O mundo unipolar desapareceu para sempre

“Mais do que um espaço económico, o Fórum Macau tem que funcionar como “ponte estratégica para promover confiança política e aproximação cultural entre a China e o mundo lusófono”, diz João Shang, investigador associado no Centro de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social de África (CEDESA). Para o investigador, os PALOP “não constituem uma potência económica ou militar comparável a outros blocos regionais, mas têm um valor significativo em termos culturais, linguísticos e geopolíticos que a China valoriza”

Como é que Pequim vê os PALOP dentro da sua relação mais ampla com a África?

João Shang — A China tem-se esforçado por construir boas relações com todos os países africanos e, naturalmente, isso inclui também os seis países lusófonos africanos. Apesar do peso económico dos PALOP não ser muito grande, a China pretende manter uma amizade de longo prazo. Entre os PALOP, Angola, Moçambique e a Guiné Equatorial são atualmente os parceiros comerciais mais importantes da China, devido ao elevado volume de trocas comerciais; Cabo Verde e São Tomé e Príncipe destacam-se como destinos turísticos para viajantes chineses; e as relações políticas com a Guiné-Bissau mantêm-se num ótimo nível no plano internacional.

Dado o alargamento dos BRICS e o papel da China nesse processo, vê espaço para que os PALOP — em particular Angola — possam aderir num futuro próximo?

J.S. – O mundo de hoje é diversificado, o mundo unipolar desapareceu para sempre. Por isso, é necessário cultivar uma atmosfera cultural e política diversificada, sobretudo entre os países do Sul Global, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. O surgimento dos BRICS corresponde à expectativa de muitos desses países, que procuram obter mais benefícios e apoio através dessa plataforma.

Na realidade, o papel dos BRICS é muito diferente do das alianças ocidentais. Não se trata de uma entidade militar, mas sim de um mecanismo económico, no qual todos os membros têm direitos iguais. Não existe um líder que controle os BRICS — China, Índia ou África do Sul têm direitos equivalentes. Portanto, não se pode dizer que a China seja o “líder” dos BRICS.

Atualmente, a África do Sul procura atrair mais países africanos para o grupo. A Etiópia e o Egito tornaram-se membros oficiais em 1 de janeiro de 2024. Além disso, após a cimeira de 2023, países como o Zimbabué e a Argélia manifestaram interesse em aderir, embora ainda não o tenham feito. Os países lusófonos africanos precisariam de apresentar formalmente a sua candidatura.

Nos últimos anos, o Governo angolano tem-se aproximado dos Estados Unidos e a relação com a Rússia não é boa. Parece-me, por isso, que Angola terá primeiro de convencer Moscovo a apoiar a sua entrada. A China, por seu lado, continua ao lado de Angola. Em 2024, os dois países assinaram a Declaração Conjunta sobre o Estabelecimento da Parceria de Cooperação Estratégica Global, um acordo de grande importância que reforça os laços bilaterais.

Considera que uma eventual federalização ou integração política mais forte dos PALOP os tornaria parceiros mais atrativos para a China?

J.S. – No cenário mundial, os PALOP não constituem uma potência económica ou militar comparável a outros blocos regionais, mas têm valor significativo em termos culturais, linguísticos e geopolíticos. Angola e Moçambique destacam-se como as maiores economias do grupo, sobretudo graças ao petróleo, gás natural, carvão e outros minerais estratégicos. Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, apesar da sua dimensão, têm importância estratégica devido à localização atlântica, servindo como pontos de apoio logístico e de segurança marítima.

Politicamente, os países do grupo participam ativamente na União Africana e nas Nações Unidas, muitas vezes de forma coordenada. Angola tem desempenhado um papel relevante na mediação de conflitos regionais, enquanto Cabo Verde se afirma como exemplo de estabilidade democrática em África.

Assim, a China vê oportunidades de cooperação acrescidas com os PALOP, sobretudo na importação de matérias-primas e no setor agrícola. Há, portanto, muito espaço para expandir a cooperação.

Angola é o segundo maior parceiro comercial lusófono da China, depois do Brasil, mas as suas exportações para Pequim têm vindo a cair. Quais são os fatores que explicam esta queda e como poderá Angola diversificar as suas exportações para além do petróleo?

J.S. – As exportações angolanas para a China deverão cair cerca de 17% em 2025, sobretudo porque Pequim diversificou os seus fornecedores de petróleo, privilegiando países como a Rússia e outros no Médio Oriente, com preços e custos de transporte mais baixos. Assim, a diminuição das compras de petróleo angolano não surpreende.

Além disso, Angola atravessa atualmente um período económico difícil. A escassez de divisas, os cortes nos subsídios, a desvalorização da moeda, o aumento dos preços do petróleo e a inflação reduziram o poder de compra interno, levando também à queda das importações provenientes da China.

Desde 2014, o Governo angolano tem tentado diversificar a economia, consciente dos riscos da chamada “doença holandesa” [Em economia, doença holandesa refere-se à relação entre a exportação de recursos naturais e o declínio do setor manufatureiro]. Foram promovidos projetos agrícolas, mineiros, industriais e turísticos para reduzir a dependência do petróleo. Contudo, a reforma económica revelou-se um teste exigente para todo o sistema governativo, exigindo forte coordenação interministerial.

Onze anos depois, o petróleo continua a ser o pilar da economia, dada a sua elevada rentabilidade e os menores custos de investimento comparativamente a outros setores. Houve investimentos em agricultura e mineração, mas com resultados limitados. O Governo instou as províncias a atrair mais investimento, mas o ambiente de negócios desafiante tem afastado investidores ocidentais. As empresas chinesas, por sua vez, concentram-se sobretudo na construção e no comércio, criando empregos e mais recentemente apostando em fábricas locais, o que gera oportunidades para a juventude angolana.

Angola tem laços históricos com a Rússia e está também a explorar parcerias com a União Europeia. Como é que a China gere a diplomacia multivetorial angolana?

J.S. – Antes de mais, a China segue uma política de não-interferência nos assuntos internos de outros países, reconhecendo que o Governo angolano tem o direito de escolher os seus próprios parceiros. Atualmente, as relações entre Angola e a Rússia estão a desenvolver-se, mas não de forma tão sólida como se poderia esperar. Interesses divergentes conduziram a abordagens distintas e até conflituosas, levando cada parte a seguir a sua própria agenda.

Desde 2017, Angola tem procurado financiamento e apoio ocidental. Contudo, muitos desses apoios não se materializaram na prática. Um exemplo é o Corredor do Lobito: após os EUA anunciarem de forma abrupta que não participariam no projeto, Angola viu-se obrigada a procurar assistência junto de países árabes, de Israel, da Coreia do Sul e do Banco Africano de Desenvolvimento.

Quão eficaz tem sido a promoção de investimento e comércio via Fórum Macau, sobretudo para economias mais pequenas como São Tomé e Príncipe ou a Guiné-Bissau?

J.S. – Um dos papéis centrais do Fórum Macau é o de aprofundar a cooperação económica e comercial. Têm sido promovidos investimentos bilaterais, facilitação do comércio e parcerias em setores estratégicos como energia, infraestruturas, agricultura, pescas e finanças. Para além disso, iniciativas como o Fundo de Cooperação e Desenvolvimento China–Países de Língua Portuguesa apoiam projetos concretos de desenvolvimento.

O Fórum desempenha igualmente um papel importante no intercâmbio cultural e humano. Através de programas de formação e capacitação, promove-se a transferência de conhecimento e o fortalecimento das relações entre profissionais e instituições. Macau, pela sua herança sino-lusófona e pelo uso oficial da língua portuguesa, funciona como ponto de encontro privilegiado nesse diálogo.

Sendo a única cidade da China onde o português é língua oficial, Macau pode servir de ponte entre a China e os PALOP. O Fórum de Macau, em articulação com a CPLP, constitui uma plataforma estratégica de intercâmbio e cooperação, onde o idioma comum reforça a confiança e a proximidade entre os membros. Em síntese, o Fórum Macau é muito mais do que um espaço económico: é uma ponte estratégica que promove confiança política, desenvolvimento conjunto e aproximação cultural entre a China e o mundo lusófono.

Tendo em conta as mais recentes estatísticas que mostram uma queda nas exportações dos PALOP para a China, espera que Pequim reajuste as suas políticas ou os seus instrumentos de financiamento, como o Fundo de Cooperação para o Desenvolvimento China–Países de Língua Portuguesa?

J.S. – A China tem interesse em manter relações comerciais robustas com os PALOP, tanto para garantir o fornecimento de matérias-primas (petróleo, minerais, etc.) como para expandir o acesso a novos mercados consumidores.

Em 2023, o Fundo Sino-Lusófono flexibilizou as regras de acesso ao financiamento, permitindo que mais empresas lusófonas recorressem às suas linhas de crédito. Essa tendência poderá traduzir-se em mais capital, empréstimos mais acessíveis ou condições financeiras mais favoráveis (juros, prazos, garantias) para projetos de exportação ou produção nos PALOP.

A ideia é também incentivar os países produtores a agregar valor aos seus produtos, para exportarem não apenas matérias-primas, mas também bens transformados com maior valor acrescentado. Outro eixo de ação passa por apoiar reformas portuárias, infraestruturais e aduaneiras, reduzindo tarifas e barreiras não-tarifárias que ainda dificultam as exportações africanas.

Desde o Fórum de Cooperação China-África de 2025, Pequim concedeu isenção de tarifas a 90% dos produtos provenientes de países africanos, pelo que os PALOP podem beneficiar significativamente dessa medida.

A EVOLUÇÃO DO PAPEL POLÍTICO DA MULHER ANGOLANA

Por: Tânia de Carvalho

Nota introdutória:         

Angola este ano completa cinquenta anos de soberania nacional, no entanto, a presença das mulheres na liderança e na política continua sendo um tema de debate e transformação, sobretudo por ser um país onde os desafios históricos e culturais moldam o cenário político. Um cenário político que sempre negou à mulher um lugar de protagonista nas diferentes lutas de libertação nacional e alcance da estabilidade política.

A presente legislatura, historicamente, é a legislatura que mais mulheres elegeu. Num universo de duzentos e vinte lugares, noventa mulheres foram eleitas parlamentares. Dos cinco partidos políticos com assento parlamentar, as duas maiores forças políticas praticamente partilham entre si os noventa lugares conquistados pelo género.

O MPLA, elegeu 124 deputados, dentre os quais 75 mulheres e 52 homens, a UNITA, elegeu 90 deputados, dentre os quais 76 homens e apenas 14 mulheres. O Partido Humanista de Angola, elegeu apenas uma mulher, que por sinal, é a Presidente do próprio partido.  O que que estes números podem representar para a sociedade angolana? O que nos quer dizer um partido político histórico, quando a sua lista parlamentar não respeita os desígnios do empoderamento do género ou mesmo quando não caminha para a paridade?

Contexto:

O percurso histórico de Angola é profundamente marcado por longos períodos de violência, resultantes sobretudo, do processo de escravidão, colonização, colonialismo, fascismo e da guerra civil. Estes períodos influenciam a prática quotidiana da cidadania e participação, na medida em que condiciona a génese das dinâmicas e processos sociais que caracterizam a situação política, económica, social e cultural presente.

Os eventos históricos, as dinâmicas políticas que em muitas casos contrariam a moral e a própria Constituição da República, assim como a situação económica e social, contribuíram em grande medida para um afastamento dos angolanos e das angolanas sobre as questões de política, governação e, consequentemente, para um fraco exercício de cidadania e participação pública e política (Domingos:2015). No entanto, vale lembrar que, nas últimas legislaturas (2017-2022), registou-se um forte crescimento da consciência política e cívica assim como aumento qualitativo no debate público. Pelo que, permitimo-nos questionar os mecanismos para o cumprimento dos instrumentos internacionais ratificados para mudar as questões de género em angola, assim como o impacto das reais nomeações e ou indicações de mulheres a cargos de liderança, direcção e chefia na avida de outras mulheres que compõe os 52% da população angolana, como reza o Censo de 2014 (INE:2014).   

Podemos afirmar ser uma preocupação do governo angolano lidar com as questões relativas ao empoderamento e igualdade de género em Angola, atesta veracidade a essa afirmação os diferentes instrumentos internacionais ratificados e implementados ao longo dos 50 anos de independência nacional.

Um ano depois da proclamação da nossa independência, no dia 1 de dezembro de 1976, Angola passou a fazer parte das Nações Unidas, no mesmo ano, foi declarada a década para as mulheres das Nações Unidas, um período que durou entre 1976 a 1985.

INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS RATIFICADOS PELO GOVERNO ANGOLANO

1984 – Angola ratificou a Convenção sobre eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (CEDAW).

1990 – Enquanto estado membro da União Africana, Angola ratificou a carta africana sobre os direitos humanos e dos povos que reconhecem os instrumentos regionais e internacionais relativos aos direitos humanos e às práticas africanas mormente à protecção dos direitos da mulher;

1995 – Na Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres em Beijing, foram assumidos compromissos nacionais em prol da igualdade entre mulheres e homens e da capacitação das mulheres angolanas,

1997 – Angola subscreveu a Declaração de Género e Desenvolvimento da SADC, segundo a qual os Chefes de Estado e de Governo da SADC se comprometem a: Alcançar a meta de, pelo menos, 30 por cento de mulheres nas estruturas políticas e de tomada de decisão até 2005; promover o pleno acesso e controlo por parte das mulheres, sobre os recursos produtivos para reduzir o nível de pobreza entre as mulheres; revogar e reformar todas as leis, emendar constituições e mudar práticas sociais que ainda sujeitem as mulheres a discriminação; os Estados comprometem-se ainda em tomar medidas urgentes para prevenir e tratar dos níveis crescentes de violência contra as mulheres,

2003 – Angola ratifica à Carta Africana Sobre os Direitos Humanos e dos Povos, comummente conhecida por Protocolo de Maputo, que é um instrumento internacional de direitos humanos que visa proteger e promover os direitos das mulheres em África. É um dos instrumentos mais importantes no âmbito da luta pelos direitos da mulher, 80% dos Estados Membros da União Africana já o ratificaram.  

A nível interno, vários instrumentos foram criados o que sustenta um quadro legal efetivo para materialização de acções que possam garantir um cenário favorável para igualdade de género, por exemplo, a Política Nacional para Igualdade e Equidade de Género de Angola, aprovada em 2013, pelo Decreto Presidencial nº222/13.

A MULHER ANGOLANA, CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO

Margarida Paredes (2015), toca a nossa alma quando descreve com emoção os relatos das mulheres que têm experiência de vida militar entrevistadas para a sua pesquisa sobre as mulheres na luta armada em Angola.  Mulheres que também estiveram na linha de frente dos diferentes combates, mas, no entanto, hoje ainda lutam pelo reconhecimento igual aos homens militares e nacionalistas. Em muitos casos, uma ausência de reconhecimento que as impede de serem incluídas na história como protagonistas as mulheres procuram quebrar o silêncio na primeira oportunidade declinando o anonimato e a reclamar acessos aos espaços públicos como sujeitos históricos quebrando a narrativa de vítimas do processo histórico.

“O que o homem pode, a mulher pode” é uma frase que motivou e guiou o sonho de vitória das mulheres que estiveram nas diferentes lutas e viverem a experiência de guerra no feminino independentemente do lado da guerra (Paredes:2015).

O que o homem pode, a mulher pode, é uma frase que ainda ecoa diferente quando o assunto é o reconhecimento das batalhas vencidas no dia a dia das vidas das mulheres angolanas, mas que transmite reconhecimento por parte das mulheres angolanas das suas próprias capacidades e compromisso com a pátria nos mais diferentes lugares que a sociedade angolana as oferece. 

Segundo dados do censo da população angolana, realizado em 2014, as mulheres representam 52% da população. Essa mesma mulher é o rosto da economia informal considerada como a coluna vertebral da economia formal, a mesma mulher que também é o rosto da pobreza em Angola[1].

Segundo a Organização Internacional do Trabalho/OIT, a economia informal  representa cerca de 60% da população mundial economicamente ativa, para o caso de Angola, em particular, as estáticas do género na informalidade, deve reconhecer a economia informal enquanto uma via para o crescimento económico e social do país e a redução da pobreza, concomitantemente ela também deverá ser reconhecida como a manifestação pura dos altos índices de pobreza do género e a negação de determinados direitos, por parte dos órgãos de governação, como é o caso do direito ao acesso ao Bilhete de identidade (Mosaiko:2020).

