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O acordo inalcançável entre Angola e Isabel dos Santos

Nota prévia:
Este texto analisa apenas a problemática legal e política em causa. Não toma, nem tem de tomar, qualquer posição sobre os factos eventualmente criminais referidos, adotando as regras da Presunção de Inocência claramente estabelecidas na Declaração Universal dos Direitos do Homem e nas Constituições Angolana e Portuguesa.

Isabel dos Santos foi considerada durante muitos anos a mulher mais rica de África[1], sendo filha do antigo Presidente da República de Angola, José Eduardo dos Santos. Neste momento, correm contra ela vários processos judiciais de natureza criminal e civil em várias jurisdições. Sendo públicos as ações e inquéritos em curso em Angola[2] e Portugal[3], e havendo notícia, mais ou menos discreta, que outras iniciativas na Alemanha ou no Mónaco tiveram ou têm lugar.

Pelo menos em Angola e Portugal, quem desencadeou os processos foi o Estado angolano dentro da política anticorrupção definida pelo Presidente da República João Lourenço.

A questão que se vai tratar nesta análise é a da possibilidade de acordo entre o Governo de Angola e Isabel dos Santos pondo fim aos processos. Tal hipótese tem sido levantada em vários debates públicos, e ainda recentemente foi objeto de um artigo por um prestigiado jornalista em Portugal.[4]

Antecipando a conclusão a que chegamos: analisando os factos, a lei e o contexto político como estão neste preciso momento, acreditamos que não é possível, nem oportuno realizar qualquer acordo entre o Estado e Isabel dos Santos.

A lei angolana

Em primeiro lugar, para chegar a esta conclusão temos a lei. Em Angola não existe nenhuma norma jurídica de aplicação geral que permita que o Estado e uma pessoa alvo de investigação judicial cheguem a um acordo. Mesmo que essa pessoa devolva os eventuais bens de que se tenha apoderado ilegitimamente. Tal hipótese, com referência aos tipos criminais do universo económico e financeiro aqui em causa, somente existe nos termos do artigo 57.º da Lei das Infrações Subjacentes ao Branqueamento de Capitais, Lei 3/14, de 10 de Fevereiro. Nessa norma estabelece-se que a restituição dá lugar à extinção da responsabilidade criminal se acontecer nos crimes previstos nos artigos 421. º a 425.º e 453.º do Código Penal. São assim passíveis de possibilidade de acordo os crimes de Furto, Subtração, destruição, ou descaminho de coisa própria depositada, Apropriação ilícita de coisa achada, Furto, destruição ou descaminho de processos livros de registo, documentos ou objetos depositados e Furto Doméstico. O Furto qualificado, previsto e punível pelo artigo 426.º já não pode ser objeto de extinção criminal. Além destes a responsabilidade também se pode extinguir em relação ao crime de Abuso de Confiança.

Figura n.º 1- As curtas possibilidades legais de acordo: Casos em que a lei prevê a possibilidade de extinção do crime face à devolução de bens (artigo 57.º da Lei 3/14 de 10 de Fevereiro)[5]

Artigo 421.º Código PenalFurto
Artigo 422.º Código PenalSubtração, destruição, ou descaminho de coisa própria depositada
Artigo 423.º Código PenalApropriação ilícita de coisa achada
Artigo 424.º Código PenalFurto, destruição ou descaminho de processos livros de registo, documentos ou objetos depositados
Artigo 425.º Código PenalFurto doméstico
Artigo 453.º Código PenalAbuso de confiança

Por esta enumeração facilmente se vê que o âmbito de negociação legal em termos criminais é muito reduzido. Em outras situações em que haja devolução dos montantes, a lei apenas permite a redução ou atenuação da pena. Adiante-se também que o artigo 56.º da lei que temos vindo a mencionar permite a dispensa de pena em casos puníveis com pena não superior a 2 anos ou multa de 120 dias, mas somente depois de efetuado julgamento, ficando tal dispensa na disponibilidade do juiz.

