Angola: A necessidade de um novo enquadramento legal para o combate à corrupção

Resumo:
O combate à corrupção encetado por João Lourenço, Presidente da República de Angola, está a encontrar variados obstáculos.

Para ter sucesso, é necessário haver uma mudança estrutural que abrange a criação de um novo órgão judiciário focado na corrupção, uma secção especializada de tribunais da corrupção e branqueamento de capitais e nova legislação para admitir a colaboração premiada e os acordos entre as partes.  

Foi em fevereiro de 2018, que o então Presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Carlos Saturnino, apresentou numa conferência de imprensa pública, factos que reputou de muito graves e diziam respeito à gestão de Isabel dos Santos nessa empresa.

Em maio de 2020, depois de várias notícias sobre esses e outros factos, por exemplo os Luanda Leaks[1], eventualmente imputáveis a Isabel dos Santos, o facto é que, aparentemente, esta ainda não foi notificada para prestar declarações no processo-crime que então lhe foi aberto em Angola.

A realidade é que existe o risco de um acentuado prolongamento neste processo, nem se condenando, nem se absolvendo, deixando um rasto de injustiça sobre toda a matéria. O episódio cómico sobre o passaporte com a assinatura de Bruce Lee que estaria num dos processos de Isabel dos Santos é um primeiro sintoma ténue da hipótese de falhanço deste processo-símbolo do combate à corrupção em Angola.

Também, em maio de 2020, foram tornadas públicas suspeitas muito recentes sobre atos de corrupção na Comissão Interministerial de Combate à Pandemia do Coronavírus, designadamente, o fretamento injustificado de aviões da Ethiopian Airlines e a compra de mercadorias a entidades privadas, todas elas com volumosas dívidas fiscais em Angola. Empresas que foram apressadamente ressuscitadas para competirem com o programa governamental de fornecimento de material de biossegurança[2]. Começa-se a verificar, nas palavras do veterano jornalista angolano Graça Campos, que o “PIIM (Plano Integrado de Intervenção nos Municípios) tornou-se no livre trânsito oficial de acesso ao dinheiro público[3].”

Não nos compete avaliar ou julgar as alegações feitas por Carlos Saturnino, pelo ICIJ ou por Graça Campos, mas concluir do ponto de vista fático que o combate à corrupção em Angola, apesar das intenções muito claras manifestadas pelo Presidente da República, João Lourenço, não está a surtir efeito imediato e permanente. Nem os processos avançam com celeridade, nem as práticas corruptas parecem ter sido erradicadas, perdurando como uma realidade na vida do país.

É neste contexto que se torna fundamental proceder a uma modificação estrutural na orgânica e legislação fundamental relativamente ao combate à corrupção.

Vislumbramos três zonas de intervenção:

-A criação de um órgão judiciário focado no combate à corrupção;

Nova orgânica judicial própria com a competência de instruir e julgar casos de corrupção e branqueamento de capitais (secções especializadas de tribunais, juízes e lei processual).

-A introdução de legislação que preveja a colaboração premiada e a possibilidade de acordos processuais homologados por juízes entre as partes de um caso criminal.

Fig. n.º 1- Medidas propostas para combate à corrupção

Estas três medidas são fundamentais para colocar o combate à corrupção no caminho certo. Vamos analisar brevemente cada uma das propostas.

Órgão judiciário focado no combate à corrupção

Deverá ser criado um órgão com poderes judiciários, i.e. de investigar, revistar, buscar, apreender, escutar, deter, demandar cooperação internacional, etc, especializado no combate à corrupção. Esse órgão centralizaria toda a investigação respeitante aos grandes casos de corrupção e branqueamento de capitais, tendo uma estrutura própria e estatuto igualmente separado dos outros órgãos. Seria um órgão focado, com capacidade para investigar um caso, acusar, arquivar ou chegar a acordo, proceder à arguição no caso em tribunal, recorrer, enfim, acompanhar os casos do princípio ao fim.

Um exemplo que pode ser seguido e devidamente adaptado é o Serious Fraud Office (SFO) do Reino Unido. Aqui temos uma entidade que investiga e procede à acusação e restante processo em situações de fraudes, subornos e corrupção graves ou complexos[4].