A MOSAIKO[2], no seu relatório sobre avaliação participativa sobre o acesso à justiça, 2019-2020; conclui que a desigualdade no acesso ao Bilhete de identidade promove desigualdade em todos os outros sectores. 

A situação da Mulher e da Criança, em Angola, apesar dos esforços do Governo e da Sociedade Civil, continua a ser precária em muitos aspectos: acesso a documentos de identificação pessoal, à Saúde, ao emprego no sector formal e à Educação (dados de 2018 do Ministério da Educação apontam que o número de inscritos no ensino primário é equilibrado, em termos de Género, mas as meninas representam maior taxa de abandono escolar e menor número de inscrições no Ensino Superior). O Acesso à Justiça também é mais difícil, para Mulheres e Crianças (embora por razões diferentes), e a desigualdade no acesso a este Direito promove desigualdade em todos os outros sectores.” (MOSAIKO 2020:21)

Inicialmente, podemos afirmar que quem não tem bilhete de identidade não existe. Uma afirmação que traduz o drama real dos indivíduos com essa dificuldade, quem não tem bilhete de idade não contribui, pois, não tem o número de identificação fiscal, quem não tem bilhete de identidade não conta nas estatísticas nacionais, o que agudiza a dificuldade das mulheres para verem os seus filhos registados.

“O Registo de uma criança exige a apresentação dos documentos dos seus progenitores. Para famílias em que ninguém tem documentos, esta situação provoca uma impossibilidade de romper o ciclo de falta de documentos. Há também situações em que o avô da criança é o único a ter documentos, mas o seu Bilhete de Identidade “é daqueles, dos antigos” e, segundo os relatos, os funcionários do Posto de Registo não aceitam documentação que não está actualizada, inviabilizando o Registo dos descendentes”

 “Tenho uma vizinha, mãe de gémeos, não tem documentos. O avô dos gémeos tem aquele bilhete amarelo, com esse bilhete antigo, a filha não tem documentos” (Mulheres, Mbanza Congo, Zaire). Segundo um informantechave, “há previsão de realização de Registo Civil em massa, nas escolas, mas o facto de os pais não terem bilhete, isso vai continuar a atrapalhar. Vai ser a mesma coisa, poucos serão registados” (representante da delegação da Educação, Mbanza Congo, Zaire)”

(MOSAIKO 2020: 43)

A ausência do bilhete de identidade, inicialmente, condiciona a possibilidade do exercício de um dos direitos mais alto a nível da nossa soberania, que é o direito ao voto, pelo que, a realidade para o registo eleitoral comparativamente ao acesso ao bilhete de identidade é completamente diferente.

O dever cívico de registo eleitoral está salvaguardado pela mesma instituição que a todos os níveis, devia facilitar a emissão do bilhete de identidade, no entanto, é a mesma instituição que se reservou ao direito de criar mecanismos para o registo eleitoral, ainda que na ausência do Bilhete de identidade, desacelerando, deste modo, todos os exercícios para facilitar o acesso ao Bilhete de identidade.   

A professora Cesaltina Abreu, define cidadania como um conjunto dos direitos e deveres de um indivíduo que lhe permitem intervir na direcção dos assuntos públicos do Estado, participando de modo directo ou indirecto na formação do governo e na sua administração: ao votar (directo) ou ao concorrer a um cargo público (indirecto) (MOSAIKO:2020).

A   ativação da cidadania, mesmo   nas   sociedades   democráticas contemporâneas, está condicionada ao paradoxo entre liberdade e igualdade. Efectivamente, se no plano formal as pessoas são livres nas suas escolhas e opções, no   plano   material   esta   liberdade   fica   aprisionada   às   diferentes condições de existência de cada indivíduo.  (Ferreira 2010).

Garantir a liberdade e cidadania das mulheres angolanas, é um imperativo que deve começar por definição, desenho e implementação de políticas públicas que sejam inclusivas, abrangentes e realistas para as jovens, raparigas e mulheres rural periurbana e urbana. Lembrar que, políticas públicas, quer como discurso quer como prática, é um conceito que vem ganhando cada vez mais importância nos domínios públicos e administrativos dos Estados. Dois factores podem ser apontados como responsáveis por isso: por um lado, o aumento da consciência social sobre os usos dos recursos de exercício da cidadania, às várias demandas populares sobre a gestão dos seus interesses públicos — o que tem contribuído para uma maior pressão sobre o aumento da qualidade da construção do processo democrático; e, por outro lado, como já referimos acima, o compromisso com o cumprimento dos vários acordos e convenções que o país tem ratificado. Como exemplo, a agenda mundial governamental dos últimos anos: os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas.

A mulher é a principal vítima de violência doméstica. Em termos de privação, é o individuo com menos acesso a recursos, direitos e oportunidades, consequentemente, também está excluída dos mais recentes processos de transição verde e transformação digital. Os principais dados apontam para uma estratificação regional e de género da pobreza em Angola (INE, 2020). As populações nas áreas rurais, são as que mais sofrem com a pobreza multidimensional, e dentro deste grupo, as mulheres estão ainda mais abaixo (GOV, 2017, 2022; INE:2020). A proporção de mulheres no sector agrícola é maior em comparação aos homens. Elas constituem mais de 70% da mão-de-obra neste sector, sendo também as principais responsáveis pela gestão do lar, pelas actividades domésticas e pela produção agrícola para a sobrevivência do agregado familiar (Telo:2024)

A MULHER RURAL EM ANGOLA

Os constragimentos relacionados com a Mulher Rural em Angola datam desde a era colonial, por causa do conflito armado que o país viveu, grande parte dos campos que eram utilizados para o cultivo e a produção dos principais produtos de subsistência acabaram por ser minados. Como consequência a pobreza extrema e desigualdades sociais é um dos grandes desafios para a sociedade angolana. O perfil sociocultural do meio rural em angola é o barómetro fiel do nível das desigualdades sociais económicas e políticas que o país vive.

No meio rural as dificuldades são mais acentuadas, pelo que, a mulher rural enfrenta dificuldades de acesso aos direitos sociais básicos, como saúde, educação, emprego, acesso ao bilhete de identidade e consequenteme, acesso a posse de terra e a recursos naturais. “No caso das mulheres, a titularidade, além da posse de terra, pode ser considerada como requisito indispensável para as situar nos processos de produção que concorrem para o empoderamento económico, a sustentabilidade da sua actividade agrícola virada para o auto-sustento e empresariado (Telo:2024).

O relatório temático sobre o género produzido pelo INE – Instituto Nacional de Estatística entre 2017 a 2019 mostra-nos que os agregados familiares liderados por mulheres representam um terço e os liderados por homens dois terços, a maior proporção dos agregados familiares vive nas áreas urbanas, representando 59,5% dos mesmos. O mesmo relatório conclui que cerca de 19% das mulheres chefes de agregados familiares, não possui nenhum nível de escolaridade ao contrário de 24,4% para os homens chefes dos agregados familiares. Entretanto, 20,1% dos homens chefes de agregados familiares possuem o nível secundário ou o superior ao contrário das mulheres, que ficam em apenas 3,5% (INE:2022)

Por Despacho Presidencial N.º 14/18 de 19 de fevereiro, foi criado o Programa “MINHA TERRA” assim como a comissão interministerial sobre coordenação do Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República de Angola. O programa consiste em atribuir títulos de concessao de terra às famílias camponesas para garantir segurança, inibir a usurpação de terrenos, combater a pobreza e assegurar o desenvolvimento económico.

Dois anos depois da sua criação, a comissão interministerial cuja uma das atribuições era Promover a atribuição de direitos fundiários aos detentores de parcelas de terrenos que reúnam os requisitos legais, produziu um relatório onde deixa claro que um dos constrangimentos era a “Ausência de um Quadro Normativo para a Atribuição de Direitos Fundiários no Âmbito do Programa Minha Terra, em forma de Decreto” (PMT- 2020).

Se no cômputo geral a realidade angolana nos mostra a mulher como a primeira vítima da pobreza, a mulher rural é o rosto mais carcaterístico da pobreza em Angola. É interessante ver como a história da mulher rural é descrita pelos dados estatísticos descritos socioculturalmente pelo sociólogo Eugénio Silva, que nos apresenta um quadro desfavorável que não só torna difícil a vida das mulheres do meio rural, como também as remete para condições pouco dignas de existência.

Numa sociedade onde apenas 22,8% da poppulação tem acesso a água potável, e apenas 31,1% tem acesso a saneamento básico, a mulher e crianças são logo as primeiras vítimas, fazendo estatísticas nos índices de mortalidade materno infantil, assim como também no aumento do volume de trabalho de cuidados, a mulher tem que peercorrer longas distâncias para acarretar água apara o consumo de toda a família, por socialização, acredita-se, ser a mulher a resposanvel pelos trabalhos de cuidados.  Numa sociedade onde a taxa de analfabestimos sugere 66% para as mulheres no seio rural é imperioso questionarmos o impacto real das políticas públicas de alfabetização no seio rural.

A Constituição da República de Angola estabelece o princípio da igualdade de género, proibindo qualquer discriminação em função do sexo (art. 21º, alínea h, e 23º nº 2 da CRA). O relatório do Projecto Matuning sugere que, na prática, as disparidades são evidentes, incluindo o acesso à terra para a prática agrícola.

No âmbito do projecto MA TUNINGI[3], constatou-se que a posse de terra é, em regra, masculina, apesar de a maioria informar ser um bem do casal. Pelas práticas locais, a mulher, quando se separa do marido, perde a posse da terra porque “não estava mais na casa dele”. Igualmente, constataram-se casos de aquisição por herança materna ou paterna. Nos últimos anos tem havido mais casos de venda de terra, mas nem sempre há consenso entre a família, pois já houve situações em que o pai vendeu a terra e os filhos não aceitaram, por não concordarem com o valor cobrado. Neste caso, não foi mencionada a posição da mãe/esposa neste processo. (Telo:2024)

MULHER ANGOLANA NA SOCIEDADE CIVIL

Âurea Mouzinho e Sizaltina Cutaia, são duas mulheres incontornáveis no histórico das mulheres angolanas na sociedade civíl. Ambas são co-fundadoras de um dos movimentos mais pró-activos em prol dos direitos das mulheres, que é o movimento Ondjango feminista. Ambas também são autoras de um artigo escrito em 2017, onde emitem as suas opiniões sobre as organizações femininas em Angola.  (https://www.ondjangofeminista.com/ondjango/2021/10/31/reflexes-sobre-as-organizaes-feministas-em-angola-1 )

Concordamos com as autoras quando afirmam que a história das organizações femininas em a Angola confunde-se com a história da Organização da Mulher Angolana (OMA)[4], no entanto, na sociedade angolana, também é unânime o reconhecimento deste órgão na luta contra a violência doméstica. A OMA vem actuando como um Centro de reconciliação de famílias, no entanto, sem poder jurídico, o que não retira o seu mérito no trabalho e contributo para as causas da família e da mulher realizado junto ao MASFAMU[5], com o contributo da mesma organização e também da sociedade civil, hoje o país tem a Lei nº 25/11 de 14 de julho de 2011 que estabelece o regime jurídico de prevenção da Violência doméstica, de proteção e assistência as vítimas.

… “A OMA relizou actividades importantes que sustentaram a resistência do MPLA durante a luta de libertação. Trabalhando como educadoras, professoras, secretárias, correspondente, activista, camponesas e cuidadoras, as suas membras també fizeram programas de rádio com informações sobre a luta, distribuiram panfletos e angariaram fundos para o movimento de libertação” … “As mulheres da OMA também estiveram activamente envolvidas na linha de frente a lutar lado a lado com os homens, enfrentando os mesmos desafios e a sofrerem as mesmas consequências, as mulheres do esquadrão KAMY foram notáveis a este respeito, incluindo Deolinda Rodrigues que é uma figura de liderança importante para as feministas”… (Ondjango Feminista)

Em Angola, apesar de que o cenrário social, económico e financeiro, não estar ainda a seu favor, as mulheres, têm conseguido conquistar algum espaço de participação, quer através de organizações, associações e movimentos sociais, algumas até de modo individual. Por intermédio de vérios mecanimos (relatórios, estudos de caso, manifestações, workshops, seminários e outros), elas procuram influênciar a elaboração de políticas a seu favor.  As mulheres da sociedade civil têm desempenahdo um papel incomensuravel na luta pela emancipação das mulheres, promovendo deste modo, a igualdade de género. 

Ao longo dos anos, surgiram inúmeras organizações e movimentos que acolhem mulheres dos diferentes seguimentos sociais que trabalham nas diferentes perspectivas sobre as questões de género e ou fazem militância em prol da emancipação da mulher em Angola, a destacar[6];

Associação de Apoio a Mulher Polícia de Angola (AAMPA) – Fundada no dia 15 de dezembro de 1995, é uma associação de apoio à Mulher Polícia de Angola (AAMPA) que actua em parceria com a Rede Mulher Polícia de Angola (RMPA) e a REMPA,

Associação de Mulheres Empresarias de Luanda (ASSOMEL) – Fundada em 1991, é uma associação sem fins lucrativos em que um dos principais objectivos é assegurar a representação das mulheres empresárias, face aos poderes públicos, organizações públicas nacionais ou estrangeiras, ou qualquer outra pessoa singular ou colectiva, em todas as questões relacionadas com a dupla qualidade de Mulher Empresária (Serra: 2007),

Comité das Mulheres Sindicalizadas – Fundado a 28 de abril de 1998,

Federação de Mulheres Empresárias de Angola (FMEA) – Criada em 2001 tem o propósito de fomentar o diálogo entre as diversas entidades de actividades económicas, sendo porta-voz das associaçoes empresariais e empreendedoras femininas das instituições do estado,     

Fórum de Mulheres Jornalistas para Igualdade de Género (FMJIG)- Em outubro de 2009 nasce o fórum como resultado do primeiro encontro internacional de mulheres em Angola sobre a a participação política das mulheres na resolução das questões relacionada à violência de género, o Forúm que hoje é uma organização que reúne jornalistas de entidades públicas e privadas para desenvolver projectos que visem alcançar a igualdade de género bem como a advocacia através dos meios de comunicação social.  

Associação Angolana de Mulheres de Carreira Jurídica – Criada no dia 15 de março de 1995, segundo os seus estatutos tem como maior atribuição a elaboração de estudos sobre matérias que no domínio do direito, sejam relevantes para a efectivação de direitos e oportunidades legalmente consagradas, assim como fomentar a troca de experiências e de conhecimento a nível nacional e internacional.

Rede Mulher – fundada no dia 04 de agosto de 1998, é um fórum de organizações não governamentais, organizações comunitárias de base que defendem interesses de género, de carácter voluntário, apartidário e sem fins lucrativos sobre o ponto de vista administrativo e financeiro.

Rede Mwenho – Fundada no dia 04 de agosto de 2004, por um grupo de mulheres seropositivas, sobre a iniciativa da Rede Mulher Angola e Acção humana não governamental, filantrópica e sem fins lucrativos, um do seus maiores objectivos é trabalhar para melhorar a qualidade de vida das mulheres e crianças seropositivas a nivel nacional.

Ondjango Feminista – Em junho de 2016, oito mulheres fundaram, esta que é a primeira organização feminista em Angola. O colectivo Ondjago Feminista, um movimento autónomo que advoga por uma agenda feminista transformadora a partir da perspectiva de justica social, solidariedade e liberdade.

Unidas Somos Mais Fortes (USMF)– Fundado no dia onze de novembro de 2019, com a finalidade de promoção da igualdade de género e a defesa dos direitos das mulheres e meninas, através da realização de acções e iniciativas que contribuam para a eliminação das desigualdades para o empoderamento das mulheres em todas as esferas da sociedade.

Hoje podemos dizer que existem muitas outras organizações fóruns e movimentos sociais que convergem na luta pela inclusão das mulheres nas diferentes dimensões. Não podemos ignorar os passos dados ainda durante a luta anti-colonial, com a criação das organizações de mulheres (ala feminina) no seio dos movimentos de libertação nacional (Domingo et al.: 2023).