Consequentemente, a lei criminal angolana não dá margem de manobra às autoridades para realizarem exaustivas negociações e muito menos concluírem acordos juridicamente válidos.

Isto é o que se pode dizer aos processos criminais em curso em Angola, que, contudo, por estarem em segredo de justiça não têm contornos publicamente definidos. No entanto, é fácil concluir que não existe amplitude jurídica para negociações, uma vez que a imputações que lhe sejam feitas não se limitarão a pequenos crimes, furtos ou abuso de confiança.

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Curiosamente, os processos contra Isabel dos Santos que têm tido maior impacto público e onde se procedeu ao arresto dos seus bens e empresas em Angola são de natureza civil. As ações fundamentais correm no Tribunal Provincial de Luanda com os números n.º 3301/2019-C e 33/2020-A. Como é sabido, aqui a possibilidade de acordo é permanente e faz parte dos princípios básicos do processo civil.

Nos processos civis que correm em Luanda contra Isabel dos Santos, ao contrário dos criminais, é legalmente possível o acordo. No entanto, também existe um obstáculo de monta. Na decisão judicial referente ao primeiro processo foi estabelecido que Isabel dos Santos devia ao Estado 1.136.996.825,56 USD, i.e. 1,1 mil milhões de dólares. Já no segundo caso, a juíza apurou um valor de 4.920.324.358,56 USD, 4,9 mil milhões de dólares. Não se entende se os dois valores somam, e a dívida de Isabel dos Santos a Angola tal como determinada indiciariamente pelos tribunais locais é de 6,1 mil milhões de dólares ou se o segundo valor envolve o primeiro, e a dívida reclamada é de 4,9 mil milhões. No fundo, face à magnitude dos montantes e ao raciocínio que efetuámos a diferença não é relevante para a conclusão que se segue.

A fortuna avaliada de Isabel dos Santos é de 1,7 mil milhões USD, segundo os últimos dados da Forbes.[6] Facilmente se percebe que mesmo entregando toda a sua fortuna Isabel dos Santos ainda ficaria a dever uma imensidão ao Estado, de acordo com as sentenças judiciais até agora produzidas. Pelo menos mais do dobro dessa fortuna. Nesse sentido, o Estado teria de fazer um grande “desconto” a Isabel dos Santos e teria de apresentar sólidos argumentos para sustentar esse “desconto”. Por outro lado, será que Isabel dos Santos estará disposta a abdicar da integralidade da sua fortuna, que mesmo assim não pagará a totalidade dívida? É duvidoso.

Fig. n.º 2- O diferencial entre as exigências patrimoniais do Estado angolano e a fortuna estimada de Isabel dos Santos

A situação em Portugal

Além dos processos angolanos existem oito investigações em Portugal contra Isabel dos Santos.[7] Mesmo tendo sido despoletados por iniciativa angolana, estes processos adquiririam autonomia e já não dependem apenas da vontade angolana, mas também da vontade portuguesa. Referem-se a possíveis crimes cometidos em Portugal, debaixo da jurisdição portuguesa. Portanto, um acordo teria de envolver também as autoridades judiciárias portuguesas. Note-se que a lei criminal portuguesa tem uma margem maior de possibilidade de acordo. A gama de crimes em que a restituição termina o processo em determinadas condições é maior e abrange a burla, o crime financeiro típico, além de ter sido anunciada uma reforma legislativa no sentido de introduzir a colaboração premiada no sistema judicial português. Portanto, por um lado pode ser mais fácil chegar a um acordo com referência aos processos em curso em Portugal, por outro lado, temos mais uma jurisdição com autonomia e vontade própria a ter em consideração.

Para fazer face aos desafios legais dificilmente Isabel dos Santos terá capacidade para liquidar as responsabilidades que lhe são exigidas. Sublinhe-se que além destas eventuais responsabilidades que lhe são pedidas, existem ainda as responsabilidades comerciais face à banca, fornecedores, etc.

