduz-se, desde logo, em reunir informações e obter o máximo de elementos para a negociação, o que um órgão conjunto pode facilitar. Em negociações complexas, o tempo e a capacidade de entender o outro são aspetos fundamentais, e nesse sentido, uma solução una africana permitirá uma muito maior troca de experiências, e, simultaneamente, um acompanhamento mais técnico, menos emotivo e com mais peso negocial da negociação.

Torna-se fundamental que África delineie uma política conjunta para lidar com a dívida chinesa de igual para igual e não numa posição de fraqueza.

Uma solução clara é fazer passar todas as negociações por um corpo unido africano dentro da União Africana, tornando-se numa negociação alargada União Africana-China. Tal permitiria igualmente reforçar a unidade do continente berço.


[1] https://www.reuters.com/world/africa/chinese-loans-africa-plummet-near-two-decade-low-study-2023-09-19/

[2] Africa Defense Forum Magazine:  https://adf-magazine.com/pt-pt/2022/02/dividas-com-a-china-colocam-20-paises-africanos-em-dificuldades-financeiras/

[3] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cmj544lg205o

[4] idem

[5] https://www.voanews.com/a/china-s-lending-to-africa-hits-a-low-study-shows/7280214.html

[6] idem

[7]  Visual Capitalist: https://www.visualcapitalist.com/countries-loans-from-china/

[8] South China Morning Post: https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/3250552/china-africa-trade-hit-282-billion-2023-africas-trade-deficit-widens-commodity-prices-key-factor

[9] Visual Capitalist:  https://www.visualcapitalist.com/countries-loans-from-china/

[10] Associated Press: https://apnews.com/article/zambia-debt-restructuring-deal-china-a0d14e7af986e2f873555685cedb86b3

[11] Afronomics Law: https://www.afronomicslaw.org/category/african-sovereign-debt-justice-network-afsdjn/one-hundred-and-fourth-sovereign-debt-news

[12] https://www.reuters.com/world/africa/china-says-its-official-bilateral-loans-are-less-than-5-ghana-debt-2023-03-02/

[13] Economist Intelligence:  https://www.eiu.com/n/china-and-africas-long-road-to-debt-recovery/

[14] https://www.reuters.com/markets/rates-bonds/ghana-pushes-simple-debt-rework-proposal-bondholders-sources-2024-01-30/

[15] idem

[16] Observer Research Foundation: https://www.orfonline.org/research/the-changing-face-of-ethiopia

[17] idem

[18] Rui Verde, https://www.makaangola.org/2024/01/angola-eua-trump-e-divida-a-china/