A EVOLUÇÃO DO PAPEL POLÍTICO DA MULHER ANGOLANA EM ANGOLA

A segunda metade do sec. XX registou os verdadeiros picos de descolonização em África (1950, 1960, 1975). Em angola, a revolta dos camponeses da Baixa de cassanje, que ocorreu no dia 4 de janeiro de 1961 é o marco histórico de ínicio da luta pela libertação de Angola. Entre 1960 e 1975, a participação da mulher na luta de libertação nacional foi árdua e sofrida. A mulher sempre esteve presente em diferentes eventos, no entanto, o lugar que a ela sempre foi reservado, me faz questionar a qualidade e quantidade dos lugares de mando e chefia ocupado pelas mulheres nos diferentes processos que compõe a história política de Angola, desde a luta de libertação nacional aos acordos de Luena.  Um questionamento válido diante dos números ínfimos que ela representa nos poderes decisórios e governativos em Angola.

Dentre os três movimentos de libertação Nacional, O MPLA foi o primeiro movimento a criar o braço feminino do seu partido, no dia 2 de março de 1962. Segundo os seus estatutos iniciais, no seu artigo primeiro, a organização denomina-se Organização da Mulher de Angola (OMA)[7], cujo um dos seus objectivos determinou a sua agenda de trabalho ao longo do tempo.

“A integraçãpo da Mulher de Angola em plena igualdade de direitos com outros membros da sociedade, na futura nação angolana”. (Estatutos da OMA – 1962)

O artigo terceiro dos Estatutos em referência, diz que, “A Organização da Mulher Angola (OMA) é uma organização social constituída pelas Africanas nascidas em Angola sem descriminação de raça, crença religiosa, ideais políticos, lugar de domicílio e estado civil” (Estatutos da OMA:1962). Pelo que, a sua definição estatutária e âmbito de actuação, faz com que o seu histórico seja sempre confundido com o histórico das organizações da sociedade civil em Angola.  

A FNLA – Quando nos referimos a actuação marcante das mulheres como combatentes nas lutas de libertação nacional, referimo-nos às mulheres que ingressaram nas fileiras da luta anticolonial nos três movimentos de libertação nacional, no entanto, devemos concordar com Margarida Paredes, quando afirma que há um silêncio mórbido relativamente à história de vida e ao papel que as mulheres desempenharam nas fileiras da UPA/FNLA (Paredes:2022)             

Segundo o site oficial da FNLA, a AMA foi criado a partir de uma consciência nacionalista presente na década de 50. No histórico de guerrilha, é enfatizado o papel da mulher no transporte de informações e mantimentos aos guerrilheiros, Margarida Paredes (2015), faz menções à participação da AMA nas operaçoes do ELNA – Exército Nacional de Libertação de Angola.   

A UNITA, por sua vez, criou o seu braço feminino na década de 70, muito perto da independência do país, sobre orientaçao baixada em conferência em 1970, somente em 1972[8], foi efectivamente criada a Liga da Mulher Angola (LIMA). A politóloga Yasmim Côrrea, sugere que, o apego à tradição gerava no seio da UNITA um desconforto quando o assunto era o género, o que potencialmente influenciou para o tardio reconhecimento da importância de uma organização de mulheres (Côrrea: 2025)

Acredito que por força da formatação cultural, os discursos dos movimentos de libertação nacional em Angola, enfatizam, reiteradamente, e sempre de forma romantizada o papel da mulher, a ela reservado por socialização, nas funções de cuidado.

 A FNLA, dá ênfase ao papel de mãe, irmã e esposa (Côrrea:2025), o MPLA, enfatiza a educadora que trabalhou na área de alfabetização, a secretária correspondente, a camponesa, ativista e cuidadora (Mouzinho & Cutaia:2017), A UNITA, por sua, vez também enfatiza o lugar de cuidado das mulheres para o atendimento das necessidades básicas das tropas na linha de frente dos combates (unita-angola.co.ao/lima).  

Nos sites oficiais dos três movimentos, não se reconhece um discurso que coloque a mulher no pé de igualdade ou lugar de destaque na guerra. As narrativas oficiais contribuem para a sua minimização (Côrreia:2025).   

MULHERES NAS MESAS DE NEGOCIAÇÃO DESDES OS ACORDOS DE ALVOR (1975) AOS ACORDOS DE LUENA (2002)

A conquista da paz em Angola exigiu esforços de vários atores que atuaram num contexto político completamente hostil e marcado por interesses económicos profundos. A estabilidade política militar resultou de vários processos duros, difíceis e demorados desde 1975. Angola, somente conheceu a estabilidade consistente no dia 4 de abril de 2002.

A luta de libertação Nacional teve como protagonista três movimentos históricos como citados acima, todos eles contaram com um braço feminino criado em anos diferentes no processo de luta de libertação, no entanto, não é notória a presença de mulheres nas mesas de negociações mais importantes ao longo da história nacional, começando inclusive, com o encontro que anteveio a todos os outros processos estruturantes.

No dia 3 de janeiro de 1975, Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi estiveram reunidos com o então presidente da República do Quénia, Jomo Kenyatta. No contexto histórico da independência de Angola, este encontro foi um marco importante nas negociações entre as forças independentes e o governo português. No entanto, apesar de que, aquando da realização do referido encontro os três movimentos já tinham criado os respectivos braços, não há registos da participação direta de alguma mulher durante a referida reunião.       

Chegar ao entendimento pleno, para dirigir o país libertado do jugo colonial e para ultrapassar os resquícios do conflito armado, exigiu dos angolanos a realização de quatro fóruns de concertação político-diplomática, marcados por avanços e recuos. Christine Messiant, socióloga e estudiosa de assuntos africanos, analisou os diferentes encontros marcantes e decisivos no histórico de processo de paz em Angola, sugerindo que pode ser dividida em três períodos de grandes combates – 1975-1991, 1992-1994 e 1998-2002. Entre 1975 e 2002 (Messiant:2004), os protagonistas da libertação nacional e da guerra civil sentaram-se à mesa sob os auspícios da comunidade internacional e rubricaram quatro instrumentos jurídicos, entre acordos, protocolos e memorandos, para “precipitar” o calar das armas. No entanto, ao visitarmos o histórico dos encontros citados, não se regista a presença de mulheres nas mesas de negociação. O que torna imperativo o trabalho conjunto entre todos os órgãos de Estado para a materialização da resolução 1325

A MULHER NO GOVERNO DE (NA LEGISLATURA) / 2022-2027

O género na história da política angolana, também é destacado pela liderança de Anália de Vitória Pereira no Partido Liberal Democrático (PLD). Popularmente apelidada por “mamã Coragem”, na qualidade de primeira e única mulher na corrida eleitoral, conseguiu representação parlamentar nas primeiras eleições em Angola, realizadas em setembro de 1992 (site da Assembleia Nacional)

Sobre o lema “Humanizar Angola”, o Partido Humanista de Angola, foi reconhecido no dia 27 de maio de 2022. Um partido fundado por Florbela Malaquias, concorreu as eleições de agosto de 2022 e conseguiu eleger dois deputados.

Florbela Malaquias, é jurista, já militou no partido UNITA, foi combatente nas FALA, foi jornalista na rádio vorgan sediada na Jamba e também foi jornalista na Rádio Nacional de Angola, é autora do livro polémico intitulado “Heroinas da Dignidade”. Um livro bastante polémico, mas que eventualmente, as repercussões a tenham inspirado sufcientemente para criar o Partido Humanista de Angola.

“…Florbela faz narração de alguns acontecimentos que vivenciou, até meados da década de 1980, na Jamba, “capital da revolução no sul de Angola” (p. 65), traçando um breve retrato daquilo que foi o seu cotidiano familiar e atividade de militante do partido, do qual se destaca o fato de ter sido a autora quem “aperfeiçoou o emblema da primeira guerra e escreveu o hino da LIMA” (p. 46). Narrativa que, podemos caracterizar como enigmática, na medida em que respostas a questões como, quando e em que condições saiu da Jamba e chegou a Luanda e como reconstruiu a sua vida ĕ cam a aguardar resposta, quiçá para o próximo volume” … (Liberato 2020: 107-108)

Florbela Malaquias, conseguiu chamar a atenção da sociedade, preenchendo directamente um vazio à muito identificado. Falta mulheres nas lideranças partidárias. A ausência de representaçoes directas de partidos que tenham como prioridade nas suas agendas as questões relacionadas ao género, sobretudo a condição de vítima directa das atrocidades narradas no seu livro, podem ter contribuido para a popularidade rapidamente conquistada.

…“Ao identificar algumas das mulheres que pereceram durante esse período – queimadas, fuziladas, acusadas de bruxaria ou traição – a autora defende que estas foram as principais sacrificadas: “vítimas nos campos da guerra fratricida, vítimas do sadismo do líder libertador do campo em que se encontravam; vítimas do parceiro íntimo, machista e assustado com a guerra” (p. 186), na medida em que padeceram de todo o tipo de violência – física, emocional, psicológica, sexual, patrimonial, moral, institucional – perpetrada por um sistema agressivo, assente nos princípios patriarcais e tradicionais, encabeçado por um líder que a própria classiĕ ca como um “predador social cruel, vazio de sentimento de remorsos e de culpa… como todo o psicopata” (p. 40)”… ( Liberato 2020: 107-108)

A eleição de Florbela Malaquias, também trouxe uma série de questionamentos cuja ausência de respostas pode causar mais dificuldades ao caminho efectivo para o empoderamento das mulheres em Angola. Uma das questões é; como é que mulheres que ascendem e conquistam lugares de destaque, como é o caso de Florbela Malaquias, podem impactar as outras para trilharem caminhos de competências e afirmação, quando os lugares são disputados directamentes com aqueles que culturalmente sempre foram os privilegiados? Por exemplo, na lista do Partido Humanista de Angola, para as eleições de 2022, nos 100 primeiros lugares apenas vemos 25 mulheres. A questão de paridade tem que ser vista já a partir do momento em que são elaboradas as listas dos partidos políticos e Florbela Malaquias tem a obrigação de advogar pelo género.

É preciso fazer surgir lideranças capazes de manter a prática aliada ao discurso, mantermos acções que instam as lideranças angolanas para o cumprimento efectivo das cotas previstas nos vários instrumentos internacionais ratificados pelo Governo angolano, deste modo, poderemos ter mais mulheres participando nas tomadas de decisões.

Outra questão interessante, é o facto dos lugares pilares de governação da presente legislatura serem ocupados por mulheres, no entanto, salvaguardando a questão dos resultados que possam incentivar novas nomeações a favor do género, se mantem a questão de nomeação nominal ou qualitativa. Reparem que, desde 2019, a função de Ministro de Estado para área social vem sendo ocupada por mulheres. Em 2022, Carolina Cerqueira que foi ocupar a Presidência da Assembleia Nacional foi substituída por Dalva Ringote, está por sua vez, em 2024 é substituída por Maria S. Brangança, que vem do Ensino Superior Ciência e Tecnologia. Se as indicações feitas, foram apenas na base do cumprimento de quotas, que resultados substanciais foram registados no sector social durante o pelouro das figuras mencionadas?

O Decreto Presidencial 9/22 de 16 de Setembro, Aprova o Regime de Organização e o Funcionamento dos Órgãos Auxiliares do Presidente da República, o seu artigo 37º diz que, os Ministros de Estado e os Ministros, titulares dos Órgãos da Administração Directa e Central são Auxiliares do Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo, e dirigem os Departamentos Ministeriais, através da orientação, coordenação e controlo dos órgãos subordinados ou vinculados aos Departamentos Ministeriais e assumem a responsabilidade inerente ao exercício da direção (Decreto Presidencial 09/22), no entanto, desde 2019 ao presente momento, a nível do Orçamento Geral do Estado, registou-se um volume considerável de descontinuidade de inúmeros programas em favor da mulher rural, mesmo tendo mulheres no sector com a obrigação de advogar pelas causas do género, um facto que nos oferece um paradoxo amargo que nos faz questionar o comprometimento real das mulheres guiadas por orientação partidária com as causas do género.

Em meu entender, a realidade angolana nos mostra que a figura feminina num Ministério de Estado para área social, não é necessariamente sinal de comprometimento com a melhoria dos maiores indicadores de pobreza e questões de género.  O comprometimento esperado está na adopção de políticas que permitam a elaboração e aprovação de um Orçamento Geral de Estado que seja sensivel ao género, sendo capaz de transformar questões como; acesso ao registo civil; acesso à justiça; acesso à educação; saúde materna; participação e percepções sobre o Orçamento Geral do Estado; acesso aos recursos produtivos e fontes de renda e relações de produção no sistema agropecuário, para garantia efectiva de igualdade entre homens e mulheres.

REPRESENTATIVIDADE DO GÉNERO NA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA AO LONGO DAS CINCO LEGISLATURAS

Em novembro de 2024, aquando da realização do encontro da 10ª cúpula parlamentar do G20, foi analisada a questão da ampliação da representatividade política das mulheres nos lugares de decisão, uma das recomendações, foi que os governos percebessem as lutas para ampliação das mulheres na política e lugares de decisão como uma questão que vai para além das questões de igualdade, mas também de democracia e avanços sociais. Ainda no referido encontro, Fabiana Martin, Presidente do parlamento MERCOSUL, reforçou a ideia de que os Parlamentos com muita presença feminina costumam ter leis que melhoram a qualidade de vida das pessoas e melhoram a sociedade como um todo, focando no exemplo da Argentina que já implementou a paridade no parlamento (TvSENADO:2024).    

De modo geral, apesar dos desafios, os Estados foram receptivos as questões relacionadas ao aumento das mulheres nos parlamentos, entre 1995 e 2015, a proporção média das mulheres nos Parlamentos nacionais quase duplicou, passando de 11,3% para 22,1% (Vetten:2016).

Ainda entre 1995 e 2015, o progresso na África subsaariana foi considerável, com a representação das mulheres a crescer de 9,8% para 22,3% durante o mesmo período. Até 2015, 12 países da região tinham eleito 30% ou mais de mulheres para as suas câmaras únicas ou baixas do parlamento. O Ruanda liderou em 63,8%, não apenas o continente, mas o mundo com a sua proporção de mulheres deputadas. Seguiu-se as Seychelles, com 43,8%, o Senegal com 42,7% de mulheres parlamentares, e a África do Sul com 41,8% (União Interparlamentar:2015).

No entanto, dados mais recentes da União Interparlamentar (2022), mostram que a África Lusófona não está mal em comparação à média mundial que é de 26% “Alguns estão abaixo daquilo que se deseja, que é de pelo menos 30%, por exemplo: São Tomé e Príncipe conta com 14% de mulheres no Parlamento e Guiné-Bissau com apenas 13%, ocupando a posição 149 no ranking da União Interparlamentar.

Pela primeira vez na história, Angola tem uma mulher na Presidência do Parlamento. Um parlamento elogiado pela representatividade do género em comparação com muitos países da região. Angola hoje tem 37,7% parlamentares mulheres. No entanto, ainda há muito a ser feito, até que se consiga alcançar efetivamente, a tão desejada paridade parlamentar, para que os fundamentos da Política Nacional para equidade e igualdade do Género seja de facto uma realidade na vida das mulheres angolanas, para que a aprovação de um Orçamento Sensível ao Género tenha impacto na condição social das famílias angolanas, para compreendermos a jornada desafiante da mulher angolana em termos de representatividade parlamentar, olhemos para o número de mulheres eleitas parlamentares ao longo das diferentes legislaturas;

I Legislatura (1992-2008)

No dia 26 de novembro de 1992 foi realizada a 1.ª Reunião Constitutiva da I Legislatura, durante a qual os Deputados presentes e eleitos prestaram juramento. Uma legislatura que integrou 220 Deputados dos 223 previstos pela Lei Constitucional de 1992, dos quais apenas, 48 MULHERES foram eleitas. 

II Legislatura (2008-2012)

Na II Legislatura, a Assembleia Nacional teve, tal como na anterior, 220 Deputados (130 do Círculo Eleitoral Nacional e 90 dos Círculos Eleitorais Provinciais), 85 MULHERES foram eleitas deputadas.

III Legislatura (2012 -2017)

Na III Legislatura, os 220 Deputados à Assembleia Nacional, dos quais 81 MULHERES foram eleitas.