A questão política

Se o enquadramento legal impossibilita qualquer acordo, a estrutura da política contra a corrupção é definitiva nessa impossibilidade.

A política contra a corrupção tem como último fundamento a credibilidade, pois além da punição dos eventuais prevaricadores, pretende diminuir drasticamente as práticas corruptas em Angola. Nesse sentido, a população e os eventuais corruptos têm de acreditar que a política é séria, consistente e que existe. Que não é uma mera bandeira propagandística. Sem credibilidade não há política contra a corrupção. Sem a existência de processos que têm princípio, meio e fim e a que todos assistam, não existe combate à corrupção. Portanto, credibilidade e consistência são as ideias chave deste combate. Isabel dos Santos é obviamente o símbolo central desta luta.

Abra-se um parenteses para sublinhar que, o contrário do propalado, Isabel dos Santos não é a única a estar abrangida pela luta contra a corrupção, nem de longe, nem de perto. Desde vários altos funcionários nas províncias ao genro e filha do primeiro Presidente da República Agostinho Neto, passando por Manuel Vicente que já viu vários bens apreendidos no decurso de inquéritos em curso na Procuradoria Geral da República de Angola, são muitos os sujeitos a apreensões de bens, inquéritos e processos judiciais no âmbito da denominada luta contra a corrupção.

Anotado este aspeto, é evidente que Isabel dos Santos pelo seu destaque público e pelos montantes envolvidos ocupa um lugar proeminente nessa no desenrolar dessa política.

É devido à sua posição central na gramática do combate à corrupção, e à impossibilidade legal de haver um acordo entre Isabel dos Santos e o Estado, que consideramos que na perspetiva da República esse acordo também não é politicamente aceitável.

A haver um acordo seria sempre realizado à margem da lei-como vimos não existe legislação que permita um acordo global- logo, sem transparência, e um dos pilares centrais do combate à corrupção deixaria de estar dentro das preocupações judiciárias. No fundo, haveria um esvaziamento.

Naturalmente, que tal a acontecer faria perder toda a credibilidade ao processo anticorrupção. A população entenderia como uma paragem, um recuo no combate, e os eventuais futuros corruptos compreenderiam que no futuro lhes bastaria entregar alguns dos seus proventos para saírem imunes. Consequentemente, teriam de desviar ainda mais dinheiro para fazer face a esses eventuais prejuízos futuros.

Quer isto dizer que o eventual acordo com Isabel dos Santos é politicamente prejudicial ao combate à corrupção porque lhe retira credibilidade e incentiva uma maior e ainda mais alargada corrupção no futuro.

Fig. n.º 3- O problema político que inviabiliza o acordo com Isabel dos Santos

Esta é a razão essencial que impossibilita um acordo. Tal acordo seria um sinal verde e um incentivo para a futura corrupção.

Facilmente, se percebe que, nestes termos, o acordo seria o óbito da política de combate à corrupção encetada por João Lourenço, consequentemente, eliminando o principal objetivo do mandato presidencial.


[1] Forbes https://www.forbes.com/profile/isabel-dos-santos/#20964e2d523f

[2] MakaAngola https://www.makaangola.org/2020/05/os-processos-contra-isabel-dos-santos-em-angola/

[3] Sábado https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/todos-os-processos-contra-isabel-dos-santos-em-portugal

[4] Celso Filipe in https://www.jornaldenegocios.pt/economia/mundo/africa/angola/detalhe/isabel-dos-santos-e-a-vaga-que-pode-ser-de-fundo-ou-nao

[5] Por simplificação, apenas se considera o universo de crimes económico-financeiros, bem como um patamar de crimes graves.

[6] Ver nota 1

[7] Ver nota 3

Quais as razões para a economia estar estagnada e a pobreza continuar?