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Fig. n.º 2- O Serious Fraud Office britânico pode constituir uma referência para o órgão a criar em Angola com o fim de combater a corrupção

Secções especializadas nos Tribunais comuns com a competência de julgar casos de corrupção e branqueamento de capitais (Instrução e Julgamento) e lei processual própria

Concomitantemente, seria estabelecido um juiz de instrução adstrito a esta criminalidade, bem como uma secção dentro dos Tribunais comuns, por razões de constitucionalidade (cfr. artigo 176.º, n.º 5 da Constituição), dedicada ao julgamento de processos de corrupção e branqueamento de capitais (autorização de actos que exijam juiz). A tramitação nesta secção, quer na fase de instrução, quer na fase de julgamento seria alvo de uma lei processual própria, também agora aprovada, que garantindo a defesa e garantias dos arguidos, permitisse uma aceleração do processo, e evitasse as dilações. Apenas o recurso seria feito para a secção habitual criminal do Tribunal Supremo.

Portanto, investigação e julgamento teriam órgãos especializados em corrupção e branqueamento.

Figura n.º 3- Nova orgânica judiciária própria para o combate à corrupção

Legislação que preveja a colaboração premiada e a possibilidade de acordos processuais homologados por juízes entre as partes de um caso criminal.

Finalmente, é urgente aprovar legislação que facilite e acelere o combate à corrupção permitindo a adoção de medidas de direito premial, bem como a possibilidade de se chegar a acordos nos processos entre as partes, estando tais acordos sujeitos a homologação de um juiz.

Defende-se a existência do plea-bargain (colaboração premiada), isto é, de negociações entre o Ministério Público e os arguidos que levem à devolução de bens, uma pena mais leve ou inexistente e a denúncia de outros comparticipantes.

A “colaboração premiada” é um benefício legal concedido a um arguido que aceite colaborar na investigação criminal ou explicar o papel dos seus comparticipantes num crime. Esta fórmula facilita a investigação penal e, desde que salvaguardadas determinadas garantias, permite rápidas condenações dentro do quadro do Estado de Direito.  

No Brasil, onde o sistema está bastante desenvolvido e tem sido usado com sucesso, foi a Lei n.º 9613/1998 que desenvolveu o sistema, que já tinha sido introduzido anteriormente. Por esta Lei a colaboração judicial dos arguidos foi estendida à lavagem de dinheiro e previu-se para quem adotasse os seus preceitos penas mais leves, como a condenação a regime menos gravoso (aberto ou semiaberto), substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou perdão judicial (art. 1º, § 5º, Lei 9.613/1998). Depois, a legislação foi-se aprimorando e na Lei 12.529/2011 já se determina que o colaborador identifique claramente os demais envolvidos e disponibilize informações e documentos que provem o que diz (art. 86, I e II). Ademais, é necessário que não estejam disponíveis com antecedência provas suficientes para assegurar a condenação, o colaborador confesse sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações (art. 86, § 1º). A Lei 12.850/2013 regulamentou ainda mais especificadamente os termos do acordo de colaboração.  

Quer isto dizer que ao colaborador não basta confessar um crime e indicar outros culpados. Tem de fornecer provas do que está a afirmar e não pode estar a repetir o que já se sabe.  Portanto, a colaboração para ser premiada tem de trazer provas e novidades, e está sujeita a um detalhado cardápio de regulações que impedem os abusos.

A aprovação de uma lei sobre as “negociações” com arguidos, deveria ser um objectivo urgente, para fundamentar as atividades de recuperação de ativos através de acordos.

Figura n.º 4- Vantagens da colaboração premiada em Angola


[1] International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), Luanda Leaks. Disponível em linha: https://www.icij.org/investigations/luanda-leaks/

[2] Graça Campos, A mamata vai solta, 17 de maio 2020. Disponível em  https://www.correioangolense.info/2020/05/17/a-mamata-vai-solta/

[3] Idem

[4] https://www.sfo.gov.uk/