  • MPLA com 175 (106 Homens e 69 Mulheres);
  • UNITA com 32 Deputados (23 Homens e 9 Mulheres);
  • CASA-CE com 8 Deputados (6 Homens e 2 Mulheres);
  • O PRS 3 Deputados (Homens);
  • A FNLA 2 Deputados (Homens)

IV Legislatura (2017 -2022)

Na IV Legislatura, os 220 Deputados à Assembleia Nacional das quais 68 MULHERES estavam assim distribuídos, em termos de composição política:

  • Grupo Parlamentar do MPLA com 150 (99 Homens e 51 Mulheres);
  • Grupo Parlamentar da UNITA com 51 Deputados (38 Homens e 13 Mulheres);
  • Grupo Parlamentar CASA-CE com 16 Deputados (13 Homens e 3 Mulheres);
  • Representação PRS 2 Deputados (Homens);
  • Representação FNLA 1 Deputado (Homem).

V Legislatura da (2022/2027)

A V Legislatura, elegeu 90 MULHERES distribuição de assentos parlamentares:

  • Grupo Parlamentar/MPLA – 124 Deputados, sendo 52 Homens e 72 Mulheres
  • Grupo Parlamentar/UNITA – 90 Deputados, sendo 76 Homens e 14 Mulheres
  • Representação Parlamentar/ PRS 2 Deputados
  • Representação Parlamentar/ FNLA 2 Deputados
  • Representação Parlamentar/ PHA 2 Deputados, sendo 1 Mulher e 1 Homem.

Lembrar que, outro facto histórico chama a nossa atenção, o MPLA, partido do governo desde 1975, pela primeira vez em cinco legislaturas, na sua bancada parlamentar, o número de mulheres supera o número de homens.

A MULHER NO GOVERNO DE (NA LEGISLATURA) DE 2017-2022

A expectativa era alta, pois no período de campanha, o MPLA defendeu um maior equilíbrio de género nas esferas de decisão e maior atenção às questões que afetam as mulheres.

O programa de governo do MPLA para o período de 2017-2022, assumiu nove políticas estratégicas de desenvolvimento. Dentre elas, duas estão intrinsecamente ligadas às questões de género, o que eventualmente, serviria para a aprovação de vários orçamentos sensíveis ao género.

“PROMOVER O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E DIVERSIFICADO, COM A INCLUSÃO ECONÓMICA E SOCIAL E REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES.

 PROMOVER O DESENVOLVIMENTO HUMANO E BEM ESTAR SOCIAL DOS ANGOLANOS, COM INCLUSAO ECONÓMICA E SOCIAL.” (MPLA : 2017)

As acções apresentadas para a materialização dos objetivos em referência, passavam sobretudo, pela renovação e reforço da política de género e de apoio à mulher angolana, cujas acções, estavam alinhadas à política nacional para a igualde e equidade de género (Decreto Presidencial 222/13).   Entretanto, no dia 30 de setembro de 2017, tomou posse o novo governo composto por trinta e um ministros, dos quais, doze departamentos ministeriais foram ocupados por mulheres, nomeadamente; saúde, educação, Ensino superior, indústria, cultura, pescas e mar, Ordenamento do Território e Habitação, Hotelaria e Turismo, Ação Social Família e Promoção da mulher, juventude e desporto, Ambiente. A secretaria para o Conselho de Ministros também foi ocupada por uma mulher. 

No dia 13 de outubro de 2017, 50 Secretários de Estado foram empossados, dos quais, apenas oito eram mulheres. As referidas mulheres estavam nos seguintes ministérios;

  • Ministério das Finanças – Aia Eza N. G. da Silva e Vera E. S. Daves
  • Ministério da Administração do Território e Reforma do Estado- Laurinda J. P. M. Cardoso
  • Ministério da Justiça e Direitos Humanos – Ana Celeste C. Januário 
  • Ministério do Ordenamento do Território e da Habitação – Ângela C.B.L.R.Mingas 
  • Ministério da Cultura – Maria da Piedade de Jesus
  • Ministério da Acção Social Social Família e Promoção da Mulher – Ruth M. Mixinge
  • Ministério da Juventude e dos Desportos – Guilhermina Fundanga M. Alcaim  

No primeiro governo de João Lourenço, até ao final das primeiras movimentações em 2017, nenhuma mulher ocupava o cargo de Governadora provincial. No entanto, após a realização do VI Congresso extraordinário do partido MPLA, no dia oito de setembro de 2018, do qual, João Lourenço foi eleito líder do partido. No dia doze do mesmo mês, aconteceram as primeiras movimentações a nível dos Governadores províncias, onde seis Governadores foram exonerados, alguns dos quais governadores históricos ao longo dos trinta e nove anos de Liderança de José Eduardo dos Santos. Nesta senda, conhecemos a primeira mulher indicada a Governadora provincial no governo de João Lourenço. Joana Lina Ramos Baptista Cândido, foi então indicada Governadora do Huambo e Exalgina Gambôa na Direção do Tribunal de contas.

Em 2019, pela primeira vez em 44 anos de independência, o Ministério das Finanças é liderado por uma mulher, Vera Esperança dos Santos Daves de Sousa, é nomeada Ministra das Finanças.

Em 2020, Gerdina Didalelwa é indicada a Governadora do Cunene, Mara Quiosa, Governadora do Bengo, Joana Lina é nomeada Governadora de Luanda, sendo substituída por Lotti Nolika no Huambo, no Conselho da República, Rosa Cruz e Silva como porta voz, nas finanças Vera Daves

Pela primeira vez na história do país, vimos mulheres a ocuparem funções estratégicas no Governo de Angola. Um dos pontos principais na aposta das mulheres foi, por exemplo, no dia oito de setembro de 2018, no seio do MPLA, uma mulher ter chegado a Vice-Presidência, Luísa Damião, uma mulher que tinha sido Directora da agência de notícias angolana, Angola. A UNITA por sua vez, em 2019, no quadro da realização do seu XIII Congresso, elege Adalberto Costa Júnior, na sequência de renovação de mandatos, que trazia consigo dois vice-presidentes, sendo a primeira Vice-Presidente, Arlete Leona Chimbinda.

Conclusão:

É bem visível o peso do percurso histórico e político no fraco exercício de cidadania, participação pública e política das mulheres em Angola. A adoção de vários instrumentos internacionais que visam o empoderamento da mulher, mais do que ser um sinal de comprometido e ou vontade política para mudança de quadro a favor da mulher, são passos significativos para desenhar e implementar as acções que visem a efetiva luta pelos direitos da mulher, salvaguardados no Protocolo de Maputo.  No entanto, ainda é difícil mensurar o papel da mulher no cenário político quando de forma progressiva os Orçamentos Gerais de Estado aprovados ignoram a real necessidade de efetivação dos programas de igualdade de género proporcionando a ausência de empoderamento real das mulheres angolanas.

Os dados de género apresentados pelas estatísticas oficiais são importantes não apenas porque fornecem informação, mas sobretudo, porque “contam” as histórias das mulheres e dos homens, permitindo ao público em geral, obter informações que lhe permitam fazer análises e leituras objetivas.

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[1] Segundo o Programa de Reconversão da economia informal 88,5% das mulheres representam o emprego informal. 

[2] MOSAIKO- Instituto para a Cidadania, tem como Missão a promoção e defesa dos Direitos Humanos em Angola. Fundada pelos Missionários Dominicanos, assume-se como uma organização da sociedade civil, que, desde 1997, prioriza a sua actuação através da parceria com Grupos Locais de Direitos Humanos, respeitando a sua autonomia e trabalhando em colaboração. O presente relatório, sobre a Avaliação Participativa sobre o Acesso à Justiça 2019/20 (APAJ), inscrevese no trabalho de pesquisa social e produção de conhecimento, parte integrante da actividade do Mosaiko, desde a sua fundação

[3] Ma Tuning, é um projecto de cooperativas financiado pela União Europeia, FAO e o PNUD, que tem como objetivo contribuir para redução da fome, pobreza vulnerabilidade à insegurança alimentar e nutricional, das comunidades afetadas pelas alterações climáticas na província do Namibe, através do fortalecimento sustentável da agricultura familiar, conservação e uso sustentável dos solos e pastos.

[4] Braço Feminino do partido Político MPLA

[5] MASFAMU- Ministério da Acção Social, Familia e Promoção da Mulher.

[6] As informações apresentadas sobre as associaçoes destacadas, foram colectadas nas informações disponiveis nos sites e estatutos, nem todas têm os estatutos publicados, pelo que omitimos por um aquestão de uniformidade.

[7] Fundação Tchiweka –

[8] Discurso do presidente do partido no V congresso da Liga da Mulher Angolana /LIMA

A Viragem da Diplomacia Pública Chinesa: Direitos Humanos como Ferramenta Estratégica e as Implicações para África e Angola

Rui Verde

Nota prévia: O CEDESA não pretende aprovar nem desaprovar as opiniões expressas neste texto. Essas opiniões devem ser consideradas como pertencentes ao autor.

A revolução dos paradigmas

Pelos menos desde o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que os Estados Unidos da América representavam um paradigma, o da chamada civilização Ocidental que afirmava a liberdade, a democracia, os direitos fundamentais e a economia livre. Eram uma espécie de “farol” para que os outros países olhavam e se inspiravam. Não quer isto dizer que o comportamento dos EUA fosse perfeito ou imaculado. Erros e tragédias aconteceram, Vietnam, Iraque, apoio a ditadores, hesitações espúrias, mas no final do dia, os EUA eram vistos como uma “força para o bem” e, sobretudo, traduziam um paradigma de sociedade que se ambicionava[1].

A partir de dada altura já no século XXI, esse papel dos EUA começou a ser posto em dúvida. Na realidade, os próprios EUA começaram uma espécie de autocrítica e entraram numa dúvida persistente sobre o seu papel, sobre a real existência do conceito de Ocidente, acerca da sua história, do seu sentido, mesmo do que era ser americano. Enfim, sobre tudo, e, como predisse Schumpeter, o sistema começou-se a desmoronar[2]. Este relativismo ou mesmo niilismo abriu as portas à eleição de Donald Trump que acabou com as ilusões. Trump vê-se como uma espécie de “ditador eleito” com um mandato popular para preencher o vácuo do relativismo e do niilismo intelectual que se tinha apoderado dos EUA, mas sem uma noção estratégica, a não ser fazer o que quer, descurando o papel paradigmático estabilizador internacional dos Estados Unidos. Não o entende, ou não o quer entender. Portanto, abriu a porta para outros ocuparam o espaço internacional deixado livre pelos EUA.

A China, sábia e atenta, está a aproveitar. Em primeiro lugar, tornou-se a defensora do comércio livre e da sociedade internacional organizada segundo regras, papel anteriormente promovido e ocupado pelos Estados Unidos[3].

Agora faz uma entrada na área da defesa dos Direitos Humanos, que deixa muitos surpreendidos.

A publicação do relatório chinês sobre as violações dos direitos humanos nos Estados Unidos em 2024, The Report on Human Rights Violations in the United States in 2024, representa uma mudança significativa na diplomacia pública da China. Tradicionalmente[4], Beijing tem rejeitado a linguagem dos direitos humanos como uma imposição Ocidental e uma forma de ingerência nos seus assuntos internos. No entanto, ao adotar essa mesma linguagem para criticar os Estados Unidos, a China sinaliza uma reconfiguração estratégica da sua atuação internacional, indo desafiar os Estados Unidos no seu habitual campo de eleição.

Esta viragem não implica uma adesão chinesa aos valores liberais, mas sim uma apropriação instrumental dos direitos humanos como ferramenta de influência geopolítica e narrativa.

A mudança ocorre num contexto de retração da liderança moral americana, especialmente com a presidência de Donald Trump, cuja política externa retirou qualquer relevância aos direitos humanos em favor de abordagens transacionais e nacionalistas. A China aproveita este vazio para ocupar um espaço simbólico que antes era hegemonicamente americano, com possíveis repercussões profundas nas suas relações com o continente africano.

A Diplomacia Pública Chinesa: De Defesa à Denúncia

Durante décadas, a China posicionou-se como defensora da soberania nacional e da não interferência, rejeitando críticas ocidentais sobre direitos humanos como tentativas de desestabilização. A sua diplomacia pública era marcada por uma postura defensiva, centrada em justificar o seu modelo político e económico como alternativa legítima ao liberalismo ocidental. No entanto, a publicação do relatório acima referido revela uma nova abordagem. O documento, detalhado e abrangente, denuncia práticas como a manipulação eleitoral, a violência policial, o racismo sistémico, a crise dos sem-abrigo, a degradação das condições de vida dos migrantes e a persistência de desigualdades estruturais nos EUA.

Este tipo de relatório não é novo — a China tem publicado documentos semelhantes desde 1998 — mas o grau de sofisticação, abrangência e timing político do relatório de 2024 sugere uma mudança qualitativa. Ao invés de apenas responder às críticas, Beijing passa a atacar proactivamente, utilizando os direitos humanos como arma retórica. Esta mudança insere-se numa estratégia mais ampla de contra narrativa, em que a China procura deslegitimar a autoridade moral dos Estados Unidos e apresentar-se como alternativa ao desnorte Ocidental.

O Vazio Americano: A Era Trump e o Desalinhamento Moral

A oportunidade para esta viragem surge num momento de enfraquecimento da liderança moral americana. Com a presidência de Donald Trump os direitos humanos deixaram de ser prioridade na política externa dos EUA. O governo Trump cortou financiamento a organismos internacionais, retirou-se de acordos multilaterais e adotou uma abordagem transacional nas relações bilaterais, privilegiando interesses económicos de curto-prazo em detrimento de valores normativos. Esta postura está a influenciar definitivamente a política externa, com uma crescente fadiga diplomática e polarização interna que minam a capacidade dos EUA de se apresentarem como paladinos  modelo liberal e  democrático[5].

O relatório chinês capitaliza precisamente sobre este contexto. Ao destacar as falhas sistémicas dos EUA — como a manipulação dos distritos eleitorais, a exclusão de minorias do processo democrático, a violência policial e a crise dos sem-abrigo — Beijing procura minar a autoridade moral americana e apresentar-se como voz crítica da ordem liberal. Esta estratégia não visa substituir os EUA como defensora dos direitos humanos, mas sim deslegitimar o discurso ocidental e reforçar a ideia de que nenhum país tem o monopólio da virtude.

Direitos Humanos como Ferramenta de Soft Power Chinês

A apropriação da linguagem dos direitos humanos pela China insere-se numa lógica de soft power, em que a construção de narrativas e perceções se torna tão importante quanto o poder económico ou militar. Ao denunciar os abusos nos EUA, Beijing vai influenciar a opinião pública internacional, especialmente nos países do Sul Global, onde o ressentimento contra o paternalismo Ocidental é mais forte. Esta estratégia visa criar um espaço discursivo em que a China possa apresentar-se como parceira respeitadora da soberania, mas também como crítica legítima das falhas do modelo liberal.

Este tipo de diplomacia pública tem precedentes. A China tem investido em meios de comunicação internacionais como a CGTN, em institutos Confúcio, em parcerias académicas e em campanhas de comunicação digital para moldar perceções globais. A introdução dos direitos humanos como tema central dessas campanhas representa uma evolução significativa, que pode ter implicações concretas nas relações bilaterais, especialmente em contextos de tensão ou conflito.

O continente africano é um dos principais palcos da influência chinesa. Desde o início do século XXI, a China tem intensificado a sua presença em África através de investimentos em infraestruturas, comércio, cooperação técnica e diplomacia cultural[6]. Esta relação tem sido marcada por uma abordagem pragmática, em que Beijing evita condicionar a cooperação ao respeito pelos direitos humanos, ao contrário dos países ocidentais. Esta postura tem sido bem recebida por muitos governos africanos, que valorizam a não interferência e a previsibilidade das relações com a China.

No entanto, a nova abordagem chinesa pode alterar este equilíbrio. Ao introduzir a linguagem dos direitos humanos na sua diplomacia pública, mesmo que seletivamente, Beijing pode começar a usar esse discurso como instrumento de pressão ou justificação.

Em relações que correm mal — por exemplo, em casos de incumprimento de contratos, instabilidade política ou críticas públicas — os direitos humanos podem emergir como argumento retórico, poderá ser o caso com Angola. Ainda que não se traduzam em sanções ou condicionamentos formais, estas narrativas podem influenciar perceções públicas, reputações governamentais e dinâmicas diplomáticas.