Poderíamos começar a explicação utilizando um jargão académico, afirmando que estamos perante um ciclo de recessão e estagnação da economia que já vem desde 2014, e que estes ciclos têm explicação difícil e resolução ainda mais complicada, podendo-se prolongar duradouramente no tempo. Também, é possível afirmar algo de básico na economia, que é que as políticas económicas têm uma dilação acentuada, querendo isto dizer que demoram tempo a surtir efeito, pelo que medidas que João Lourenço tenha tomado recentemente, só daqui a um ano ou dois terão resultados práticos.

No entanto, a explicação para os problemas económicos pode ser simplificada e assentará em dois aspectos: um estrutural e outro de política económica actual.

Do ponto de vista estrutural, é sabido que a economia angolana é extremamente dependente do petróleo e que o preço deste está em queda desde 2014. Se olharmos para os números, em 20 de Junho de 2014, o preço do barril/brent situava-se nos U$ 114,81. A partir de Agosto desse ano, o preço inicia a sua descida abrupta, e nunca mais se aproximou dos U$ 100,00. O mais próximo que esteve foi em 3 de Outubro de 2018, nos U$ 86,26, tendo, todavia, descido rapidamente. Actualmente, o preço situa-se próximo dos U$ 60,00, tal significando que está em cerca de metade do que acontecia em 2014.

É assim fácil perceber que um país dependente em excesso do petróleo (ainda segundo os últimos dados do Banco Mundial, 90% das exportações e 33% da produção nacional total derivavam do petróleo) está armadilhado por esta dependência. Dir-se-á que não devia ser assim, que já deveriam estar em cima da mesa alternativas.

A realidade é que este modelo foi o escolhido após 2002. Um crescimento rápido assente no petróleo. O desastre é que os frutos desse crescimento foram apropriados por muito poucas pessoas, e não houve um real efeito na economia, nem a criação de uma economia nacional; apenas foram criadas fortunas nacionais que se apressaram a investir a maior parte dos seus proventos no estrangeiro. Ora, não é em dois anos que se resolve esse problema.

A transformação estrutural de uma economia leva tempo e é dolorosa. Existe sempre uma primeira fase em que a situação piora, as pessoas sofrem mais, os sacrifícios são maiores. Surgem na memória dois exemplos. No final dos anos 1970, o Reino Unido era considerado um país em decadência, cujo tesouro só não faliu devido a uma intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) em 1976. A Grã-Bretanha inicia, nos anos 1980, um grande esforço de recuperação liderado por Margareth Thatcher. Contudo, a situação antes de melhorar, piorou, o desemprego alcançou números exorbitantes, na casa do milhão, e a economia continuou estagnada. Tal levou 364 dos mais famosos economistas em Inglaterra a escreverem uma carta a Thatcher afirmando que a política económica dela estava totalmente errada…Curiosamente, quando essa carta vem a público, é quando a economia começa a melhorar e a relançar o Reino Unido para um novo patamar de prosperidade. Os economistas enganaram-se, mas a recuperação não se fez sem muito desemprego e falência, sem muito sacrifício. Em termos mais singelos, também o que se passou em Portugal com a última crise de 2011 e a política de Passos Coelho, não foi muito diferente, embora mais concentrado. Portugal também passou por uns tempos amargos, para depois recuperar, embora não se saiba por quanto tempo. Isto quer dizer que qualquer adaptação estrutural da economia é dolorosa e leva tempo.

A questão que se segue é se João Lourenço está a realizar ou não uma reforma estrutural da economia.  Se o Presidente da República não é responsável pelo estado comatoso em que encontrou a economia e as finanças públicas de Angola, já é imperativo que tome as medidas adequadas para sair desse estado e informe a população do seu rumo e da sua política. É aqui que tem havido confusão. Ainda não se viu claramente o plano e o rumo de Lourenço em termos económicos, tem havido um afinamento de equipas, algumas medidas, mas ainda pouca clareza.

Têm de ser enunciadas e explicitadas, por uma equipa coesa e com sentido de direcção, as políticas estruturais que vão trazer progresso e prosperidade a Angola.