Além disso, a apropriação da linguagem dos direitos humanos pela China pode gerar ambivalência entre os parceiros africanos. Por um lado, pode reforçar a legitimidade da China como ator global responsável. Por outro, pode criar desconforto entre regimes autoritários ou sem tradição democrática, que até agora viam Beijing como parceiro silencioso. Esta ambivalência pode abrir espaço para novas negociações, reequilíbrios e até concorrência entre modelos de cooperação.

A viragem da China insere-se numa batalha mais ampla pelas narrativas globais. Os direitos humanos, longe de serem apenas valores universais, são também instrumentos de poder simbólico. Ao denunciar os abusos nos EUA, Beijing procura reverter a lógica tradicional em que os países ocidentais criticam o Sul Global. Esta inversão tem efeitos discursivos importantes: relativiza as críticas ocidentais, reforça a ideia de multipolaridade e legitima a China como ator normativo, isto é, criador de regras globais.

O caso de Angola

O recente interesse da China pelos direitos humanos em Angola pode ser interpretado sob três prismas distintos, cada um com implicações políticas e diplomáticas bastante diferentes. A forma como este movimento será recebido e explorado dependerá não apenas das intenções chinesas, mas também da capacidade angolana de gerir a sua imagem internacional num momento de tensão interna.

Num primeiro cenário, este novo posicionamento da China pode ser simplesmente ignorado por Angola e pela comunidade internacional, sendo visto como parte da habitual disputa geopolítica entre Pequim e Washington. Neste caso, os direitos humanos seriam apenas um instrumento retórico usado pela China para se contrapor às críticas ocidentais, sem qualquer impacto real sobre a situação angolana. Angola, por sua vez, poderia optar por não se envolver, tratando o tema como um assunto externo, sem relevância direta para a sua política interna ou para as suas relações bilaterais com a China.

Num segundo movimento possível, o governo angolano pode aproveitar esta nova retórica chinesa para se reaproximar de Pequim, apresentando a China como uma parceira que também valoriza os direitos humanos — ainda que sob uma definição própria e muitas vezes divergente dos padrões ocidentais. Esta estratégia permitiria a Angola suavizar a sua imagem internacional, especialmente num momento em que o país volta a ser alvo de críticas severas devido à repressão violenta de protestos em julho de 2025, que resultaram em várias mortes. Ao alinhar-se com uma China que se mostra mais vocal sobre direitos humanos, o governo angolano poderia tentar neutralizar parte da pressão internacional, sem necessariamente implementar reformas profundas.

Por fim, há uma terceira hipótese, mais ousada e potencialmente transformadora: a China pode decidir adotar uma postura mais ativa na política interna angolana, apoiando uma transição de governo que favoreça lideranças mais comprometidas com os direitos humanos. Este movimento, embora improvável à primeira vista, não pode ser descartado, sobretudo num contexto em que as relações entre Angola e China estão em processo de recalibração. Se Beijing entender que a estabilidade angolana — e, por extensão, os seus interesses estratégicos e económicos no país — dependem de uma maior abertura política e respeito pelos direitos fundamentais, pode vir a exercer influência nesse sentido, mesmo que de forma discreta.

Cada uma dessas possibilidades revela não apenas os contornos da diplomacia contemporânea, mas também os limites e as oportunidades que se abrem para Angola num momento de escrutínio internacional e redefinição de alianças. O modo como o governo angolano responder a este novo interesse chinês poderá determinar o rumo das suas relações externas e, talvez, o futuro da sua própria governabilidade.

Conclusão: Uma Nova Era de Diplomacia Pública

A publicação do relatório sobre os EUA em 2024 marca uma nova era na diplomacia pública chinesa. Ao apropriar-se da linguagem dos direitos humanos, Beijing não se torna liberal, mas sim mais estratégica. Esta mudança insere-se numa lógica de competição narrativa, em que os direitos humanos deixam de ser monopólio Ocidental e passam a ser campo de disputa simbólica. Para África, esta mudança pode ter implicações profundas, alterando perceções, dinâmicas diplomáticas e equilíbrios de poder. A China não abandona o pragmatismo, mas acrescenta uma nova camada discursiva à sua atuação internacional — uma camada que pode redefinir o futuro das relações Sul-Sul e da ordem global.

Em relação a Angola, o novo interesse da China pelos direitos humanos pode ser interpretado como uma oportunidade estratégica com múltiplas leituras: ignorado como parte da rivalidade sino-americana, aproveitado pelo governo angolano para melhorar sua imagem internacional, ou até como um sinal de que Pequim poderá influenciar uma transição política angolana mais alinhada com valores de direitos humanos. Num momento em que Angola enfrenta críticas renovadas pela repressão violenta de julho de 2025 e as suas relações com a China passam por uma fase de recalibração, a forma como este gesto será recebido poderá ter implicações profundas para o futuro político e diplomático do país.


[1] Judt, T. (2005), Postwar: A History of Europe Since 1945. New York: Penguin Press,

[2] Schumpeter, J. A. (1942). Capitalism, socialism and democracy. New York: Harper & Brothers.

[3] Observador. (2024, dezembro 16). Guerra comercial entre China e União Europeia resultará em perdas para ambos, diz ministro dos Negócios Estrangeiros chinês. https://observador.pt/2024/12/16/guerra-comercial-entre-china-e-uniao-europeia-resultara-em-perdas-para-ambos-diz-ministro-dos-negocios-estrangeiros-chines/

[4] State Council Information Office of the People’s Republic of China. (2025, August 17). The report on human rights violations in the United States in 2024. https://en.people.cn/n3/2025/0818/c90000-20353810.html

[5] Ver o nosso anterior relatório: https://www.cedesa.pt/2025/07/22/angola-e-a-administracao-trump-entre-a-trump-organization-e-a-diplomacia-do-desinteresse/

[6] Alden, C. (2007). China in Africa. London: Zed Books.

Angola e a Administração Trump: Entre a Trump Organization e a diplomacia do desinteresse

Com o regresso de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, Angola encontra-se perante um dilema estratégico que exige uma abordagem realista e desprovida de ilusões. A relação entre os dois países, que conheceu avanços significativos durante a administração Biden — nomeadamente com o investimento no Corredor do Lobito e o reconhecimento de Angola como parceiro estratégico[1] — está agora sujeita à lógica transacional e imprevisível que caracteriza o estilo político de Trump.

A ausência de uma estratégia americana para África

É fundamental reconhecer que os Estados Unidos, sob Trump, deixaram de ter uma estratégia coerente para África. A política externa americana tornou-se errática, centrada em interesses imediatos e pessoais, sem uma visão de longo prazo para o continente. É expectável que, sob a liderança de Trump, os Estados Unidos privilegiem acordos comerciais pontuais, com especial incidência nos setores da exploração de petróleo e mineração. Esta abordagem revela um desinteresse pelas dinâmicas africanas e uma preferência por relações bilaterais que favoreçam diretamente os interesses empresariais do presidente.

O certo é que a política externa dos Estados Unidos para África, sob a liderança de Donald Trump, revela uma ausência preocupante de estratégia, profundidade e compromisso institucional. Ao contrário de administrações anteriores que, mesmo com limitações, procuravam articular uma visão geopolítica para o continente africano, a atual abordagem caracteriza-se por superficialidade, centralização excessiva e desinteresse sistémico.

Um dos sinais mais evidentes dessa desarticulação é a falta de nomeações diplomáticas relevantes. Até julho de 2025, a administração Trump ainda não havia preenchido cargos-chave relacionados com África, incluindo o Subsecretário de Estado para Assuntos Africanos e o Embaixador junto da União Africana¹. Esta lacuna institucional compromete a capacidade dos EUA de manter diálogo estruturado com os países africanos e de responder a crises regionais com eficácia[2].

Além disso, a estrutura diplomática americana está a ser desmantelada. A administração anunciou o encerramento de várias embaixadas e consulados considerados “não essenciais” na África Subsaariana, com o objetivo de reduzir custos e concentrar recursos em regiões consideradas prioritárias. Esta decisão, aliada à extinção de gabinetes temáticos dedicados a direitos humanos, democracia e alterações climáticas, representa um recuo significativo na presença diplomática americana no continente.

A centralização da política africana no Gabinete do Enviado Especial para Assuntos Africanos, subordinado diretamente ao Conselho de Segurança Nacional, em vez do Departamento de Estado, reforça a lógica de controlo político e enfraquece a diplomacia tradicional[3]. Esta mudança institucional reflete uma abordagem mais securitária e menos cooperativa, onde os interesses estratégicos imediatos se sobrepõem ao desenvolvimento sustentável e à estabilidade regional.

No plano da segurança, a nova doutrina americana para África baseia-se na “partilha de encargos”. O Comando Militar dos EUA em África (AFRICOM) anunciou que os países africanos devem assumir maior responsabilidade pela sua própria segurança, com os EUA a reduzirem a sua presença militar e a focarem-se em operações mais letais e pontuais. Esta reconfiguração implica a retirada de apoio logístico, tecnológico e formativo, afetando diretamente a capacidade dos países africanos de combater o extremismo violento e de manter a paz em zonas instáveis.

A política externa americana tornou-se, assim, transacional e oportunista. Em vez de promover parcerias estruturadas, os EUA, como referido, privilegiam acordos pontuais baseados em recursos estratégicos, como petróleo, gás natural e minerais raros.

Países como Angola podem beneficiar de negociações diretas, mas sem garantias de apoio em áreas humanitárias, educativas ou de saúde pública. Esta lógica de curto prazo compromete a construção de relações duradouras e coloca os países africanos numa posição vulnerável.

As implicações geopolíticas desta ausência estratégica são profundas. O vazio deixado pelos EUA está a ser rapidamente preenchido por potências rivais como a China e a Rússia, que intensificaram os seus investimentos em infraestrutura, segurança e formação militar em África[4].

Em suma, a política americana para África sob Trump carece de visão, continuidade e profundidade. A falta de nomeações, os cortes abruptos em programas essenciais e a abordagem transacional revelam uma postura de desinteresse que contrasta com o dinamismo de outras potências globais. África, portanto, enfrenta o desafio de se posicionar com autonomia, diversificar parcerias e exigir respeito estratégico — sem esperar por um “salvador” externo.

Face a este cenário, o que pode Angola fazer?

Hipótese 1: Manter relações institucionais e esperar: a diplomacia do desinteresse

Uma das opções mais sensatas que Angola pode adotar perante a nova administração Trump não é resistir nem confrontar, mas simplesmente ignorar. Trata-se de manter relações diplomáticas formais e funcionais com os Estados Unidos, sem investir energia política ou capital estratégico numa relação que, neste momento, não promete estabilidade nem reciprocidade. Em vez de tentar agradar ou de se proteger ativamente, Angola pode optar por mergulhar na sua própria agenda de desenvolvimento, diversificação de parcerias e afirmação regional, deixando os EUA à margem enquanto persistirem na sua deriva política.

Durante os anos 1980, Angola enfrentou uma pressão intensa por parte da administração Reagan, que apoiava abertamente a UNITA. Na altura, o país respondeu com resistência ativa, simbolizada pelo slogan “Reagan tira as mãos de Angola!”. Hoje, no entanto, o contexto é diferente: não há uma guerra ideológica, mas sim um vazio estratégico. A ausência de uma política americana coerente para África torna desnecessária qualquer forma de resistência. O que se impõe é o desinteresse calculado.

Ao manter uma postura institucional mínima — sem rupturas, mas também sem entusiasmo — Angola protege-se de envolvimentos que possam comprometer a sua soberania ou reputação internacional. Ignorar, neste caso, é uma forma de inteligência diplomática: não se trata de esperar por melhores dias, mas de não perder tempo com interlocutores que não têm uma proposta clara.

É verdade que esta abordagem pode implicar a perda de oportunidades de investimento imediato, sobretudo em setores como energia ou infraestruturas. Pode também significar uma certa marginalização nas prioridades comerciais dos EUA. No entanto, esses riscos são relativizados pela própria realidade americana: a ausência de uma estratégia para África torna qualquer esforço de aproximação irrelevante. Os Estados Unidos, sob Trump, não parecem interessados em manter relações estruturadas com o continente — e Angola não tem obrigação de preencher esse vazio.

Ao invés de tentar interpretar ou influenciar uma política externa errática, Angola pode concentrar-se em aprofundar relações com parceiros que demonstram compromisso e visão de longo prazo — como a União Europeia, a Índia, os países do Golfo e os blocos africanos. A diplomacia do desinteresse, neste caso, não é passividade: é foco.

Hipótese 2: Agradar aos interesses privados de Trump: pragmatismo comercial

A segunda hipótese é mais pragmática: Angola poderia oferecer oportunidades comerciais à Trump Organization, como forma de garantir atenção e investimento. Esta abordagem já foi adotada por países como o Qatar e o Vietname, com resultados concretos.

O Qatar ofereceu a Trump um Boeing 747 avaliado em 400 milhões de dólares, além de um projeto imobiliário da Trump Organization em Doha, aquando da visita de Trump ao país.

O envolvimento da Trump Organization no Vietname representa outro exemplo claro de como países podem adotar uma abordagem pragmática e comercial para cultivar relações com a administração Trump.

Em maio de 2025, foi lançada oficialmente a construção do Trump International Hung Yen, um megaempreendimento imobiliário e turístico avaliado em 1,5 mil milhões de dólares, localizado na província de Hung Yen, a sul de Hanói.Este projeto, desenvolvido em parceria com a Kinh Bac City Development Holding Corporation, cobre cerca de 990 hectares e inclui dois campos de golfe de padrão internacional, um hotel cinco estrelas, vilas de luxo e uma zona urbana moderna. A Trump Organization receberá 5 milhões de dólares em licenças de marca e assumirá a gestão do complexo após a sua conclusão, prevista para o segundo trimestre de 2029. Durante a cerimónia de lançamento, estiveram presentes Eric Trump, vice-presidente executivo da Trump Organization, e o Primeiro-Ministro vietnamita Pham Minh Chinh, que destacou o projeto como um marco na Parceria Estratégica Abrangente entre os EUA e o Vietname. O projeto foi descrito como um símbolo de excelência e compromisso com o desenvolvimento sustentável, com promessas de criação de empregos, transferência de tecnologia e promoção da imagem internacional do Vietname. Além disso, a Trump Organization está em negociações para desenvolver um arranha-céus em Ho Chi Minh City, na zona de Thu Thiem, o que reforça a intenção de expandir a presença da marca Trump no país[5].

O caso vietnamita mostra como um país pode “agradar” a Trump através de investimentos que envolvem diretamente a sua organização empresarial, garantindo visibilidade e benefícios económicos imediatos.

Para Angola, esta abordagem pode representar uma oportunidade estratégica para atrair investimentos diretos e imediatos em setores-chave como o petróleo, a mineração e o turismo. Ao estabelecer parcerias com a Trump Organization, Angola poderá beneficiar da visibilidade internacional da marca, impulsionar projetos de grande escala e posicionar-se como destino preferencial para investidores americanos. Esta aproximação pode também abrir portas a novas formas de cooperação económica, reforçando a presença angolana em mercados globais e diversificando as suas fontes de financiamento e desenvolvimento.

Considerações finais: entre o pragmatismo e a prudência

Angola deve reconhecer que os Estados Unidos, sob Trump, não têm uma estratégia para África. Como observou um anterior relatório da CEDESA, “há um absentismo americano em África”. Esta ausência de direção exige que Angola adote uma política externa mais calculista, orientada para os seus próprios interesses.

A chave está em equilibrar pragmatismo com prudência.

Num mundo pós-internacional, onde os tratados são ignorados e as alianças são fluidas, Angola deve posicionar-se como um ator soberano, capaz de negociar com firmeza e proteger os seus interesses. A relação com os Estados Unidos sob Trump não deve ser guiada por ilusões, mas por uma estratégia clara, pragmática e orientada para o desenvolvimento sustentável.


[1] Jornal Económico, Joe Biden será o primeiro presidente dos EUA a visitar oficialmente Angola, 2024. https://jornaleconomico.pt/noticias/joe-biden-sera-o-primeiro-presidente-dos-eua-a-visitar-oficialmente-angola-1098433

[2] Horn Review, Realigning Priorities: U.S.–Africa Policy Across Two Trump Presidencies, 2025. https://hornreview.org/us-africa-policy-trump-2025

[3] Idem

[4] African Security Analysis, As America Pulls Back, Russia and China Step In Across Africa, maio de 2025.

[5] The Independent – Vietnam fast-tracks $1.5B Trump golf resort amid tariff threats https://www.independent.co.uk/news/world/americas/us-politics/vietnam-trump-trade-tariffs-golf-course-b2757581.html

Que Província, Autonomia ou Autarquia Supramunicipal face à Crise Político-Militar no Exclave de Cabinda?

por: Eugénio Costa Almeida*

Nota prévia:

O CEDESA não pretende aprovar nem desaprovar as opiniões expressas neste texto. Essas opiniões devem ser consideradas como pertencentes ao autor.

Introdução

A província do Exclave de Cabinda, situada ao norte de Angola, tem enfrentado uma situação política e social complexa, marcada por um histórico de luta pela autonomia e um cenário de conflitos armados.

A falta de autonomia política e administrativa, juntamente com a crise político-militar que envolve os movimentos separatistas, como a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC) e o braço armado FLEC-Forças Armadas de Cabinda (FLEC-FAC)[1], tem sido um desafio significativo para a população local.

Recentemente, a FLEC-FAC tendo por base uma eventual proposta de Lei sobre Cabinda a apresentar pela UNITA, anunciou um cessar-fogo até 14 de Junho de 2025 (Diário de Notícias, 2025) – ainda que o Governo Angolano já tenha desmentido estas notícias (Angola 24H, 16.Abril.2025) –, oferecendo uma oportunidade para o diálogo e uma busca por uma solução pacífica.

Antes de avançar, devo clarificar porque em vez de Enclave, como habitualmente é definida a província de Cabinda e como a própria FLEC se auto-denomina, eu defino a província por Exclave.

Geográfica e geopoliticamente, existe uma diferença clara entre Exclave e Enclave como irei sintetizar, mas que poderão verificar com mais detalhe em Almeida (2021) e que consiste em que:

  • um Exclave é parte de um território não contínuo de um País, rodeado por outro(s) país(es) mas com saída para o mar, dando como exemplos, Kaliningrado (território da Rússia e que está entre a Lituânia e a Polónia), Cabinda (território angolano, ladeado pela República do Congo e pela RDC), Ocússi-Ambeno (território de Timor-Leste no Timor Ocidental indonésio), ou Gibraltar (território britânico no Sul de Espanha), bem como Ceuta e Melilla, (territórios espanhóis em Marrocos); Mónaco e San Marino, tal, acrescento, como Brunei (há quem considere estes dois países como Enclaves visto serem Nações e terem como fronteira territorial um único país, todavia, sou de opinião que são Exclaves, pelo facto de não estarem totalmente rodeados e terem saídas para o mar.
  • por sua vez, um Enclave é um território, na maioria dos casos de países independentes totalmente rodeados por outro ou outros países; são exemplos, Lesotho (rodeado pela África do Sul), E-swatini (ou ESwatini – aparece escrito destas duas maneiras e rodeado por África dos Sul e Moçambique), Andorra (encravado entre Espanha e França, ou Estado do Vaticano (totalmente dentro da cidade de Roma) – mas há territórios não-independentes como enclaves, sendo Campione d’Itália, um território italiano dentro da Suíça, um dos exemplos.
  • de acrescentar que há quem reconheça existirem semi-Enclaves, ou penenclaves ou quase-Enclaves, no caso, por exemplo, A Gâmbia, por estar quase totalmente rodeada pelo Senegal, mas ter uma pequena área de fronteira com o mar.

Contexto Histórico

A província de Cabinda é rica em recursos naturais, especialmente petróleo, que desempenha um papel crucial na economia angolana. No entanto, a riqueza gerada por esses recursos não se traduz em benefícios tangíveis para a população local, que continua a enfrentar desafios significativos em termos de desenvolvimento social e económico.

Historicamente, Cabinda foi uma colónia portuguesa, pelo “Acto Colonial” inserido na Constituição portuguesa de 1933 – até aqui era um protectorado, baseado no Tratado de Simulambuco (Almeida, 2013) –[2] tendo, na década de 50, pela Lei 2048 (dnotícias.pt, 2002)[3] sido integrada, como distrito, na administração na então província de Angola, e, após a independência de Angola, em 1975, se tornou num exclave separado do restante do país[4], o que contribuiu para o surgimento de movimentações separatistas que vêm exigindo uma maior autonomia (Carlos, 2018).

A FLEC tem sido um dos principais players na luta pela auto-determinação de Cabinda. Nos últimos anos, os ideais separatistas têm surgido, o que aliado às actividades da FLEC-FAC, reforçam a complexidade do cenário político-militar. As acções destas movimentações, que incluem ataques a instalações militares e civis, têm gerado tensões e resposta militar do governo angolano, levando a um intermitente ciclo de violência e repressão.

No entanto, há que ressalvar que tem havido algumas tentativas de apaziguamento na situação do Exclave de Cabinda como a ocorrida em Julho de 2006, em Moçâmedes, na província do Namibe, então denominada de Memorando de Namibe para a Paz na Província de Cabinda, assinado por Bento Bembe, do Fórum Cabindês para o Diálogo (FCD), como representante de Cabinda, e pelo Governo de Angola, pelo então ministro da Administração do Território de Angola, Virgílio de Fontes Pereira (RTP, 2006 & Jornal Folha 8, 2016).

Todavia, há que recordar que as manifestações autonómicas não se circunscrevem à FLEC – e por extensão à FLEC-FAC – dado haver outras organizações e movimentos como a Comando Militar de Libertação de Cabinda, criada em 1977 – altura em que a FLEC chegou a ser dividida em 3 facções: FLEC-Ranque Franque, FLEC-N’Zita, liderado por N’Zita Henriques Tiago, e FLEC-Lubota, reconstituída, nos anos 90, na actual  FLEC –, a FLEC-Renovada, criada na década de 90, ou a criada em 1996, a Frente de Libertação do Estado de Cabinda (FLEC-Lopes); além disso, ainda temos de considerara a Frente Consensual de Cabinda (FCC), Movimento de Reunificação do Povo de Cabinda para a sua Soberania (MRPCS), União dos Cabindenses pela Independência (UCI), Movimento Democrático de Cabinda (MDC) e Os Democratas Liberais de Cabinda (DLC), agrupadas na denominada “Organizações Políticas de Cabinda”, a Associação Cultural e de Desenvolvimento dos Direitos Humanos de Cabinda

A Falta de Autonomia e seus Impactos

A falta de autonomia em Cabinda é uma questão central na luta da população local. Apesar de uma estrutura administrativa formal, a província é frequentemente tratada como uma extensão do Governo Central, de Luanda (Abias, 2021), o que leva à marginalização das vozes locais. Isso se reflete na gestão dos recursos naturais, onde as receitas do petróleo são predominantemente direcionadas para o Governo Central, sem se houvessem registados investimentos significativos em infra-estrutura[5] e serviços públicos em Cabinda.

A ausência de uma autonomia efectiva tem alimentado descontentamento entre os cabindas ou ibindas, que se sentem excluídos das decisões que afetam suas vidas. A proposta de “Autarquia Supramunicipal de Cabinda”, apresentada pela UNITA, parece procurar estabelecer um modelo de governação que permita maior participação local na administração e gestão dos recursos. Esta proposta a se concretizar seria um passo importante para garantir que a população cabindense tenha voz activa nas decisões que impactem seu futuro.

Crise Político-Militar e o Cessar-Fogo

A crise político-militar em Cabinda, apesar do Governo Central afirmar o contrário (Angola 24Horas, 2025), tem sido exacerbada por acções violentas de grupos separatistas, como reconhecia, em 2018, o Governo através de um prospecto para a emissão de “eurobonds”, onde afirmava na operação de colocação de títulos da dívida pública angolana em moeda estrangeira, denominada “Palanca 2”, que «têm ocorrido “escaramuças e emboscadas militares em Cabinda, como resultado da campanha contínua da FLEC”» (Diário de Notícias, 2018), ou, mais a montante, pelo então Presidente José Eduardo dos Santos, em 2010, admitiu, em 2010, durante o seu discurso sobre o Estado da Nação perante a Assembleia Nacional que havia um problema de segurança em Cabinda (VOA, 2010), ou, bem como, mais recentemente, o então Ministro do Interior, Eugénio Laborinho, ter considerado existir na fronteira entre Angola e Congo uma “ofensiva armada de grupos criminosos” (Rodrigues, 2022).

Os ataques da FLEC e da sua vertente militar FLEC-FAC têm se tornado mais frequentes, levando a uma resposta militar rigorosa por parte do Governo Angolano. A militarização do conflito tem resultado em violações dos direitos humanos, deslocamento forçado de comunidades e um periódico ambiente de insegurança.

Recentemente, o anúncio da FLEC-FLAC de um cessar-fogo até 14 de Junho de 2025 poderá representar uma oportunidade importante para o diálogo. Esse cessar-fogo pode ser um passo crucial para criar um ambiente de paz e permitir que as partes envolvidas explorem soluções pacíficas para a crise. No entanto, a eficácia dessa trégua dependerá da disposição do governo angolano em engajar-se em negociações significativas e considerar as reivindicações de autonomia.

Propostas de Autonomia

Sem deixar de ter em consideração a proposta do «Estatuto Especial para a Província de Cabinda (EEC)», resultado da Resolução no 27-B/06, de 16 de Agosto da Assembleia Nacional, que teve como ponto de partida o já referido Memorando de Namibe para a Paz na Província de Cabinda, (Bembe, 2014), mas que não concedia uma verdadeira autonomia, a referida proposta da UNITA de “Autarquia Supramunicipal de Cabinda”, apresentada durante as XII Jornadas Parlamentares, do Grupo Parlamentar da UNITA (GPU), ocorrida em Cabinda entre 26 e 30 de Março (Observador, 2025 & e-Global, 2025), parece sugerir a criação de um modelo de administração local que respeite as particularidades e necessidades da província. Esta abordagem poderia permitir uma gestão mais eficaz dos recursos e a implementação de políticas públicas que atendam às demandas da população local.

Porém não posso deixar de aqui colocar a ideia que já avancei por mais de uma vez – a primeira em 2011 (Almeida, 2024) –, e que se define por uma autonomia semelhante àquela das regiões autónomas de Portugal, como os Açores e a Madeira, pode, eventualmente, merecer alguma consideração e ponderação, até porque a ideia de que defendo segue aquela que, na minha opinião, é que mais se coaduna com a realidade do Exclave: autonomia governativa, legislativa e económica, com o Poder Central determinar as Relações Internacionais e a Defesa.

Estas propostas, embora diferentes na sua abordagem, procuram compartilham um objectivo comum: garantir que a população de Cabinda tenha maior controle sobre sua administração e recursos. A autonomia, neste contexto, não é apenas uma questão política, mas também uma questão de justiça social e desenvolvimento económico sustentável.

No entanto, para que estas propostas possam ter alguma base e sejam possíveis, é necessário haver uma alteração constitucional. Sem esta nada será possível e tudo ficará na mesma.

Conclusão

A situação no Exclave de Cabinda é complexa e multifacetada, envolvendo não só questões de autonomia, direitos humanos e desenvolvimento.

A falta de uma autonomia e a crise político-militar têm gerado um ambiente de tensão, mas o recente anúncio de cessar-fogo pela FLEC-FAC oferece uma oportunidade para um novo começo.

O caminho para a autonomia em Cabinda deve ser construído com diálogo e compromisso entre todas as partes envolvidas, reconhecendo que as aspirações legítimas da população local são de serem consideradas e estudadas e, nesse sentido, haver uma necessária busca de soluções que promovam a paz e, subsequentemente, para o desenvolvimento sustentável.

Alguma Referência Bibliográfica

Abias, Norberto. (2021) Entrevista: “Quando tocamos na questão política de Cabinda, cria-se ‘xingilamentos’ no Parlamento” – Raul Tati. Novo Jornal (online), 10 de Abril de 2021 às 11:02; https://novojornal.co.ao/politica/detalhe/entrevista-quando-tocamos-na-questao-politica-de-cabinda-cria-se-xinguilamentos-no-parlamento—raul-tati-25982.html;

Almeida, Eugénio Costa. (2024) Ensaios I (Compilação de textos, comentários, palestras e conferências – entre 2007 e 2018). Edição conjunta de Luanda Elivulu, e Lisboa, Perfil Criativo edições, Dezembro de 2024, págs 57 a 66;

Almeida, Eugénio Costa. (2021). O problema da territorialidade de Cabinda e que solução. Texto apresentado nom Debate (Webinar) «Conflito Político-militar em Cabinda, vias de resolução», 23 de Junho de 2021; https://ciencia.iscte-iul.pt/publications/files/32321;

Almeida, Eugénio Costa. (2013). O Difícil Processo de Definição de Fronteiras e Pertenças Político-identitárias no Debate de Cabinda. Cadernos de Estudos Africanos (2013) 25: 65-93; (também pode ser lido em: https://revistas.rcaap.pt/cea/article/view/8018/5638);

Angola admite que situação em Cabinda ainda apresenta riscos. Diário de Notícias (online), Publicado e Atualizado a: 14 Mai 2018, 09:12; https://www.dn.pt/arquivo/diario-de-noticias/angola-admite-que-situacao-em-cabinda-ainda-apresenta-riscos-9337957.html;

Angola: Presidente Admite Problemas de Segurança em Cabinda. VOA em português, outubro 15, 2010; https://www.voaportugues.com/a/article-10-15-2010-angola-president-speech-105055554/1258802.html;

Assinado Memorando para a paz em Cabinda. RTP online, 1 Agosto 2006, 13:27; https://www.rtp.pt/noticias/mundo/assinado-memorando-para-a-paz-em-cabinda_n130714 ;

Bembe, Miguel Domingos. (2014). Partilha do poder no Enclave Angolano de Cabinda: Modelo e processo. Mulemba, Revista Angolana de Ciências Sociais, 4 (8) | 2014; p. 143-172; https://doi.org/10.4000/mulemba.416;

Castro, Orlando. (2016). Cabinda – Dez anos do Memorando do Namibe. Jornal Folha 8 (online), 2 de Agosto de 2016; https://jornalf8.net/2016/cabinda-dez-anos-do-memorando-do-namibe/;

Castro, Orlando. (2011). Cabinda: Ontem Protectorado, Hoje Colónia, Amanhã Nação. Porto, Letras de Ferro;

Cabinda: UNITA disponível para mediar contactos entre Governo angolano e FLEC-FAC. e-Global, notícias em português, Março 31, 2025; https://e-global.pt/noticias/lusofonia/cabinda/cabinda-unita-disponivel-para-mediar-contactos-entre-governo-angolano-e-flec-fac/;

Carlos, João. (2018). Angola: Falta de união no caso Cabinda. DW em Português, 04/01/2018; https://www.dw.com/pt-002/angola-portugal-chamado-novamente-a-assumir-responsabilidades-no-caso-cabinda/a-42028694;

Forças Armadas Cabindesas decretam cessar-fogo unilateral com efeito imediato. Diário de Notícias (online), Publicado e Atualizado a: 14 Abr 2025, 22:21; https://www.dn.pt/internacional/for%C3%A7as-armadas-cabindesas-decretam-cessar-fogo-unilateral-com-efeito-imediato;

Governo angolano protesta contra “falsa notícia” da RTP sobre Cabinda. Angola 24Horas, 16 de Abril de 2025; https://angola24horas.com/politica/item/31642-governo-angolano-protesta-contra-falsa-noticia-da-rtp-sobre-cabinda;

Júnior, Miguel. (2024). As ideias estratégicas de Agostinho Neto. Portal 100 fronteiras, Democracia, Diversidade e Inclusão, 15/09/2024; https://www.portal100fronteiras.com.br/noticias-ler-1069-As_ideias_estrategicas_de_Agostinho_Neto_-_por_Miguel_Junior;

Lelo, Simão. (2022). É ou não possível mais autonomia para Cabinda? DW em Português, 26/05/2022; https://www.dw.com/pt-002/angola-%C3%A9-ou-n%C3%A3o-poss%C3%ADvel-mais-autonomia-para-cabinda/a-61936819;

O protectorado. dnotícias.pt, 02 fev 2020 02:00; https://www.dnoticias.pt/2020/2/2/117528-o-protectorado/;

Porto de Cabinda amplia operações e projecta aumento de receitas. Mercado & Finanças, Fevereiro 5, 2025; https://mercado.co.ao/porto-de-cabinda-amplia-operacoes-e-projecta-aumento-de-receitas/;

Porto de Cabinda é o «maior investimento» de sempre em Angola. TIBA, blog de logística, transporte e comércio internacional, 29-07-2014; https://www.tibagroup.com/pt/servicos-logisticos/maritimo/porto-cabinda-angola;

Rodrigues, Venâncio. (2022). Governo angolano reconhece pela primeira vez a existência de “ofensiva armada” em Cabinda. VOA em português, fevereiro 21, 2022; https://www.voaportugues.com/a/governo-angolano-reconhece-exist%C3%AAncia-de-ofensiva-armada-em-cabinda/6452109.html;

Sampaio, Madalena. (2013) FLEC: 50 anos a afirmar “Cabinda não é Angola”. . DW em Português, 02/08/2013; https://www.dw.com/pt-002/flec-50-anos-a-afirmar-cabinda-n%C3%A3o-%C3%A9-angola/a-16991850;

Sector privado chamado a investir no sector portuário em Cabinda e no Soyo para implementação do plano de dinamização das duas infraestruturas. RNA, Canal A-Destaque, Março 20, 2025; https://rna.ao/rna.ao/2025/03/20/sector-privado-chamado-a-investir-no-sector-portuario-em-cabinda-e-no-soyo-para-implementacao-do-plano-de-dinamizacao-das-duas-infraestruturas/ ;

Tchissap (s/d). Fundação do FLEC. Blogue do Alto Conselho de Cabinda; https://www.altoconselhodecabinda.org/pt/fundacao-do-flec/;

UNITA anuncia resolução para “exigir fim imediato” das hostilidades em Cabinda. Observador, 31 mar. 2025, 17:52; https://observador.pt/2025/03/31/unita-anuncia-resolucao-para-exigir-fim-imediato-das-hostilidades-em-cabinda/;

*Pós-Doutorado; Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL (CEI-IUL), Investigador-Sénior Associado do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social de Áfricaa (CEDESA/Angola Research Network) e Investigador-Associado do Centro de Investigação e Desenvolvimento da Academia Militar (CINAMIL).


[1] A Frente de Libertação de Cabinda (FLEC) resultante da fusão de três organizações, no caso, o Movimento para a Libertação do Enclave de Cabinda (MLEC), liderada por Luís Ranque Franque, o Comité de Acção da União Nacional de Cabinda (CAUNC), de Nzita Tiago e a Aliança Nacional Mayombe (ALLIAMA), de António Sozinho, foi fundada entre 2 a 4 de agosto de 1963, em Pointe-Noire, República do Congo (Sampaio, 2013). Por sua vez, a Forças Armadas de Cabinda (FLEC-FAC) foram fundadas, em 1977, por determinação do então líder da FLEC, Henrique Nzita Tiago (Tchissap, s/d).

[2] Recordemos que a Comissão de Descolonização da ONU considerada que todos os territórios coloniais portugueses, incluindo Cabinda, Angola, Índia e São João Baptista de Ajudá (hoje incorporada na República do Benin) deveriam ser descolonizados e lhes concedidos a independência (Almeida, 2024: 63).

[3] Lei 2048 de 11/Junho/1951, classificou de províncias ultramarinas as colónias descritas na Constituição passando Cabinda a ser uma delas para a qual foi designado um governador. Em 1956, Portugal, de forma unilateral, nomeou um único governador para Angola e Cabinda decisão prevista naquela lei, com fundamento na proximidade dos territórios (dnotícias.pt, 2002).

[4] No que foi reforçado pelas ideias estratégicas de Agostinho Neto (Júnior, 2024).

[5] Há que referir que o Governo Central, desde 2014, procura melhorar as condições portuárias de Cabinda, tendo, nesta altura apresentado lançamento de construção do “porto de águas profundas de Cabinda”, na região de Caio, que, segundo os responsáveis angolanos, iria “constituir o maior investimento feito no período pré ou pós-independência [de Angola]”, cujo orçamento rondaria os 445 milhões de €uros (TIBA, 2014). Em 2017, concessionado a construção do novo quebra-mar acostável do Porto de Cabinda e que só deverá estar pronto no final de 2025 (Mercado & Finanças, 2025, citando o presidente do Conselho de Administração, José Kuvíngua); mais recentemente, foi lançado o concurso público internacional para gestão dos terminais de passageiros e cargas dos Portos de Cabinda (RNA, 2025).

IV Congresso Internacional de Angolanística

18 de junho de 2025

Biblioteca Nacional de Lisboa

O IV Congresso Internacional de Angolanística foi um sucesso académico com mais de 30 Comunicações de estudiosos de Angola provenientes de todo o mundo. É um certame único neste âmbito de reunião transversal e plural daqueles que investigam cientificamente Angola.

As Comunicações foram extremamente variadas e estimulantes, desde questões constitucionais e de desenvolvimento até ao uso do TikTok nas línguas nacionais angolanas. Esta diversidade de temas e de abordagens deve ser entendia como um contributo para a competição de ideias livre, que é a génese do desenvolvimento de um país.

O IV Congresso Internacional de Angolanística é um espaço vital para a promoção da pluralidade de ideias e a convivência respeitosa entre perspetivas diversas.

Num mundo em que o debate público tantas vezes se vê ameaçado por polarizações e conflitos, a realização de encontros como este reforça a importância de escutar, dialogar e aprender. O Congresso cria um ambiente onde a troca de saberes deve ocorrer com base na empatia e na razão, valorizando o pensamento crítico e rejeitando qualquer forma de abuso verbal ou coação.

A possibilidade de discutir temas relevantes sobre a história, a cultura e o futuro de Angola num ambiente livre de intimidações incentiva a construção de uma sociedade mais justa e democrática. Aqui, o conhecimento não se impõe, partilha-se; e é exatamente essa partilha que alimenta o progresso coletivo.

A concorrência de ideias distintas — não o domínio de uma só voz — é o motor do progresso. A imposição de diretivas únicas e a tentativa de uniformizar pensamentos apenas produz estagnação e ressentimento.

O Congresso, ao contrário, estimula a convivência das diferenças e fomenta a criação de consensos através do entendimento, e não da força.

Neste contexto, o IV Congresso de Angolanística não é apenas um evento académico, mas um gesto político e cultural simbólico: demonstra que a Angola do futuro se constrói com mais escuta, mais reflexão e mais diversidade. Cultivar a arte do diálogo em paz é, afinal, um investimento no próprio futuro do país.

Angola e a Nova Ordem pós-Internacional (de Trump e outros)

1-Durante décadas, clamou-se por uma Nova Ordem Mundial. Geralmente, tais apelos vinham dos então chamados países do Terceiro Mundo, e de intelectuais e ideólogos de esquerda, que pretendiam um mundo mais justo e solidário, sem tantas regras financeiras e não assente nos ditames do capitalismo norte-americano.[1] Na verdade, uma ordem internacional tinha sido estabelecida a partir da Conferência de Bretton Woods e da Conferência de São Francisco (ambas nos Estados Unidos) para criação respetivamente da estrutura e organizações financeiras internacionais e das Nações Unidas a partir de 1944/1945, com vista a criar um mundo em que o direito internacional fosse uma realidade e as relações internacionais assentassem em regras, a economia em trocas livres e a paz fosse o objetivo último da coexistência entre os povos.

Apesar de imensos solavancos, esta ordem baseada em regras, no comércio livre e numa tendencial globalização foi perdurando, senão como prática, pelo menos como paradigma ou referência.

Tudo começou a mudar a partir dos anos 2010s. Numa série de países irromperam líderes com tendências autoritárias que entenderam que para desenvolver os seus países e lhes dar a projeção a que o seu tamanho e história davam direito, tinham de romper o paradigma internacionalista de 1944/1945 e impor uma revisão da ordem do mundo.

Essa visão não foi a alternativa solidária e justa dos alternativos do passado, mas uma reinvenção do poder do Estado soberano afirmativo com tendências imperiais que vigorou no século XIX. Um novo paradigma de grandes potências em que a referência é a sua força voltou a tomar forma. Foi Putin na Rússia, Xi Jinping na China, Modi na Índia, entre outros. Todos voltaram a ter como principal objetivo a emergência dos seus países como grandes potências, dispondo-se a fazer tal com o uso da força, não necessariamente militar, embora nalguns casos também[2].

Os Estados Unidos e a União Europeia não reagiram as estas tentativas de mudar o paradigma internacional, continuaram complacentes a avançar as suas agendas, que com o tempo se tornaram confusas e irracionais, misturando anseios milenaristas com engenharias sociais destrutivas, apostando em sociedades de lazer e consumo, sem referenciais. Os eleitorados ocidentais começam a reagir à disfunção das políticas com as suas necessidades e surgem as extremas-direitas em força na Europa e Trump nos Estados Unidos. O primeiro mandato de Trump poderia ter sido um blip. Não foi. A sua eleição em 2024, representou o momento catalisador da morte do paradigma internacional.

Não se podem pensar mais as relações internacionais como baseadas no direito, em regras, respeitando acordos ou factos estabelecidos. As alianças vão mudar, os interesses dos países e as suas identidades vão ser reforçadas. A força vai desempenhar um papel fundamental no restabelecimento dum paradigma internacional. Trump lidera a reação americana a esta “morte” do sistema internacional de 1944/1945. E assume os novos sinais, já enunciados por Putin e Xi Jinping: os tratados internacionais são pouco relevantes, as alianças mudam, as fronteiras não são sagradas, os países não são iguais, a democracia e o comércio livre não são os únicos sistemas possíveis e certamente não representam a finalidade da história. Trump não hesita em reivindicar a Gronelândia, o Panamá e até mesmo o Canadá. Tal como Putin já tomou a Crimeia e tenta reaver a Ucrânia. Quando chegará a vez de Taiwan e da China, não se sabe, mas tudo já só depende de cálculos de força e probabilidade. Este é o sistema pós-internacional.

A União Europeia, também uma criação essencialmente americana no pós-guerra, dentro do sistema idealizado para a paz e prosperidade por Acheson e Marshall entre outros, não percebeu os movimentos históricos e sobretudo não entendeu a partir do mandato do Presidente Obama que já não era prioridade americana. Agora, o seu criador (os EUA) retiraram-lhe o apoio. Tem de viver por si. Dificilmente o fará, é uma estrutura disfuncional sem poder de decisão unívoco em que vivem países com interesses diferentes. Provavelmente, as velhas potências europeias, Alemanha, França, Reino Unido e talvez Espanha e Itália, vão ter de assumir a direção dos negócios de forma articulada, mas em que o interesse nacional é preferencial, para reorientarem a Europa.

2-Obviamente, que esta mudança radical de paradigma internacional tem implicações muito relevantes para África, que já se estão a notar, e para Angola, ainda não especialmente visíveis, mas que se tornarão em breve.

Recentemente, África parece retornada ao século XIX e ao tempo da “corrida para África”. Os seus recursos naturais, a sua posição estratégica no Sul Global, a sua demografia que constitui um sintoma de vitalidade para o futuro, mas também uma ameaça de migração para a Europa e a persistente fragilidade das suas instituições, tornaram o continente, de novo, alvo do interesse e intervenção de vários países externos. A Rússia apostou na criação dum cinturão de países alinhados no Sahel, assinando vários acordos militares, fazendo avançar o dito Africa Corps (ex Wagner) e prevendo com vários países africanos a instalação de centrais nucleares. Possivelmente, neste momento, será a potência mais ativa em África.[3] A China é sempre mais discreta, mas a sua influência económica alastra e é parceiro essencial de muitos governos africanos. Já pouco se decide em África sem a China. Como alguém citou referindo um dito vietnamita, a China é “uma mancha de óleo que se alastra sem ninguém notar, mas que se cola aos pés[4]”. Outros países como a Turquia e os países do golfo Pérsico também dão passos acelerados em África, tal como a Índia, embora mais lenta.

A União Europeia tem fortes relações com África, tem vários programas e percebe a importância de África, mas hesita, entre os problemas que as migrações lhe trazem e as regulações que impõe às suas empresas, arrasta-se, sem uma estratégia definida para África, percebe que é importante, mas tergiversa. A França é que dominava os assuntos africanos. Neste momento, está nitidamente a perder a sua influência. O complexo europeu da descolonização também contribui para a sua atitude ambígua[5]. A Europa tem know-how e financiamento, mas não o alavanca suficientemente.

Os Estados Unidos pareciam ter noção do que se passava com a administração Biden. Criaram uma estratégia consistente, voltaram a África, estavam a desenvolver projetos e a emparceirar com a União Europeia, retirando-a das hesitações. Tudo descambou com o novo mandato de Trump. Os EUA tornaram-se ausentes, há um absentismo americano em África.[6] Trump ainda nem tinha conseguido ter a equipa africana constituída no final de março.

3-Já houve consequências deste novo paradigma pós-internacional em África com reflexo em Angola. O grande avanço das forças combinados do M23 e do Ruanda para conquista de Goma e Kivu no Leste da República Democrática do Congo (RDC), criando uma zona de intervenção manifestamente relevante, ocorreu após a tomada de posse de Trump, sedimentando a ideia que a ordem internacional mudou e as fronteiras podem ser mudadas. O mesmo efeito poderá ter estado na origem do facto de Tshisekedi e Kagame terem saído da mediação angolana para resolver a sua contenda e terem ido para o Qatar. Angola tinha os EUA como suporte nesta negociação, o que lhe dava força negocial. Com o absentismo de Trump, tal vantagem angolana deixou-pelo menos por agora-de existir e há uma estranha apetência por realizar conversações nos países do Golfo. A Guerra no Leste do Congo corre o risco de se tornar ainda maior. A atitude americana está a originar efeitos que podem ser dramáticos[7].

Neste sentido, há que enfatizar que tudo isto tem consequências para Angola. Na Segunda Guerra do Congo, Kagame foi derrotado com o contributo angolano, e por isso tem “contas a ajustar” com Angola. O M23 não vai ficar por aqui e a República Islâmica da África Oriental está a pressionar Cabo Delgado e possivelmente, segundo alguns analistas, já estará implementada em Angola.[8]

Efetivamente, a disrupção da ordem internacional e o absentismo de Trump, que como se viu está já a ter consequências na RDC e no eventual alastramento islâmico, têm consequências para Angola, umas a nível político e outras a nível de segurança.

A nível político, torna-se evidente que as escolhas e a adoção de processo democráticos de governação são estritamente um assunto angolano. Não é, nem será a comunidade internacional a impor qualquer modelo político. Claramente, o tempo da finalidade da história descrita por Francis Kukuyama[9] como democracia e economia livre, deixou de o ser. Cada país está entregue a si próprio. Aliás, a própria extinção da Voz da América que propagava esses objetivos por todo o mundo, é o maior exemplo desse final. Não se esperem intervenções externas em qualquer sentido nas eleições gerais angolanas de 2027. Aqueles apelos que se faziam à Comunidade Internacional deixaram de fazer qualquer sentido.

Contudo, é a nível da soberania, definição de fronteiras e segurança que os maiores desafios colocados em relação a Angola surgem com esta nova ordem pós-internacional. Está em curso um processo revisionista das fronteiras em África. Como se sabe, as fronteiras em África após as independências foram, em grande parte, herdadas do período colonial. Durante a Conferência de Berlim (1884-1885), as potências europeias dividiram o continente africano entre si, muitas vezes ignorando as realidades culturais, étnicas e geográficas locais.

Após as independências, a Organização de Unidade Africana (OUA) adotou o princípio de uti possidetis juris que afirmava que as fronteiras coloniais deveriam ser mantidas para evitar conflitos territoriais. Ao longo dos anos, houve apenas duas tentativas relevantes de redefinir fronteiras bem-sucedidas, a criação da Eritreia em 1993 e do Sudão do Sul em 2011.

No entanto, este princípio de estabilidade fronteiriça está hoje colocado em causa. Possivelmente, a incursão do M23 com o apoio do Ruanda quererá estabelecer novas fronteiras na zona. Tal já não dependerá do direito internacional, mas da força.

Assim sendo, as fronteiras angolanas estão ameaçadas, surgirá com mais força o apelo a secessões de territórios (Cabinda; Lundas?) e a validade da declaração da OUA será colocada em causa. Ao mesmo tempo, as migrações provocadas por alterações noutros países (RDC, por exemplo) colocarão pressões nas fronteiras angolanas. Torna-se evidente que este é, também, um tempo de ameaça a qualquer país, por outro que se sinta mais forte, ou que queira semear instabilidade como pode ser o caso do Ruanda em relação a Angola ou qualquer república islâmica a proclamar[10].

Nesse sentido, tornar-se-ia útil pensar ao nível da segurança angolana criar perímetros externos como tampões de estabilização e manutenção do território, sobretudo no caso de grave convulsão no território da RDC, a partir das zonas mais sensíveis, como Cabinda e as Lundas, linhas fronteiriças enormes com potenciais fontes de perigo.

Forçosamente, a redefinição do sistema internacional em curso levará Angola a uma necessidade de reforço da sua unidade interna e possivelmente ao incremento (e revisão) da sua doutrina de segurança nacional para combater ameaças à estabilidade do Estado e às suas fronteiras. 


[1] A título de exemplo, Antônio Carlos Wolkmer, 1989, O terceiro mundo e a nova ordem internacional

[2] Michael Kimmage, (2025) The World Trump Wants, Foreign Affairs. March/April 2025, Vol.104. N.2.

[3] Eugénio Costa Almeida, intervenção no jantar-debate CEDESA a 25 de março de 2025.

[4] Maria José de Melo, IDEM supra.

[5] IDEM.

[6] Rui Verde, intervenção no jantar-debate CEDESA a 25 de Março de 2025.

[7] IDEM

[8] Eugénio Costa Almeida, cit.

[9] Francis Fukuyama,1992, O Fim da História e o Último Homem,

[10] Eugénio Costa Almeida, IDEM.

Jantar CEDESA de 25 de Março de 2025

Trump e África: Vitória da China e Rússia?

Decorreu no dia 25 de Março no Pestana Palace em Lisboa, o Jantar-Debate incluído nas comemorações dos 50 anos da Independência de Angola que o CEDESA leva a cabo durante este ano com o tema Trump e África: Vitória da China e Rússia?

Estiveram presentes académicos, jornalistas e empresários com ligações a Angola, um conjunto diverso de personalidades que debateu de forma viva e livre o tema, sem facciosismos e de maneira construtiva.

Tivemos um antigo deputado-coordenador do PSD na comissão dos Negócios Estrangeiros da Assembleia da República que moderou o debate, jornalistas da LUSA, Jornal de Negócios, Correio da Manhã, DW e RTP África, professores em universidades portuguesas e estrangeiras.

Notou-se um forte interesse no tema, destacando-se a intensificação dos esforços russos de estabelecimento em África através de acordos militares, a presença constante e pragmática da China, novos actores como a Índia e a Turquia, as possibilidades que se abrem para a União Europeia, e o absentismo dos EUA que já teve como consequência o incremento dos conflitos em África. A situação africana é instável, as fronteiras podem mudar e as guerras alastrar. Estas foram as principais conclusões.

As presenças foram mais ricas e oportunas.

O SALTO DO DINOSSAURO- Novas tecnologias e boa governação

Comunicação à Conferência Nacional sobre Boa Governação

Organização da Inspecção Geral de Administração do Estado

Luanda

15 de Janeiro de 2025

A grande questão que confronta a governação de Angola, como a de muitos países que sentem ter capacidade para muito melhor, dispõem de amplos recursos naturais e de uma população jovem, ativa e impaciente, é a questão do salto. Como saltar rapidamente tornando-se um país desenvolvido, próspero e justo para todos?

Nos estudos antigos de economia, havia um autor fundamental, Alfred Marshall, cujo livro Principles of Economy era a base do conhecimento da economia neoclássica. Na abertura do livro, Marshall tinha inscrito o velho dito Natura non facit saltus (a natureza não salta). Com isto, Marshall seguindo Leibniz e Darwin, expressava a ideia de que as coisas e as propriedades naturais mudam gradualmente, e não repentinamente. Quereria isto dizer que não seriam possíveis longos saltos, apenas uma evolução gradual.

Contudo, Stephen Jay Gould, um paleontólogo e historiador da ciência norte-americano veio demonstrar que a evolução da natureza não é exatamente assim, apresentando a chamada teoria do equilíbrio pontuado. A teoria propõe que a maior parte da evolução é caracterizada por longos períodos de estabilidade evolutiva, pontuados por períodos rápidos de especiação, de saltos abruptos. A teoria contrastava com o gradualismo, a ideia popular de que a mudança evolutiva é marcada por um padrão de mudança suave e contínua no registo fóssil. Em suma, Gould comprovou que os dinossauros também saltam.

Naquilo que se refere ao desenvolvimento de um país, uma boa hipótese é que o impulso para este salto será dado pela boa governação em conjunto com a exploração inteligente das novas tecnologias.

A boa governação é uma expressão em que o conselho uti, non abuti (usar, não abusar) deve predominar, para não se tornar num conceito vazio e inexpressivo. Por exemplo, olhando para o Índice de Boa Governação de Fundação Mo Ibrahim verificamos que a Boa Governação para eles inclui a segurança e estado de direito, participação, direitos e inclusão, oportunidades económicas e desenvolvimento humano. Por sua vez, estas categorias subdividem-se em subcategorias. É um exercício interessante, mas no final do dia impossível, dando razão aos versos de Camões “o mundo todo abarco e nada aperto.”

A generosidade dos conceitos acarreta na sua raiz a sua ineficácia. Não interessa tudo incluir na Boa Governação, para no final não termos nada a não ser boas intenções. Assim, é melhor cingirmos a Boa Governação a dois aspetos que desde sempre se exigiram ao governante, fosse ele imperador, rei, presidente, chanceler ou outro qualquer. Eficácia na concretização das necessidades do país em cada momento do processo histórico e consentimento popular. Eficácia e consentimento são as bases duma boa governação. O governante tem de ter a capacidade de produzir o efeito desejado ou um resultado esperado. Em termos mais simples, tem de conseguir atingir os objetivos que lhe são exigidos pela situação histórica. Esses objetivos são definidos de forma ampla e espontânea pela comunidade política, incluindo os manifestos dos partidos vencedores, os discursos ou proclamações do chefe de estado, a opinião consensual emergente da opinião pública, o sentir da população medido através de sondagens. E o que é importante num espaço e tempo pode não ser noutro.

Contudo, essa eficácia e os objetivos a atingir estão submetidos à necessidade da governação ter consentimento popular. Consentimento popular refere-se à aceitação ou apoio geral da população em relação a uma decisão, política ou governante. Consentimento popular não implica necessariamente o modelo democrático como seguido na atualidade, pode ser esse ou outro modelo qualquer através do qual exista a necessária sensibilidade e canal de comunicação adequado entre povo e governante.

É muito importante definir a boa governação, para evitar o vácuo.

Quanto às novas tecnologias, elas podem ter um papel preponderante. Mas antes há sempre que chamar a atenção para os perigos que Jamie Susskind no seu livro The Digital Republic invoca: os sistemas digitais baseiam-se em regras escritas por pessoas que ao criar determinados algoritmos não sindicáveis ficam com um enorme poder não controlado. O que parece neutro e técnico, no final é político e moral. Enfatizado este ponto verifiquemos alguns exemplos de uma ligação virtuosa entre boa governação e novas tecnologias.

Nos Índices realizados pela ONU, a Estónia costuma surgir como o país mais avançado do mundo em e-government. Tem havido várias notícias de deslocações do ministro de Estado e da Casa Civil, Dr. Adão de Almeida, à Estónia. Assim, o país e as suas práticas são já sobejamente conhecidos em Angola, pelo que não vou ser redundante, apenas focando os pontos que parecem mais salientes.

A utilização ampla de novas tecnologias resultou antes de tudo de investimentos em infraestruturas e tecnologias de ponta, como a inteligência artificial, a computação em nuvem e a banda larga.  Simultaneamente, a Estónia é o lar de 10 unicórnios e a produzir 10 vezes mais start-ups per capita do que a média europeia. As empresas de TIC da Estónia ajudaram a construir a sociedade digital mais avançada do mundo.

Portanto, temos um conjunto virtuoso que permite a utilização de novas tecnologias para a boa governação: investimento em inteligência artificial, computação nuvem e banda larga complementada pela liberdade e promoção de criação de empresas tecnológicas de ponta.

Há assim uma parceria Estado-sector privado para a digitalização e implementação das novas tecnologias. O Estado não tem capacidade para fazer tudo, nem os privados.

Em concreto, 99% de todos os serviços públicos estão acessíveis online.  Um total de 88% dos agregados familiares dispõem de capacidade Internet, estando também disponíveis ligações Wi-Fi em mais de 1100 locais públicos, incluindo todas as escolas. Na Estónia, 88% da população com idades compreendidas entre os 16 e os 74 anos utiliza a Internet e estes cidadãos utilizam regularmente serviços eletrónicos. Mais de 95% das declarações de imposto sobre o rendimento foram apresentadas através do e-Tax Board em 2022, enquanto quase todas (mais de 99%) das transações bancárias são efetuadas através da Internet.

Todos os residentes possuem um cartão de identidade eletrónico da Estónia que funciona como um elemento de identidade digital, e é um documento de identidade físico e, na União Europeia, também um documento de viagem.

Um empresário pode até criar uma empresa na Estónia diretamente a partir do seu dispositivo pessoal. O registo do portal e-Business para a constituição e registo de uma empresa pode demorar apenas 18 minutos.

A política é também uma atividade digital. Desde 2005, todos na Estónia podem votar eletronicamente através da Internet, utilizando um cartão de identificação ou um documento de identificação móvel, a partir de casa ou mesmo durante viagens ao estrangeiro.

Além dos investimentos mencionados e da criação de um ecossistema empresarial centrados nas novas tecnologias há dois temas base fundamentais sem os quais não é possível a utilização das novas tecnologias para a boa governação. O primeiro, que não se focará aqui é a reforma da administração pública, desburocratizando-a e tornando-a numa estrutura ao serviço do cidadão. Administrações públicas eficientes satisfazem as necessidades dos cidadãos e das empresas. É essencial que as autoridades públicas sejam capazes de se adaptar às novas circunstâncias.

Nesse sentido, em Angola tenho de fazer referência aos sites que utilizo com mais frequência e que de um modo geral correspondem às expectativas. Um é o site do Ministério das Finanças. Sobretudo naquilo que se refere ao OGE está muito completo, acessível, com fácil acesso e compreensão. Os relatórios, os quadros, os números estão organizados e é fácil entender.

Outros dois que têm tido melhorias substanciais são os sites do Tribunal Supremo e do Tribunal Constitucional. Contudo, para facilitar o investigador, os acórdãos publicados deviam ter um curto sumário, de preferência realizado pelo juiz relator, acompanhado de palavras-chave. É que como estão agora, torna-se quase impossível fazer uma análise jurisprudencial. Por curiosidade, verifico que o último acórdão publicado no Constitucional (na altura em que escrevo) já tem o objeto mencionado. Talvez seja o anúncio de uma boa evolução.

O outro tema fundamental, que constitui uma síntese hegeliana da boa governação e novas tecnologias é a educação. Sem educação não é possível o uso das novas tecnologias como se fez na Estónia, e por outro lado, a educação pode ser uma das maiores beneficiárias das novas tecnologias e de uma aplicação concreta da boa governação.

A educação é a chave e o resultado do exímio uso das novas tecnologias por um país bem governado.

Todos reconhecem que há um déficit escolar ao nível do ensino básico em Angola. Fala-se de 5 milhões de crianças fora do sistema de ensino. Não é demais acentuar a gravidade do tema, como também, é evidente que não há meios para reproduzir o sistema em vigor assente em mais escolas físicas e mais professores. Os números são imensos e impossíveis. Por isso, é fundamental mudar o paradigma, abdicando da abstração e generalização que as leis impõem tornando-se impraticáveis, e procurado soluções diferenciadas, diversas e inovadoras. Não se pode pensar a escola ainda segundo o modelo prussiano-industrial com uma lei que tudo regula de igual forma e que apenas permite e repetição de um modelo de escola por vezes infinitas. É a receita para o falhanço.

Num mundo ideal, os professores do ensino primário em Angola seriam todos bem formados, altamente motivados e a sonhar com lições vibrantes. Na realidade, esta possibilidade não é viável. Por isso, há que ter soluções radicais para abranger o maior número de estudantes de forma consistente.

Em primeiro lugar, temos de distinguir os locais com acesso a rede e a sistemas de comunicações de internet e outros que não têm. É em relação a estes últimos que se deve focar o investimento físico, construindo edifícios e formando professores. Em relação aos locais com acesso a rede, além das estruturas físicas já existentes, o modelo de aprendizagem deve ser radicalmente diferente. O professor será sobretudo um facilitador que transmitirá aulas bem-elaboradas escritas por uma equipa central e que lhes são enviadas em tablets eletrónicos. As instruções definem exatamente o que escrever no quadro e até mesmo quando caminhar fazendo a apresentação. Planos igualmente detalhados determinam as verificações diárias que os diretores devem realizar para garantir que a sua equipa está em dia. O que este facilitador tem de saber é usar os meios eletrónicos, ler e transmitir. No fundo, funcionará como um terminal de uma linha eletrónica divulgando o seu conteúdo a uma miríade de alunos.

Um estudo realizado no Quénia realizado por Michael Kremer, economista vencedor do Prémio Nobel (2019), e colegas de quatro universidades americanas – acompanhou mais de 10.000 crianças que se candidataram a vagas gratuitas nas escolas que adotavam estes métodos. Ao fim de dois anos, verificou-se que as crianças aprenderam muito mais do que os foram para as escolas tradicionais.

A grande vantagem do método é o seu custo baixo, o que permite um maior número de crianças a aprender. Como se disse, os professores são facilitadores, pelo que podem ter apenas o ensino secundário, o que fomentaria largamente o emprego jovem, tão necessário.

É evidente que o sistema padronizado digital pode ter muitas críticas, desde logo a promoção de uma aprendizagem mecânica, a desvalorização social do papel do professor, a falta de elasticidade no conhecimento. É verdade. Mas tem uma vantagem fundamental, permite uma muito maior cobertura de estudantes a menor custo e vai introduzi-los aos meios digitais de imediato.

É muito mais importante dar a todas as crianças instrumentos básicos de conhecimento, mesmo que não sejam os ideais, mesmo que existam sistemas diferentes, mesmo que uns tenham professores e escolas e outros tablets e facilitadores, do que deixar milhões sem nada.

Esta é a verdadeira escolha.

Termina-se como se começou. Angola pode dar o salto do dinossauro. Só tem de usar de forma inteligente e local as novas tecnologias para garantir a boa governação.

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DE ANGOLANÍSTICA

CHAMADA DE COMUNICAÇÕES

Celebra-se este ano de 2025 o meio século de existência de Angola independente. Foram cinquenta anos de caminhos por vezes divergentes, de continuidades e de roturas, e de opções quase sempre difíceis.

Cinquenta anos parecem pouco, mas foi um período riquíssimo da História de África e na do mundo, que viu mudanças ainda imprevisíveis em 1975, entre elas a da queda do chamado Bloco de Leste, a transformação da China em potência global, a criação de um bloco europeu, o fortalecimento da União Africana e tantas outras.

Neste momento de balanço, a Angola Research Network (https://www.angolaresearchnetwork.org/) convida todos os angolanistas, membros e não-membros da nossa Rede, a apresentarem propostas de comunicação e de painéis para o IV Congresso Internacional de Angolanística, a decorrer em Lisboa no dia 18 de junho de 2025 nas instalações da Biblioteca Nacional de Portugal.

A chamada estará aberta entre 15 de janeiro e 15 de março de 2025.

Como é habitual, o Congresso contemplará um vasto espectro de interesses servidos por uma ampla diversidade de perspetivas e de metodologias da história e das ciências sociais, políticas e jurídicas, das humanidades, das artes e da música, das culturas da diáspora angolana e das relações internacionais e integração regional (Grandes Lagos e SADC).

Serão especialmente bem-vindas as propostas multidisciplinares, com perspetivas transversais a diversos domínios do saber, e das interartes.

Os interessados deverão enviar uma proposta fundamentada, com um máximo de 250 palavras, acompanhada de curta biografia académica (máximo de 100 palavras), email, se possível, e telefone de contacto com WhatsApp.

Toda a correspondência deverá ser dirigida para o seguinte endereço de e-mail:

angolaresearchnetwork@gmail.com

Coorganizadores: Filipe Santos e Rui Verde